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sábado, 29 de agosto de 2015

O céu de Lisboa de Wim Wenders (Lisbon Story, 1994)


Truffaut já escrevia, em prefácio ao livro de textos de André Bazin sobre, que mesmo entre aqueles que não reconheciam o cinema enquanto uma arte, Charles Chaplin tinha seu espaço. O artista inglês conquistou este lugar considerável no imaginário mundial poetizando a vida comum, a vida das pessoas simples. Enxergando beleza onde todos os outros veriam somente a miséria. Não são poucos os filósofos que indicarão que o artista é aquele que transforma o ordinário em extraordinário. É exatamente isso que faz Chaplin com os pãezinhos em Em busca do ouro. Aquilo que encontramos todos os dias e cujo trato é sempre igual é transformado pelo cômico inglês num baile. É numa homenagem a este tipo de visionário que Wim Wenders vai até a capital portuguesa filmar O céu de Lisboa. Em tempos de filmes digitais, quando as imagens tornaram-se descartáveis porque todos podem produzi-las aos montes, o cineasta alemão faz este retorno às origens, a busca dos poetas do cinematógrafo.

Tudo começa com um ciao a Fellini. O italiano que também possui suas inspirações chaplinianas (ou partilha das mesmas inspirações), surge na capa de um jornal que noticia seu falecimento. A morte de um autor como Fellini poderia anunciar os tempos críticos do cinema. E parece ser exatamente isso que se anuncia por alguns momentos durante a película. Phillip Winter recebe um postal de um amigo cineasta que está a filmar em Lisboa e precisa que ele até lá viaje para fazer o trabalho de som do filme. Na primeira recusa à modernidade prática, Winter escolhe ir da Alemanha à Portugal não de avião, mas de carro. Neste caminho, a influência dos cômicos do cinema mudo torna-se explícita. Winter está de pé quebrado e dirige. O pneu fura numa ponte e ele deixa cair o pneu reserva no rio. Mais tarde falta água no radiador, que ele repõe com Coca-Cola. O carro quebra. Chegando a Lisboa, de carona, não consegue encontrar o endereço do amigo, Friedrich. E, quando adentra o edifício, descobre que o amigo não está lá.


Na casa há uma mesa de montagem com algum filme e uma câmara antiga - semelhante à das fotos de Vertov - sobre um tripé. Deita numa cama e dorme. Acorda com um grupo de crianças o filmando com as práticas câmeras portáteis, digitais, que permitem filmar horas e horas de imagens. Elas seguram as máquinas, filmam o estranho que dorme na cama de seu amigo Friedrich, mas em momento algum prestam atenção ao trabalho de composição das imagens. As câmeras digitais são encontradas em qualquer lugar, a preços razoáveis e qualquer pessoa pode manejá-las. O que não significa que saberá criar com elas. As crianças são postas por Wenders em cena como figuras desta ingenuidade moderna de criação. Com o digital todos se acreditam criadores, e creem que qualquer imagem pode ser comparada às outras, que possui tanta beleza quanto. Mas o que produzem são conjuntos de imagens descartáveis que, caso desapareçam, ninguém, nem mesmo seus criadores, sentirá falta.

As crianças correm para todos os lados sempre com a câmera ligada. Põe a máquina no rosto do engenheiro de som que tenta esconder-se do assédio. Mas não consegue passar todo o tempo longe desta maquinaria sempre ligada. Faz amizade com as crianças e mostra-lhes seu trabalho. Esconde-se por trás de uma parede, faz sons e pede para que elas adivinhem o que é. Entusiasmadas, elas dão identidade àqueles sons produzidos pelo homem. Nunca deixando de gravar, mesmo que o nada. Aquele agrupamento de imagens desordenadas será, depois, projetada numa parede da casa para que Winter assista. Ele não consegue assistir. São muitas horas de imagens sem conteúdo. E parece que Friedrich nunca lhes disse o que poderiam filmar ou deixar de filmar.


