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sábado, 12 de agosto de 2017

Catando imagens digitais


            Quando adolescente pude comprar uma câmera digital. Uma filmadora, para ser mais preciso. Esperava com ela saciar minhas aspirações criadoras, de contador de histórias. Mas algo desta experiência de contato próximo com uma câmera me incomodava. As imagens que gravava não tinham a qualidade que apresentam os filmes que via. E eu queria fazer filmes como aqueles, claro sabendo das limitações materiais, mas esperando que a câmera me fornecesse uma imagem limpa. Algo que pudesse aproximar minhas produções modestas daquelas que admirava. Aproximar meu filme feito com câmera de 900 reais dos filmes filmados em película. Comecei a aceitar, relutantemente, a diferença. Aproveitei para aprender alguns detalhes artísticos. Se tecnicamente pode ser que não tivesse imagem semelhante, ao menos em composição e iluminação de quadro pudesse fazer algo melhor. De qualquer jeito, os “problemas” que me incomodavam muito permaneciam lá: as silhuetas de corpos em movimento se perdiam em quadriculados típicos da imagem digital; o microfone captava o som dos fios ou o que quer mais que estivesse solto dentro da câmera, quando filmava em movimento, com a câmera na mão; o microfone ainda captava a alavanca de zoom sendo operada. Tudo isto me incomodava e eu queria fazer filmes o mais profissionalmente possível. O caso é que o “profissionalismo” que eu buscava se encontrava diretamente ligado a uma estética do filme (que inviabiliza a câmera, mascara o fato de ser um filme) e uma forma de produzir (os programas e profissionais que “limpam” o filme). O que não conhecia então é a existência de vários cinemas que lutam contra isto.

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            Em minhas pesquisas sobre filmes, em minhas buscas cinefílicas, encontrei Prazeres desconhecidos (2002), do chinês Jia Zhangke. Cheguei a este autor como costumo chegar a tantos outros: a acumulação de citações e referências à sua obra nas críticas, nas colunas, nas entrevistas sobre cinema. Pouco lembro do filme, mas lembro do impacto que causou em mim as imagens filmadas em digital. Escolhi assisti Prazeres desconhecidos porque tinha lido um texto em que dizia que tinha sido filmado em DV. Conhecia o formato e fiquei curioso de ver um filme “profissional” feito em DV, que até onde sei foi criado para ficar no lugar do VHS. E uma das coisas que mais me deixou impactado com o filme foi exatamente a má qualidade da gravação em digital, e como isto não parecia ser tão importante para Jia construir seu filme. Uma coisa lembro com certa clareza: o mesmo “problema” que via em minha câmera, vi no filme de Jia. As imagens quadriculadas, não por conta da baixa qualidade da cópia em que vi o filme, e sim pelo formato em que o filme havia sido gravado. Porque era o mesmo “problema” que tinha em minha câmera digital: as bordas dos corpos em movimento não desenhando um tracejado preciso. O que me passei na época foi a relação entre o digital e a modernização trazida à sociedade pelos mecanismos do capital. 15 anos separam o lançamento de Prazeres desconhecidos da data em que escrevo este texto. Nestes 15 anos as câmeras DV deram lugar à câmera em DVD, que deu lugar ao armazenamento em cartão de memória ou HD interno, a imagem deixou de ter qualidade de 720p, para 1080p, hoje já se encontrando em 4k – formato que, dizem, aproxima o digital da película de alta qualidade. O digital visto sob esta perspectiva poderia ser considerada como um formato terrivelmente arriscado para se filmar. Um filme gravado em digital, daqui alguns anos, estará marcado pela idade do formato em que fora filmado (foi um dos motivos que levou Richard Linklater a optar por filmar Boyhood em película). Em parte, é o que acontece com Prazeres desconhecidos. E coisa que não acontecia com o filme em película – a má qualidade do filme se apresenta em maior granulação da imagem, o que de longe é visto como uma má qualidade ou um aspecto datado. Prazeres desconhecidos poderá perder este caráter de “datado” caso seja feita uma restauração tal como se costuma fazer de certos filmes – ajustando cores, sons. O que acontece é que o objetivo de Jia não era de fazer um filme “limpo”. O digital é parte deste mundo moderno, desta nova fase da sociedade globalizada.
            Bom lembrar que Jia não foi único no uso do digital, muito menos pioneiro. Devemos lembrar de Lars von Trier, que para além de seu uso do plano do dogma por ele desenhado junto a outros cineastas dinamarqueses, adicionou à conta a filmagem de longas-metragem em digital. Coisa que cabia perfeitamente dentro do novo mundo que Trier queria trabalhar em seus filmes pós-dogma. O digital permite maior liberdade para a câmera de entrar na ação, de dar ar frenético. É o que Trier faz em seus filmes, mesmo naqueles em que não mais utiliza uma tecnologia menor para produção (seu constante e nem sempre justificado uso da câmera na mão). Jia faz o contrário em Prazeres desconhecidos.

