Texto originalmente publicado em Revista Filosofando - UESB.
NOITE
E NEBLINA
E A REPRESENTAÇÃO JUSTA
Quando
o fim da II Guerra completou dez anos, as cicatrizes ainda não haviam
cicatrizado. Na Itália, o cinema não deixava a população esquecer. O povo
começava a ganhar consciência do que acontecia, e isso não agradou à burguesia.
Na França, que fazia um cinema mais sentimental e menos visceral do que os
italianos, surge um filme para sacudir as estruturas de quem o assistisse. E
muitos foram os que viram. Noite e
neblina (1955), curta-metragem de Alain Resnais, surge no cenário
cinematográfico como uma das provocações mais interessantes sobre como fazer um
filme sobre aquilo que é tão difícil de se filmar: o holocausto. Como filmar os
campos de concentração? Como reagir frente aquelas imagens de arquivo que nos
apresentam montanhas de óculos, de sapatos, de cabelos, de cadáveres...? Como
fazer uma representação justa daquilo?
Em
texto para a revista Contracampo,
Luiz Carlos Oliveira Jr. Faz um questionamento que ele atribuí ao já citado
Godard: “o cinema, ao não filmar os campos de concentração e extermínio no
momento mesmo em que eram construídos, teria cometido um erro imperdoável?”
(OLIVEIRA JR, s/d). Esta lacuna que surge na representação moderna, em que o
cinema apresenta-se como frente absoluta no registro do real, poderia ter
aberto espaço para as representações equivocadas deste que talvez seja o
trágico mais lembrado na sétima arte. O cinema não viu o início dos campos, mas
viu o que deles resultou (esta lacuna poderia fazer com que este fato parecesse
irreal, uma fantasia do cinema?). Surge neste momento a necessidade de se fazer
uma representação justa. “Em Noite e
Neblina, Resnais inaugura esta justeza do olhar, esse reconhecimento de que
o cinema chegou depois” (idem).
A
câmera de Resnais passeia pelos campos de concentração. O travelling executado sobre os trilhos do trem que outrora trazia ao
campo prisioneiros, agora é um eco dos fantasmas daqueles que não podemos
esquecer. E este é o trabalho do cinema. Não é transformar o holocausto num
espetáculo, mas fazer-nos lembrar para que ele não se repita. Esta câmera que
percorre os muros dos prédios agora abandonados, pede para que eles não se
percam no caminho da história. “A principal característica da exterminação nazista
dos judeus na Segunda Guerra foi sua invisibilidade, sua obscura e
historicamente mal explicada invisibilidade” (idem). Esta invisibilidade que
agora, por meio daquele canal que uma vez se cegara e não fora capaz de
enxergar o que acontecia, tenta se redimir e apresentar para o mundo que
aquilo, um dia, realmente aconteceu.
Noite e neblina
apresenta-se, assim, como um documentário de curta-metragem que une as imagens
de arquivo às imagens atuais e em cores dos campos de concentração (atuais do
seu ano de produção, 1955). Por meio da montagem que liga o presenta ao passado,
mostrando ao mesmo tempo sua união e sua distância cruel, Resnais monta um
discurso visual para dizer-nos que não podemos voltar ao passado, mas também
não podemos esquecê-lo. As paisagens que hoje apresentam flores, outrora foram
palco de um espetáculo tenebroso. Resnais liga também aquilo que é mostrado à voz
de Jean Cayrol, escritor sobrevivente do holocausto, que nos narra um texto que
não se prende por meio de metáforas e que diz:
Mesmo uma paisagem tranquila, mesmo
uma pradaria com voo de corvos, messes e jogos de ervas, mesmo uma estrada onde
passam carros, camponeses, casais, mesmo uma aldeia para férias com um
campanário, podem levar simplesmente a um campo de concentração.
(RESNAIS, 1955).