Assistindo o filme que o amigo sumido deixou na mesa de montagem é que Winter passa a ter noção de com que trabalhar. Sai às ruas lisboetas em busca dos sons. Descobre toda a beleza do lugar a partir daquele trabalho de segurar o microfone. Fecha os olhos e tenta captar as imagens sonoras - porque é isso o som do cinema - da vizinhança. Ouve o bater de asas dos pombos. Uma mulher que grita com alguém. Uma criança que canta uma cantiga. O mundo se abre perante àquela percepção calma e cuidadosa. O fazer artístico é um processo demorado e paciente. Diferente das imagens digitais das crianças - nenhum preconceito contra as crianças, elas são representação de algo no filme - que buscam o imediato e que podem ser descartadas (e este é um ponto muito caro a Wenders, as imagens descartáveis), a criação artística de filmes de cinema busca este algo além, aquele algo que não seria por nós alcançado no cotidiano. Como os pãezinhos que transformam-se em pés a bailar sobre a mesa com Charles Chaplin.

O cineasta amigo de Winter torna-se desacreditado do fazer cinema. As pessoas são bombardeadas por imagens o tempo todo, e agora também podem produzi-las. Não há mais o espanto e o encantamento que tinham as plateias de tempos idos. É verdade, não há. Mas o que é que de relevante vem sendo feito? As imagens vem sendo produzidas sem qualquer conteúdo relevante. Sem a beleza estética necessária. É isso que Manoel de Oliveira, em participação especial, vem nos lembrar. Posto em frente à câmara, o cineasta português põe-se a imitar Chaplin e seu caminhar pelas ruas lisboetas. O conjunto de belezas da cidade está aí para ser apreciada, mas o passar cotidiano pela arquitetura distancia o sujeito de sua apreciação. O cinema é capaz de trazê-las de volta. E por que não fazê-lo como Vertov fez ao filmar seu O homem com uma câmera?

terça-feira, 11 de novembro de 2014

A palavra no cinema


Com o passar dos tempos o homem desenvolveu e aperfeiçoou suas formas linguísticas, escritas e faladas. Hoje é muito mais simples nos expressarmos por meio da linguagem do que por meio de imagens. Existem determinados conceitos que são de extrema dificuldade de serem expressos (e entendidos) se não o for por meio da escrita ou da fala - e nem pensamos em fazê-lo de outra forma. O desenvolvimento da filosofia, por exemplo, se dá exatamente sobre este solo. Muitos dos embates filosóficos são desenvolvidos tomando como ponto de partida uma questão linguística, desenvolvendo-a em busca de um correspondente realista, no mundo.

Aqui se trata de falar de cinema. Neste caso, a linguagem escrita (em especial) exerce papel principal num quesito posterior do cinema: a teoria. Nela são desenvolvidas questões sobre os meios estéticos representativos e ontológicos do cinema que seriam de particular complexidade se não tivéssemos desenvolvido uma linguagem tão sofisticada quanto esta que utilizamos. Imagine se ainda nos servíssemos de caracteres de comunicação como de nossos antepassados que desenhavam nas paredes das cavernas: talvez não tivéssemos avançando tanto intelectualmente e nossa compreensão de mundo seria muito mais limitada.

Mas ainda assim o homem sempre buscou uma formulação imagética em que fosse desnecessário o uso linguístico para que fosse compreendido. É o caso, por exemplo, da pintura. Qualquer homem, de qualquer lugar do mundo, que fale a língua que for, terá compreensão semelhante a de outros homens acerca de determinada pintura – conquanto ela não seja abstrata. Ao nos depararmos com um quadro que apresente um homem sentado numa cadeira, compreendemos o que ele faz, o cenário em que está. E provavelmente compreenderemos até mesmo a significação de sua expressão facial.


No caso do cinema, em particular em seu período mudo, viu-se como uma das principais questões guiadoras desta nova forma artística era a de, como nas artes plástica, se libertar da palavra escrita para que pudesse se expressar somente por meio das imagens. Como é de conhecimento geral, no período do cinema mudo aqueles pontos mais complicados de serem expressos na imagem (como a fala dos personagens) apareciam em letreiros que interrompiam o fluxo contínuo da ação que se desenrolava. Era um processo pouco criativo do qual os cineastas cada vez mais tentaram se desvencilhar até o fim do período mudo.

Neste momento a palavra era vista como sendo inimiga do cinema. Era uma saída fácil que fazia o cineasta fugir de um meio mais criativo, e por consequência mais artístico. Era a transição de um pensamento, de uma ideia, para as imagens. Por meio de sobreposições e cortes que davam significação a determinadas cenas, o período mudo foi um dos momentos de maior efervescência criativa da história do cinema. O cineasta que se contentava a se curvar aos letreiros era visto como pouco artístico. Daí surge a genialidade de uma figura como Murnau e Chaplin. Ambos tentavam fazer seus filmes com o mínimo possível de letreiros, e ainda assim seus filmes são compreensíveis e envolventes, souberam reconhecer a essência da forma artística com a qual trabalhavam.