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            Uma dos usos que mais me chamou atenção com o uso do digital partiu de um filme que não esperava ter esse discurso tão bem desenvolvido. E num filme realizado não muito distante cronologicamente de Prazeres desconhecidos. De 2000, Catadores e eu é um filme a primeira vista bastante singelo de Agnes Varda. Mais uma vez Varda nos convidando para o seu mundo, sua paixão pelos gatos, para dentro de sua casa, para suas viagens, para sua vizinhança. Mas desta vez há algo de diferente: o uso do digital. Coisa que ela deixa bem claro, desde o início. Se se mostra carregando a câmera, consideravelmente mais simples, mais leve, mais maleável que as outras em película – e de menores gastos. Para os projetos de Varda, nada poderia casar melhor do que uma câmera digital.
            Antes de continuar o comentário sobre o filme de Varda, voltemos um pouco no tempo, para aquele 1994 em Lisboa com Wim Wenders. O céu de Lisboa se dirige diretamente a esta transformação no fazer fílmico. A passagem da película para o digital. O cineasta em crise que desaparece e arma crianças da vizinhança com câmeras digitais que filmam inúmeras inutilidades. Verdade, o lixo imagético produzido pelo digital é enorme! (Demos uma olhada breve na internet). Ao momento em que Wenders faz este filme duas coisas se somavam: a má qualidade dos equipamentos digitais e a incapacidade dos profissionais de cinema em saber trabalhar com digital. O que nos traz de volta a Varda. Um filme sobre as pessoas que catam o que é jogado fora pelos outros é tema interessante para um filme: mais interessante ainda é fazer este filme em digital, quando a capacidade e falta de culpa em filmar tudo, jogar fora muito, utilizar de fato pouco, é muito mais fácil (e barato). Assim como suas personagens que se alimentam do que sobra nas feiras, do que os supermercados jogam fora porque “não parece mais bonito para o comprador”, Varda recupera as imagens que seriam imediatamente descaradas por qualquer montador com algum senso estético. Um senso estético desenvolvido ao longo de décadas de fazer cinema. Daí aparecer em Os catadores e eu imagens em que Varda, supostamente, deixou a câmera filmando, e na tela vemos o chão e a tampa da tela pendurada por uma cordinha. Um plano naturalmente descartável – não para Varda, seguindo a lógica do discurso de suas personagens.
            O que me remonta a um dado curioso que lembro de ter apreendido ainda adolescente, quando de minha crise com a câmera digital que tinha comprado, incapaz à época de fazer a associação. Sem destino (1969) trouxe para o cinema hollywoodiano algo de novo para sua estética, que até então seria encarado como “problema”, “defeito”, ou mesmo falta de “profissionalismo” dos envolvidos. Quando se filma um pôr-do-sol um problema frequente é a luz batendo nas lentes da câmera e criando manchas (vários círculos que aparecem na imagem final). Até os anos 1960 este tipo de imagem seria descartada de imediato da montagem. Seria uma imagem defeituosa que não merece fazer parte do filme. Isso porque não coaduna com a estética realista que o cinema tradicional prefere passar: enganar o espectador o máximo de tempo possível do realismo dos eventos que ocorrem a sua frente. Não devemos nos dar conta de que há cortes no filme, muito menos de que há uma câmera. Os cortes devem ser invisíveis (daí as regras de sequência), assim como a câmera (nada de imagens de sombra ou reflexo da câmera). As manchas da luz do sol nas lentes é sinal de que o que estamos assistindo é um filme e quebraria a “ilusão” do real – tão cuidadosamente trabalhada por todos os outros departamentos que cuidam da aparência de um filme (figurino, cenários). Para uma rebelião, uma nova estética. Sem destino queria apresentar ao mundo o cinema da contracultura, certamente não poderia fazê-lo sob a forma do velho cinema.