O TRAVELLING DE KAPÒ
O
famoso travelling de Kapò parece muito simples quando visto
na tela, de um ponto de vista prático. Mas na época em que fora feito, 1959,
dependia de enorme maquinário para que fosse possível mover a câmera pelo
cenário até o enquadramento desejado. Esta simplicidade que aparenta para um
espectador do século XXI se dá pelo seu contato com câmeras pequenas,
portáteis. A construção de um travelling,
na época da produção do citado filme, se fazia difícil e dispendiosa.
Necessitava-se que o cineasta, para fabricar este movimento, o ter idealizado
por um longo tempo e ter a convicção do que estava a fazer com seu filme.
A
recém-reformulada escola crítica de cinema francesa estava a ganhar cada vez
mais adeptos. Numa atitude rara até então, discutia-se a forma dos filmes e não
o seu conteúdo, tão somente. Esta geração, que sofreu crescendo em meio à
guerra, agora procurava juntar os cacos de uma Europa destruída. Da parte
destes jovens que se dedicavam integralmente ao cinema – muitos deles que
enxergavam no dispositivo cinematográfico a potencialidade de mudar a sociedade
–, coube discutir a forma como se representava o irrepresentável: o holocausto,
a bomba de Hiroshima... Noite e neblina
surgiu em 1955 mostrando como o assunto deveria ser abordado: com a distância
de quem não pode voltar no tempo e mudar o que aconteceu. Mas nem todos
escutaram o que Jean Cayrol disse, ou o que Alain Resnais mostrou. E num texto
curto, com menos de uma página, Jacques Rivette encheu uma edição da revista Cahiers du Cinéma de raiva contra um
filme numa crítica que tomava menos que uma página. A força deste golpe foi
tamanha que até hoje ecoa (como é o caso deste estudo). Em um de seus últimos
escritos, o também crítico de cinema Serge Daney escreve:
Em seu artigo, Rivette não contava
o filme. Ele se contentava, em uma frase, descrever um plano. A frase, que
ficou na minha memória, dizia assim: “Vejamos agora, em Kapò, o plano em que
Riva se suicida, se jogando sobre o arame farpado eletrificado: o homem que
decide, nesse momento, fazer um travelling para frente para reenquadrar o
cadáver em contra-plongée[1],
tomando cuidado para inscrever exatamente a mão levantada num ângulo do
enquadramento final, esse homem só tem direito ao mais profundo desprezo.”
Dessa forma um simples movimento de câmera poderia ser um movimento a não se
fazer. (DANEY, s/d)
Kapó
é o filme que ficou famoso pelos motivos que nenhum outro deseja. O “ato
abjeto” promovido por Gillo Pontecorvo em seu filme fez com que esta obra em
particular fosse vista com olhares de desaprovação, mesmo por quem nunca chegou
a vê-lo. Porque não é necessário ver um filme quando há algo de tão claro em
sua construção (sua forma) que o torna horrendo. E não foi o travelling, somente, que mudou o destino
de Kapò. O tão citado travelling de Kapò é, na verdade, apenas o ápice do horror promovido pelo diretor
em seu filme. O travelling torna-se a
representação de algo maior. Mas ainda assim permanece sobre aquela câmera que
corre em direção ao rosto de uma moribunda Emanuelle Riva a expressão mais grave
da abjeção. Este termo dito aqui mais de uma vez refere-se ao título do texto
escrito por Rivette sobre Kapò, “Da
abjeção”.
A
abjeção a Kapò nos dá as bases de uma
discussão acerca da representação de um cinema de viés político, surgido após a
guerra. Seria moral, da parte do cineasta, moldar o seu filme sobre o
holocausto partindo de princípios dramatúrgicos comuns? Como já havia sido
colocado por Noite e neblina, não
podemos voltar no tempo, retornar àquele momento e mudar o que aconteceu. O
cinema deve manter distância daquele momento, porque como ele não o mostrou
chegando ele também não pode mais tentar mudar o que aconteceu. Mas quais
seriam os motivos que poderiam fazer de um filme sobre o holocausto como Kapò ser tão abjeto?
Nenhum comentário:
Postar um comentário