Mas no meio do caminho surge o cinema falado, e com ele todas as aspirações de um “cinema puro” – que seria um cinema feito sem a influência das outras artes, feito partindo de suas próprias particularidades – desmoronam. Os atores que, até então, tinham que se valer de inúmeras caretas para se fazerem entender, agora podiam resolver seus problemas falando algumas linhas escritas no roteiro. O cinema falado foi visto como o fim de um cinema poético, artístico, por grande parte dos entusiastas do cinema mudo. Mas até mesmo estes se curvaram às falas dos atores. Mesmo Chaplin que tentou o máximo que pôde manter acesa a chama da criatividade de outrora.


Com o cinema falado veio a preguiça. O cineasta não precisa mais pensar um meio de mostrar que o personagem está angustiado, ele simplesmente simplesmente o faz dizer que está angustiado. O espectador comum não se preocupa com esta questão porque está mais interessado na história que se desenrola. É assim que surgem os filmes de “teste de cadeira”, em que os personagens passam o filme inteiro a conversar, sentados. O espectador tem a impressão de ter visto um bom filme porque estes se assemelham muito com suas próprias vidas em que os problemas são resolvidos por meio de conversas, sem muitas ações. O cotidiano os acostuma a esta falta de inventividade do filme.

A palavra seria, assim, um conteúdo estranho ao mundo cinematográfico, que tende ao imagético. Um filme de ficção deve se resolver por meio de suas imagens, e é nesta inventividade que se encontra o traço mais característico de um cineasta-artista. Carlitos nunca precisou falar para ser engraçado. Nem mesmo em O grande ditador, quando as piadas eram todas feitas por meio dos gestos dos atores e não por falas engraçadinhas. O mesmo se dá com os filmes de Hitchcock. Ao entrevistá-lo, foi precisamente este o ponto que mais chamou atenção de Truffaut quanto à obra do mestre do suspense: não são necessárias palavras para a compreensão de seus filmes. Mesmo um espectador que não fale o idioma do filme seria capaz de entendê-lo somente pelo que se apresenta na tela.

É estranho que com o passar do tempo a palavra tenha ganho tanta atenção no cinema. Filmes que não são bons, que não possuem qualquer inventividade no modo de contar uma história (não necessariamente inventando algo de novo, pode usar as velhas fórmulas, contanto que seja criativo ao apresentar a história, abolindo o simples campo/contracampo das cenas de diálogos) são tidos como grandes obras de arte. Mas o que eles têm, na verdade, é um grande texto. Será esta característica o suficiente para que consideremos um filme como uma obra de arte? Não seria esta uma particularidade da literatura ou, quem sabe, do teatro?


A excelência do fazer cinematográfico encontra-se exatamente neste “como” contar a história, e não no simples “contar uma história”. É aí que se encontra, por exemplo, a genialidade de Godard ao filmar Acossado. A história de seu filme-debute é extremamente banal, semelhante a de tantos outros filmes, mas como Godard resolve conta-la é diferente de tudo o que se havia tentado fazer até então. Temos em frente a nossos olhos um filme que baila ao som do movimento da película que corre dentro da câmera: seus falsos raccord e seus planos-sequência são memoráveis.

Este ato de deixar a palavra escrita e falada de lado é um conhecimento que provém, em parte, dos curiosos de cinema que iam à cinemateca francesa conhecer a cinematografia de todo mundo. Os filmes nem sempre precisavam ser legendados para que eles assistissem, mesmo que não soubessem o idioma nele falado. Não necessitamos compreender espanhol para poder compreender a obra de Picasso. De sentir algo quando nos deparamos com ela. O mesmo deve acontecer com um filme. Aquele olhar choroso de Nana para a tela de cinema em Viver a vida, também de Godard, traduz isso. Se virmos uma pessoa chorando, de imediato nos simpatizamos por ela. Um bom cineasta deve saber traduzir este sentimento por meio das imagens de seu filme e não coloca-las na boca de algum ator. As lágrimas possuem mais valor que as palavras: "estou triste".