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            Assistir a Os catadores e eu despertou em mim a ciência de que o digital é uma nova forma de fazer cinema. Nada de muito original de minha parte. Um momento em que o cinema se abre mais amplamente para a independência dos cineastas. Abre as portas para que mais pessoas possam fazer cinema. Para que possam fazer seus filmes. Ampliara as fronteiras da estética cinematográfica. Varda entendeu isso. Em parte porque seu cinema já se desenhava neste sentido, o digital foi um adendo. Seu cinema de caráter coletivista, familiar. Feito em casa, não em estúdio. O que é mais importante de Os catadores e eu, sob esta perspectiva, é que o digital não deve ser utilizado simplesmente como mais um formato de filmar. Deve ser enxergado como meio para construção de uma nova estética do cinema. Em que os restos podem (e devem) ser reaproveitados. Não é defeito deixar a câmera aparecer, não é defeito o microfone captar mais do que o movimento dos atores e suas falas. É próprio do digital. Antes mesmo do digital Abbas Kiarostami já fazia filme em que ficava explícito ser um filme. Em Close-up, a câmera segue suas personagens e o diretor e operador de câmera conversam. Microfones são instalados nas personagens. O microfone deixa de seu escutado numa cena externa. Isto Kiarostami fez ainda em película. Em digital, as opções se ampliam. Não é por qualquer “defeito” técnico que o espectador deixará de acompanhar o filme – esta parece ser uma das principais considerações dos defensores do realismo do filme de ficção, em que a técnica deve estar invisível. A tentativa de fazer a ficção “credível”. Mas o digital passou a ser abraçado pelos cineastas, mesmo pelo grande cinema de Hollywood. E assim, os realizadores menores, independentes, passaram a se valer de técnicas avançadas (em alguns casos de alto custo para o tipo de filme que fazem, para o tipo de investimento que podem fazer) buscando aproximar-se da estética padrão corrente no cinema mundial. Foi esta busca pela padronização com o que faz o grande cinema que me deixou em conflito com o digital. Este conflito não era só meu. Porque há a possibilidade de tachar um filme de “amador” simplesmente pelo abraçamento do digital em sua crueza. Uma câmera de película 35mm não era viável para qualquer realizador, e a maioria alugava o equipamento. O digital é acessível a todos. O que não é acessível a todos é a estética final empregada nos filmes. O que tende a universalizar os filmes. Criar uma estética padrão do que é o “bom cinema”. O filme de cores controladas, de som trabalhado exaustivamente em pós-produção para inserir detalhes ínfimos com maior clareza. O digital deveria ser o momento de assumir riscos por parte do realizador. De mostrar os restos como alimentos de boa qualidade. Quiçá adotar algumas características do primeiro cinema? (Como o duplo pouso na lua em Viagem à lua, de Méliès).

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            Isto dito, chegou a hora de fazer as pazes com minha velha câmera. Pena, ela não funciona mais. Males do século XXI.

sábado, 12 de dezembro de 2015

Eu nasci, mas... (meninos de Tóquio) de Yasujiro Ozu (Umarete wa mita keredo, 1932)


A infância, para muitos autores de cinema, se constitui de um período de anarquia em que o sujeito em formação adota em seu comportamento atitudes que não são cabíveis dentro da sociedade em que se encontra inserido. A rebelião de Zero de conduta, de Jean Vigo, serve de exemplo a esta afirmação. As crianças são enquadradas, com o tempo, nos moldes sociais construídos pelos adultos, como se isso fosse o meio mais correto de convivência uns com os outros - sabemos pelo cotidiano que não é, ainda assim insistimos nesta fórmula por agradar alguns. Crescendo, aceitamos tais ditames por um misto de conformismo e comodidade - lutar contra tudo isso não é fácil. Vigo, em seu filme, põe as crianças para gritarem contra estes moldes sociais que lhes tiram a imaginação e a capacidade de serem pensantes para que se tornem somente parte do gado humano. Mas este é um lado bem próprio do pensamento anarquista famoso de Jean Vigo.

