Em ocasião do lançamento de meu livro, A metafísica da cinefilia, onde busco compreender filosoficamente a cinefilia como uma emoção, trago aos leitores deste blog uma lista com 10 filmes sobre a cinefilia (para além de Cinema paradiso).
O
critério do que seria um filme sobre a cinefilia é apresentar personagens apaixonados
pelo cinema em uma relação espectatorial contínua, ou seja, não encerrando em
apenas uma cena de ida ao cinema. Descartamos igualmente os filmes sobre
produção e filmagem, nosso interesse é particularmente por filmes focando a
experiência do espectador (o que nos leva a não incluir alguns dos filmes dos
cinéfilos da Nouvelle Vague).
A lista procura ser o mais democrática possível, trazendo indicações que levantem a curiosidade do leitor, quiçá atiçando a assistir as obras desta lista. Convidamos também a abertura de sugestões nos comentários.
1. Sherlock Jr., 1924, dir. Buster
Keaton
Neste clássico
de Buster Keaton, um jovem projecionista altamente sugestionável pelos filmes
que assiste, tenta solucionar o mistério de quem haveria roubado o relógio de
bolso do pai de sua namorada. Caindo no sono durante a projeção de um filme, o
jovem se vê transportado para dentro da tela, transformando-se em personagem.
Esta é uma das cenas mais fantásticas do cinema, utilizando diversos recursos
técnicos para criar gags cômicas que levam a personagem de um cenário a
outro num piscar de olhos, sem qualquer aviso prévio de mudança.
Filme de 1924, Sherlock Jr. (disponível no Youtube) apresenta como
subtexto uma juventude que forma seu caráter assistindo a filmes, imitando os
gestos das personagens da tela.
2.
Eu, você, e a garota que vai morrer, 2015, dir.
Alfonso Gomes-Rejon
A cinefilia dos
adolescentes de Eu, você e a garota que vai morrer reflete a de muita
gente que vive em cidades do interior, sem acesso às salas de cinema. Ela se
passa na sala de casa, assistindo filmes em DVD (ou Blu-ray, ou streaming, ou
download) e vivendo no choque posterior que cada um desses filmes causa. Greg e
seu amigo Earl assistem clássicos do cinema mundial, mais tarde fazendo vídeos parodiando
estes mesmos filmes partindo apenas de um trocadilho engraçadinho.
São muitas as referências aos clássicos que todos cinéfilo já devem ter
assistido ao menos uma vez ao longo da vida. O bonito desta obra é como ela
demonstra o papel algo terapêutico do cinema em acomodar nossas crises
pessoais, em mostrar também o papel agregador da cinefilia ao unir pessoas de
inaptidão social.
3.
As poltronas do cine Alcazar, 1989, Luc Moullet
Feito por um
cinéfilo profissional, ou seja, um crítico de cinema da mítica revista francesa
Cahiers du cinema, este filme acompanha um crítico de cinema da mesma
publicação assistindo sessões de filmes do cineasta italiano Vittorio
Cottafavi. Um dia, ele nota a presença de uma mulher nas cadeiras do cinema,
uma crítica para uma revista rival, a Positif.
Esta obra é como uma grande piada interna para um grupo seleto de
cinéfilos conhecedores dos anos de ouro da cinefilia francesa dos anos 1950-60,
quando autores como François Truffaut, Jean-Luc Godard, Claude Chabrol, André
Bazin, Éric Rohmer, escreviam para os Cahiers tendo como preferidos
autores que eram menosprezados pelos críticos da Positif. Para além
disso, ainda são dados alguns detalhes de como estes cinéfilos acompanhavam os
filmes, buscando as cadeiras da primeira fila do cinema (reservada para as
crianças) para ser o primeiro a receber as imagens.
4.
A rosa púrpura do Cairo, 1985, dir. Woody Allen
Sem dúvida uma
das maiores obras de Woody Allen, A rosa púrpura do Cairo apresenta uma
dona de casa que sofre com os abusos de seu marido, buscando refúgio nas
fantasias da sala de cinema. Inspirado em peça de Luigi Pirandello, o filme
apresenta Cecilia, que de tanto assistir ao mesmo filme já chegou a decorar as
falas, o que desperta a curiosidade... dos personagens do filme! Então Tom
Baxter, personagem da obra, transpõe os limites entre os dois mundos e salta
para o outro lado da tela, passando a fazer parte do mundo de Cecilia.
Muito próximo do tema de Sherlock Jr., A rosa púrpura do Cairo
imagina o aspecto escapista da fantasia, quando a espectadora imerge a tal
ponto no mundo da ficção que já não consegue distinguir o real do não real. O
processo de reconhecimento do real por parte de Cecilia é um dos momentos mais
tocantes da filmografia de Woody Allen.
5.
Adeus,
Dragon Inn, 2003, dir. Tsai Ming-Liang
Um gigantesco
cinema de Taiwan está para fechar as portas. Como última sessão, exibem um
filme de artes marciais antigo. São muitas as cadeiras vazias, preenchidas por
personagens que parecem pouco se importar com o filme e mais uns com os outros.