Alguns anos atrás um filme me chamou atenção. Wall-e era o mais novo lançamento da Pixar, e um dos lançamentos mais comentados do ano. A proposta é interessante, no aspecto fílmico. Como pode um cineasta desenvolver um filme centrado num robô solitário que não fala? O filme deveria se desenvolver todo por meio de imagens, dos atos limitados de um robô que não tinha articulações ou músculos expressivos como os que possui o homem. Ainda assim – talvez por se tratar de um filme infantil – os cineastas caem no lugar-comum de colocar alguns telões explicando o que até então as imagens poderiam por si só terem deixado implícito, esforçando o trabalho cooperativo do espectador com o filme.


Existe ainda uma saída que fora encontrada nos tempos do cinema mudo: o jornal. Era posto um personagem em cena lendo um jornal que logo seria posto em close-up quase como um letreiro. Mas não se tratava esta cena como sendo um letreiro, mas como uma saída inventiva. Na verdade, trata-se de uma trapaça. Um jornal em close-up é um letreiro, são palavras escritas sendo utilizadas para explicar alguma parte do filme de grande complexidade para ser executada por meio de imagens – ou muito longa. É escolhido o menor caminho em direção à saída.

Novamente, não podemos tomar um filme como uma obra artística por sua trama e pelo diálogo travado por seus personagens. Como o diretor se esforça para resolver os problemas da história que tem em mãos? Neste sentido, Hitchcock era gênio. Genialidade que provinha do fato de pensar seu filme em imagens e não em acontecimentos. Quando o cineasta se bate com o segundo ele deixa o primeiro (que é a essência do cinema) de lado. Os acontecimentos podem ser resolvidos sem qualquer inventividade. Ao invés de colocar um ônibus pegando fogo numa rua da cidade o cineasta prefere colocar um personagem comentado o fato.

O roteiro pode ser muito bem estruturado, muito bem escrito, mas não servir um bom filme. Poderíamos filmar um homem lendo Hamlet por uma hora e meia sentado em uma cadeira. O texto é maravilhoso, o filme ruim. Parte da inventividade do diretor saber traduzir Hamlet em imagens, sem que necessariamente se retire o belo texto de Shakespeare - e assim justifique a sua motivação de transformá-lo em filme. Mas como fazê-lo? Cabe a um grande artista pensá-lo.


É possível escrever por meio de imagens e se fazer entendido. É possível fazer passar uma ideia (Eisenstein, Vertov) ou uma emoção (Murnau, Hitchcock) sem o uso de palavras. Daí a ideia de que o cinema possui uma linguagem própria – se ele possui uma linguagem própria não seria necessária outra, como os livros que geralmente não necessitam de ilustrações para se fazer entendido. Daí, também, intitularmos este texto por "a palavra no cinema", já que na sétima arte existem dois tipos de linguagem. Concluímos que a palavra é uma substância estranha dentro do cinema.

Isto em nada impede o uso das palavras por parte dos atores. Hitchcock fez grande parte de seus filmes durante o período falado, mas nem por isso ele se curvou às palavras para contar suas histórias. É aceita a palavra no cinema, contanto que ela não substitua a imagem. O realismo almejado pelos cineastas do cinema falado se dá com a presença da palavra, mas isto não significa que seus filmes devam ficar submissos ao uso da palavra escrita ou falada. É o que nos mostra Richard Linklater em Antes doamanhecer: o filme é constituído de longas conversas, mas nem por isso a paixão que cresce entre os personagens passa despercebida pela imagem. Muito pelo contrário. Os personagens não falam de seu desejo um pelo outro até o fim do filme, e quando chegamos a este momento já sabemos tudo aquilo que eles externam por meio das falas. A cena em que o casal escuta um disco dentro da cabine da loja de música é um exemplo do sucesso do filme enquanto filme (cinema).

O cinema é a arte das imagens em movimento e deve ser pensado e feito como tal.



[Este texto faz parte da série a palavra no cinema, publicada aqui no blog em novembro de 2014. Seguem este texto: 
A palavra e o invisível
A palavra e seu império]

[as imagens: 1- Acossado (Godard); 2 - Encouraçado Potemkin (Eisenstein); 3 - Janela indiscreta (Hitchcock); 4 - Luzes da cidade (Chaplin); 5 - Aurora (Murnau); 6 - Antes do amanhecer (Linklater).]