Por outro lado temos um filme como Eu nasci, mas..., de Yasujiro Ozu. O cineasta japonês não é um famoso anarquista. Muito pelo contrário, seu posicionamento político nunca ficou muito claro. Será que Ozu defendia alguma bandeira ideológica? É possível que sim. O que sabemos é que seus filmes apresentam sempre a transição na vida das pessoas. Como bem captura Wim Wenders em Tokyo-Ga, a imagem recorrente dos trens nos filmes de Ozu é esta metáfora. O trem é o que nos leva de um espaço a outro, o filme de um momento a outro da vida de um personagem. Neste Eu nasci, mas... temos uma obra ainda do período mudo do cineasta.


Dois irmãos, acompanhando o movimento dos pais, se mudam para Tóquio e chegam a uma nova vizinhança. As crianças da vizinhança já estão bem dispostos em um grupo hierárquico que toma como figura central um garoto brigão, que nem todos querem encarar por ser maior do que todos eles. Um dos dois irmãos, comendo um pão e brincando com um aparelho, tem seu primeiro contato com este grupo. Ameaça entrar numa briga com o garoto mandão, mas sai chorando assim que leva o primeiro golpe. Dá-se aquilo que parece ser o modelo mais primitivo de vida em sociedade: a violência. O mais forte é quem comanda, e os outros, por medo, obedecem.

O garoto chama seu irmão, não muito mais velho, não muito maior que ele, mas um tanto mais corajoso. O menino enfrenta o manda-chuva local, mas não vai muito mais longe do que isso. No dia seguinte, os dois recuam e não entram na escola ao ver, no pátio, o garoto que os ameaçou. Este medo que as crianças sentem deste garoto mais forte que estuda na mesma turma que eles fomenta uma admiração tardia. Na sala de aula, em meio a um ditado do professor, o manda-chuva quebra um ovo de pardal na mesa e come o seu conteúdo ainda cru. Os meninos fazem a sua caça na mesma tarde imaginando ser aquele o segredo que deixa o brigão, forte.


Os meninos pensam em seguir os seus passos. Seu pai lhes diz para serem importantes, e quando criança para ser importante é ser forte. É ter a capacidade de brigar com aquele garoto que os chama para briga e derrotá-lo. Mas eles somente conseguem tirar este garoto de lado quando surge um menino mais velho e maior que desfaz este comportamento do garoto brigão.

Estudam para tirar boas notas, e até fingem as boas notas para agradar os pais. Principalmente o pai que os acompanha por boa parte do caminho falando o quão bom aluno era, de como tirava sempre boas notas, e de como é importante estudar para se tornar alguém importante. Frente a esta propaganda, as crianças veem em seu pai uma figura impressionante. Mas, assim como nos mostra Ladrões de bicicleta, chega o dia fatídico em que encaramos nosso pai como ele realmente é, não como o ser perfeito que idealizamos em nossos primeiros anos, e sim enquanto o ser falho que ele realmente é. Numa exibição de um filme da companhia em que o pai trabalha, os meninos têm a grande revelação de que a fala de seu pai não queria dizer a verdade. Nas imagens projetadas na tela, os meninos veem que o pai é um puxa-saco dos chefes.


As crianças descobrem a grande injustiça da sociedade dividida em classes, e como é realmente estar por baixo. Viam-se por baixo do garoto mais forte, mas ainda assim alimentavam a ideia de poder estar por cima por meio dos estudos. O que escutam do pai lhes joga um balde de água fria. Mesmo que estudem, pode ser que não venham a ser alguém importante. Transformarem-se num simples funcionário como o pai é para o pai de um de seus amigos. É a primeira visão da criança do mundo em que vivem, e o viver um dia após o outro não é outra coisa senão o conformar.

O pai encontra no caminho da escola o chefe que também leva seu filho. Envergonhado, o pai para na estrada na tentativa de evitar o confronto com o homem. Os filhos, já tendo compreendido a situação do pai, insistem para que ele vá falar com o homem. As crianças pautam a sua relação com o menino filho do chefe. Com ele, tratam de manter a sua superioridade numa brincadeira que obriga seu parceiro a deitar no chão de terra. Mas enquanto criança, vai tudo bem, e assim eles se abraçam. A organização da vida em sociedade é injusta, pondo uns sobre os outros. A uma primeira visão o filme, Ozu pode nos parecer conformista, colocando os meninos filhos do empregado junto ao filho do patrão, quando na verdade ele foge daquele final de 1900, de Bertolucci. Ao invés de permanecer nesta luta eterna, por que não juntarem-se todos? Mais uma vez é por meio do olhar da criança que o cinema encontra a resposta para o mundo dos adultos. E teimamos em acreditar que é só coisa de criança.