Adeus, Dragon Inn é um filme sobre a decadência do ir ao cinema, quando
as salas fora de shoppings ou museus passam a ser frequentadas por figuras em
busca de encontros sexuais.
Um filme silencioso, onde o olhar das personagens é o que mais fala, Dragon
Inn tem apenas quatro falas ao final, quando o filme já encerrou, no devido
respeito cinéfilo ao filme sendo exibido. Não surpreende que as falas sejam
feitas por dois senhores acompanhando o filme com seus netos. Ao que parece,
fizeram parte da produção daquele filme que vemos em partes quando a câmera se
volta para a tela. É um filme de adeus, mas que pode também ser um novo começo
– os avôs levando seus netos é a formação de novo público, renovando interesse
pela arte do cinema.
6. Close-up, 1990 / Shirin, 2008, dir.
Abbas Kiarostami
Temos aqui dois
filmes do mestre iraniano Abbas Kiarostami. O primeiro, Close-up, é um
misto de documentário e ficção. Atraído pela história de um cinéfilo, Hossain
Sabzian, que fingiu ser o cineasta Mohsen Makhmalbaf para convencer uma família
de que eles iriam atuar em seu novo filme, Kiarostami vai até a prisão onde
está o homem para entrevistá-lo e propor que façam um filme recontando a
própria história. Para quem tem curiosidade de conhecer um cinema profundamente
humanista, o primeiro passo é conhecer os filmes de Kiarostami e como ele filma
suas personagens.
O segundo filme aqui apresentado é Shirin, uma obra bem diferente
do tradicional. Kiarostami convida algumas das atrizes mais famosas do Irã para
a sala de cinema que tem em sua casa. Elas assistirão a um filme contando uma
antiga história persa a respeito de Shirin. Enquanto escutamos a história, tudo
que Kiarostami nos oferece são as feições das atrizes, ou seja, das
espectadoras assistindo a história daquela mulher numa tela que não vemos. O
interesse volta-se da ação na tela para as emoções que surgem nos espectadores.
Porque também nós construímos o nosso próprio filme a medida em que assistimos.
7.
Rebobine, por favor, 2008, dir. Michel Gondry
Filme de Michel
Gondry (diretor de Brilho eterno de uma mente sem lembranças), guarda
algumas semelhanças com Eu, você e a garota que vai morrer, ainda que
não seja tão comovente quanto. Aqui, a cinefilia envolve o aluguel de filmes em
VHS, e a sua eventual queda. De fato, o tempo de glória do VHS não foi
duradouro. Quando a personagem de Jack Black inadvertidamente apaga todo o
conteúdo dos filmes, ele e o atendente da locadora se veem obrigados a
preencher o conteúdo das fitas. O que fazem é filmar ao seu próprio estilo, com
os recursos disponíveis à mão, alguns dos filmes mais famosos dos anos 1980 – Robocop,
Os Caça-fantasmas...
8.
Os sonhadores, 2003, dir. Bernardo Bertolucci
Bernardo
Bertolucci relembra a cinefilia formada em torno da Cinemateca Francesa,
responsável pela criação de muitos intelectuais. Iniciando com as manifestações
contra a deposição de Henri Langlois de seu cargo de presidente da Cinemateca
pelo governo De Gaulle, o filme mostra o papel do cinema no desenvolvimento
intelectual da juventude, e a fomentação do sentimento de mudar os rumos da
história. A obra acompanha não somente as manifestações em apoio a Langlois, como
também o maior de 1968 na capital francesa.
9.
Pornográphico, 2008, dir. Paula Gomes, Haroldo
Borges
Estava dividido
entre Lisbela e o prisioneiro e Cine Holiúdi, quando a memória me
trouxe esta pérola do curta-metragem brasileiro. Acompanhando um projecionista
de cinema pornográfico, que noite após noite acompanha a chegada de homens em
busca de sexo fácil e de prostitutas. Numa noite chuvosa, a única espectadora
do cinema é uma deslumbrante prostituta num vestido vermelho, algo como uma
aparição de algum filme que o projecionista teria assistido anos antes.
Aproveitando a solidão da moça, ele aproveita e saca outra película que tem
guardada em seu estoque: Cantando na chuva. A moça, surpresa, rasga um
sorriso com a poesia do momento.
10. Splendor,
1989, dir. Ettore Scola
Marcelo
Mastroiani é dono de um cinema numa cidadezinha italiana, o Splendor. Como há
muito tempo os espectadores dos filmes que traz para assistir não são
suficientes para pagar as dívidas, ele se vê obrigado a vender o prédio para
construção de uma loja de departamentos. Nesta obra, Ettore Scola passeia pela
história do cinema na Itália, desde os tempos do cinema itinerante, montando
uma tela em praça pública para exibir filmes silenciosos para comunidades de
moradores em vilarejos, contando com a ajuda local para apagar os candeeiros
das praças para diminuir a luz e ajudar na projeção. Vale ainda apontar para a
presença da personagem Luigi, o ajudante do Splendor, cinéfilo que conhece tudo
de cinema e tem nomes de filmes, estrelas e diretores na ponta da língua.
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