Mas será que Ozu coloca este final em seu filme ou somos nós quem o inserimos no filme? Se analisarmo a mise-en-scène de Ozu, vemos um cineasta preocupado filmar determinadas personagens. A câmera fixa não invade o espaço de seus personagens, não insere naquela realidade uma visão bem perspectivista que nos provocaria a produção de uma conclusão fácil, como os filmes tese de Eisenstein. Ao manter sua câmera fixa, Ozu simplesmente diz à realidade para que ela se sobressaia de toda aquela encenação fictícia. Numa formulação mais filosófica, de que a duração do mundo seja desvelada pela câmera de filmar. Ao fim, o que podemos afirmar de seu filme é o retrato de uma passagem dentro da infância. Em Eu nasci, mas... não há o fim da infância, mas de uma fase da infância, um momento da infância em que o mundo é fantasiado. As crianças, assim como a câmera de Ozu, deixa de enxergar a fantasia para ver a realidade, mas com a esperança de que eles possam fazer diferente.

sábado, 29 de agosto de 2015

O céu de Lisboa de Wim Wenders (Lisbon Story, 1994)


Truffaut já escrevia, em prefácio ao livro de textos de André Bazin sobre, que mesmo entre aqueles que não reconheciam o cinema enquanto uma arte, Charles Chaplin tinha seu espaço. O artista inglês conquistou este lugar considerável no imaginário mundial poetizando a vida comum, a vida das pessoas simples. Enxergando beleza onde todos os outros veriam somente a miséria. Não são poucos os filósofos que indicarão que o artista é aquele que transforma o ordinário em extraordinário. É exatamente isso que faz Chaplin com os pãezinhos em Em busca do ouro. Aquilo que encontramos todos os dias e cujo trato é sempre igual é transformado pelo cômico inglês num baile. É numa homenagem a este tipo de visionário que Wim Wenders vai até a capital portuguesa filmar O céu de Lisboa. Em tempos de filmes digitais, quando as imagens tornaram-se descartáveis porque todos podem produzi-las aos montes, o cineasta alemão faz este retorno às origens, a busca dos poetas do cinematógrafo.

Tudo começa com um ciao a Fellini. O italiano que também possui suas inspirações chaplinianas (ou partilha das mesmas inspirações), surge na capa de um jornal que noticia seu falecimento. A morte de um autor como Fellini poderia anunciar os tempos críticos do cinema. E parece ser exatamente isso que se anuncia por alguns momentos durante a película. Phillip Winter recebe um postal de um amigo cineasta que está a filmar em Lisboa e precisa que ele até lá viaje para fazer o trabalho de som do filme. Na primeira recusa à modernidade prática, Winter escolhe ir da Alemanha à Portugal não de avião, mas de carro. Neste caminho, a influência dos cômicos do cinema mudo torna-se explícita. Winter está de pé quebrado e dirige. O pneu fura numa ponte e ele deixa cair o pneu reserva no rio. Mais tarde falta água no radiador, que ele repõe com Coca-Cola. O carro quebra. Chegando a Lisboa, de carona, não consegue encontrar o endereço do amigo, Friedrich. E, quando adentra o edifício, descobre que o amigo não está lá.


Na casa há uma mesa de montagem com algum filme e uma câmara antiga - semelhante à das fotos de Vertov - sobre um tripé. Deita numa cama e dorme. Acorda com um grupo de crianças o filmando com as práticas câmeras portáteis, digitais, que permitem filmar horas e horas de imagens. Elas seguram as máquinas, filmam o estranho que dorme na cama de seu amigo Friedrich, mas em momento algum prestam atenção ao trabalho de composição das imagens. As câmeras digitais são encontradas em qualquer lugar, a preços razoáveis e qualquer pessoa pode manejá-las. O que não significa que saberá criar com elas. As crianças são postas por Wenders em cena como figuras desta ingenuidade moderna de criação. Com o digital todos se acreditam criadores, e creem que qualquer imagem pode ser comparada às outras, que possui tanta beleza quanto. Mas o que produzem são conjuntos de imagens descartáveis que, caso desapareçam, ninguém, nem mesmo seus criadores, sentirá falta.

As crianças correm para todos os lados sempre com a câmera ligada. Põe a máquina no rosto do engenheiro de som que tenta esconder-se do assédio. Mas não consegue passar todo o tempo longe desta maquinaria sempre ligada. Faz amizade com as crianças e mostra-lhes seu trabalho. Esconde-se por trás de uma parede, faz sons e pede para que elas adivinhem o que é. Entusiasmadas, elas dão identidade àqueles sons produzidos pelo homem. Nunca deixando de gravar, mesmo que o nada. Aquele agrupamento de imagens desordenadas será, depois, projetada numa parede da casa para que Winter assista. Ele não consegue assistir. São muitas horas de imagens sem conteúdo. E parece que Friedrich nunca lhes disse o que poderiam filmar ou deixar de filmar.


Assistindo o filme que o amigo sumido deixou na mesa de montagem é que Winter passa a ter noção de com que trabalhar. Sai às ruas lisboetas em busca dos sons. Descobre toda a beleza do lugar a partir daquele trabalho de segurar o microfone. Fecha os olhos e tenta captar as imagens sonoras - porque é isso o som do cinema - da vizinhança. Ouve o bater de asas dos pombos. Uma mulher que grita com alguém. Uma criança que canta uma cantiga. O mundo se abre perante àquela percepção calma e cuidadosa. O fazer artístico é um processo demorado e paciente. Diferente das imagens digitais das crianças - nenhum preconceito contra as crianças, elas são representação de algo no filme - que buscam o imediato e que podem ser descartadas (e este é um ponto muito caro a Wenders, as imagens descartáveis), a criação artística de filmes de cinema busca este algo além, aquele algo que não seria por nós alcançado no cotidiano. Como os pãezinhos que transformam-se em pés a bailar sobre a mesa com Charles Chaplin.

O cineasta amigo de Winter torna-se desacreditado do fazer cinema. As pessoas são bombardeadas por imagens o tempo todo, e agora também podem produzi-las. Não há mais o espanto e o encantamento que tinham as plateias de tempos idos. É verdade, não há. Mas o que é que de relevante vem sendo feito? As imagens vem sendo produzidas sem qualquer conteúdo relevante. Sem a beleza estética necessária. É isso que Manoel de Oliveira, em participação especial, vem nos lembrar. Posto em frente à câmara, o cineasta português põe-se a imitar Chaplin e seu caminhar pelas ruas lisboetas. O conjunto de belezas da cidade está aí para ser apreciada, mas o passar cotidiano pela arquitetura distancia o sujeito de sua apreciação. O cinema é capaz de trazê-las de volta. E por que não fazê-lo como Vertov fez ao filmar seu O homem com uma câmera?

quarta-feira, 15 de julho de 2015

O medo do goleiro diante do pênalti de Wim Wenders (Die Angst des Tormanns beim Elfmeter, 1972)


O homem tem uma preferência pela ação. Seu pensamento é todo moldado para o ato. Seja ele qual for, o objetivo é fazer algo. Sempre. Mas e se esta lógica é revertida? Difícil de pensar. Estamos habituados a pensar na ação, utilizar a consciência em prol da produção prática de eventos. Nisso, até mesmo nosso ato de olhar o mundo é influenciado: estamos sempre em busca da ação. Ao ir para o teatro, buscaremos no palco o movimento - nosso olhar se dirige a quem pega a arma na mesa. No futebol é a mesma coisa. Olhamos para quem está com a bola. Se numa história de mistério queremos saber quem é o assassino para ter certeza de que ele pagará por seu crime ao final, num jogo de futebol temos que seguir a bola para que ela chegue ao gol, o objetivo principal do esporte. Mas, e o goleiro?

Na ação do gol, o goleiro é tão importante quanto a bola. A bola passa a mera coadjuvante quando o guardador do objetivo consegue defender um pênalti, por exemplo. Ele é o salvador do time, o carrasco do adversário. Mas o seu momento de protagonismo é dado somente neste curto tempo de glória. A atenção do jogo somente se volta a ele quando a bola, este objeto inanimado que parece ganhar vida durante a partida, aproxima-se de sua área. Enquanto o resto da partida se desenrola, lá está ele, simplesmente de pé em uma das extremidades do campo, a espera de que a ação que também ele assiste chegue até ele.


E é assim que Wim Wenders nos propõe um desafio: olhemos para o goleiro. Deixemos de lado a ação principal e busquemos algo naquele sujeito. O que primeiro vemos é a falta de ação: o jogo acontece do outro lado. Dá até tempo do goleiro sair de campo e beber água. Ao voltar, a ação se aproxima, mas o foco já não é ela, mas o personagem do goleiro. Assim, quando a bola finalmente passar não lhe será dada atenção. Nem ao resto da jogada. Nem ao jogador que tenha feito o gol. O goleiro corre. Diz ter sido falta e o gol inválido. Agride verbalmente o juiz e o resto dos jogadores. A câmera sobe. Está no meio da arquibancada. O goleiro agora é protagonista do espetáculo, mas pelos motivos errados - faz arruaça. É expulso. O jogo é deixado de lado, e vemos o goleiro sentado no banco de reservas, simplesmente observando a ação que se dá no fora de campo (da imagem).

Encerra o jogo. Com o goleiro expulso, ele passará uma partida de punição sem jogar. O que significa que não precisa ir treinar. Então toma estes dias para perambular pela cidade. Vai ao cinema. Ao café. Está sempre em busca dos jornais. Conhece mulheres com quem passa a noite. Percebe-se, então, que há ação no acompanhar o goleiro, ainda que ninguém pareça notar. E quase ninguém o reconhece durante todo o percurso do filme, somente uma antiga conhecida sua. No cinema que ele frequenta há uma moça bonita. Como bom observador - o goleiro mais assiste do que participa dos jogos, está sempre à espera - ele a nota. Quer sair com ela, mas hesita. Por fim, a segue. Próximo à casa dela, faz contato. Ela o convida a passar a noite juntos. E sem motivo algum, ele a enforca. O absurdo existencialista: a ação sem motivo.


Depois disso ele foge, discretamente. Vai para o interior onde uma antiga conhecida sua dirige um hotel. Não se hospeda nele, fica em outro, num vilarejo próximo. Pode ir andando de uma localidade a outra, são 3 quilômetros, lhe dizem. E ele vai, todos os dias. Coloca uma moeda na jukebox - tudo funciona à base de moeda, da jukebox ao elevador - e escuta música, sempre estrangeira, sempre música de sucesso "na américa". O vilarejo em que vive a amiga é calmo, fronteira com algum lugar que não é revelado. Existe uma alfândega e o avião do correio está sempre pousando ou decolando. E há torres de vigília. A margem do país, local ideal para o goleiro se esconder afinal, quem olha para o goleiro no canto do campo quando sempre procura a bola no centro da ação, entre os jogadores de linha?

Por fim, é divulgado nos jornais o retrato falado do assassino da bilheteira do cinema. A moça do hotel em que o goleiro está hospedado diz que o sujeito pode ter criado bigode, a esta altura. Pois é, ninguém enxerga o goleiro, nem mesmo quem está ao seu lado. Wenders, ao nos dar a oportunidade de acompanhar o goleiro, deixando o centro da ação de lado, nos mostra que todo um mundo de possibilidades podem aparecer. Este mundo de possibilidades é um mundo marginal, de pessoas não protagonistas cujas vidas são vividas de modo semelhante àquelas postas debaixo dos refletores. O goleiro briga e tem romances. Não é visto porque não tem ação ao seu redor. Não promove ação, é tão somente seu receptor. Será mesmo?

terça-feira, 21 de outubro de 2014

O estado das coisas de Wim Wenders (der stand der dinge, 1982)


direção: Wim Wenders;
roteiro: Wim Wenders, Robert Kramer, Josh Wallace;
fotografia: Henri Alekan, Fred Murphy, Martin, Schafer;
estrelando: Patrick Bauchau, Paul Getty Jr, Samuel Fuller, Roger Corman.

Este é um filme de Wim Wenders que sempre chamou minha atenção, mas que nunca havia tido a oportunidade de assistir. Finalmente pude fazê-lo. Encontrei uma obra interessante. De um cineasta maduro e ciente das escolhas que faz. Escrevo isto porque em diversos momentos da obra são feitas ligações e citações de outras obras que podem soar como meros maneirismos, como citação de cinéfilo para atrair o mesmo de sua espécie, mas que na verdade guardam dentro de si certas metáforas e jogos imagéticos com o próprio filme, com a própria trama, que se desenrola.

Num primeiro momento a equipe filma uma história de ficção científica. O diretor Friedrich Munro volta-se para o câmera indicando a filmagem que farão em seguida. Mas não tem mais película para que seja continuada a gravação do filme. A equipe resolve aguardar no hotel a volta do produtor Gordon que voltara para Los Angeles sob a promessa de conseguir o dinheiro para continuar o filme. Enquanto esperam, Wenders filma a relação dos membros da equipe em cenas curtas, quase como se estivesse a fazer crônicas da vida daquelas pessoas. 


O mais interessante deste primeiro momento são as cenas quando toda a equipe se encontra no restaurante do hotel. Todos falam, mas parece que quase ninguém consegue se entender. A câmera de Wenders, tal como a da garotinha filha de um dos membros da equipe, que filma com uma câmera super-8 o cotidiano daquelas pessoas naquele hotel abandonado. Ela passeia lentamente num travelling lateral para que possa enxergar a todos de cada vez. 

Uma destas cenas breves apresenta um dos poucos casais que nos aparecem em cena. Ele, com uma máquina fotográfica num morro, pede para que seu companheira permaneça parada para que ele possa fotografá-la do alto do morro. Ela, assim que ele dá as costas, caminha e sai do lugar que seu companheiro lhe havia pedido. Este eco do pessimismo do cinema europeu surge de modo explícito neste conjunto de cenas que formam a parte do filme correspondente às filmagens em Portugal.

Quando finalmente o diretor Friedrich Munro encontra o seu produtor desaparecido na segunda parte do filme, Gordon (o produtor agora encontrado) conversa com um amigo seu que o ajuda a manter-se escondido enquanto Munro apenas o observa. Tentam lembrar-se de filmes e dos atores que deles participaram. A estética empregada por Wenders neste momento remete a tais filmes. A cena é filmada dentro do trailer em movimento. Gordon foge de alguém a quem deve dinheiro e por isso não pode ficar parado em um local. É curiosa a câmera de Wenders nesta cena. Não são feitos muitos cortes, tal como é comum ao cinema hollywoodiano, mas ainda assim está ali impressa a característica essencial deste cinema: contar histórias. Se na primeira parte do filme temos uma equipe a espera de seu produtor, agora temos uma história de perseguição com cheiro de morte.


Tal como quando estava em Portugal, a trama desenvolvida em Los Angeles segue um mesmo caminho, apesar de ser contada de forma tão diferente. Se num primeiro momento há a negação de filme de gênero, agora, na terra do cinema de gênero  (Hollywood) é necessário que ele se faça presente. Mas o pessimismo encontrado por Wneders em terras portuguesas encontra-se nos EUA. A grande maioria das histórias são sobre morte e amor, fala Gordon em determinado momento. Este tom pessimista é encontrado por Wenders tanto na cinematografia europeia quanto na cinematografia norte-americana.

Em O estado das coisas a mudança de ambientação provoca a mudança de filme. Se antes tínhamos um filme europeu sobre uma equipe de cinema que espera a volta de seu produtor e, por conseguinte, de dinheiro para continuar as filmagens, quando o personagem do diretor chega aos EUA a película de Wenders torna-se um filme policial em que gangsters estão em busca do produtor desaparecido. Se no hotel abandonado de Portugal uma das atrizes lia o texto que inspirou Rastros de ódio de John Ford é porque, tal como o personagem encarnado por John Wayne no cinema, o diretor necessitará se embrenhar pelas terras dos bárbaros para poder encontrar a pessoa perdida.

Mas estes filmes que se diferem em forma, se assemelham em conteúdo. A diferença se dá no tratamento deste conteúdo. Enquanto o cinema europeu enxerga este mal-estar com seriedade excessiva, o cinema hollywoodiano faz dele um espetáculo. No primeiro caso o tema é questionado e faz o espectador questionar. No segundo caso ele é apresentado, mas não deve ser levado tão a sério assim: é só cinema. O que Wenders nos propõe com esta visão é mostrar que um não é inferior ao outro: trata-se de formas diferentes de se abordarem uma mesma temática porque se tratam de culturas diferentes.

(para outra leitura clique aqui)