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sexta-feira, 21 de novembro de 2014

A palavra e seu império


Vimos em A palavra e o invisível como a palavra pode ser utilizada em conformidade com o espetáculo cinematográfico. Com o advento do cinema falado poucos foram os cineastas e estudiosos que se posicionaram de modo a enxergar a estranheza da palavra nesta arte. Foi assim que se criou e deixou crescer o império da palavra.

Foi André Bazin que, em A evolução da linguagem cinematográfica, se posicionou nesta discussão. Ele enxergava dois tipos de cinema, aquele da imagem e o realista. Este segundo, de sua preferência, estaria unido à palavra por ser este um modo realista de representação cinematográfica. Na vida cotidiana as pessoas conversam quando se encontram e nada mais natural ao cinema (que é a arte realista por excelência) que mostrar este cotidiano na tela. Mas será que este realista trazido ao cinema pela palavra (pela fala) não faria uma subversão de seus valores ao invés de “avançar” em sua linha evolutiva como propõe o título do texto de Bazin?

Os discípulos cineastas do crítico francês foram que melhor apresentaram este equivoco de seu mestre. François Truffaut rasga elogios a Hitchcock quando de sua famosa entrevista. Nela os dois cineastas entram em comum acordo de que o cinema é uma arte imagética e por isso deve ser ela a melhor pensada e trabalhada, os diálogos surgem como um adendo. Jean-Luc Godard – autor de filmes de falatório – trilha caminho semelhante ao de seu antigo parceiro de Cahiers. Em Acossado Godard apresenta ao público uma montagem que não pretende ser realista ou sugerir coisa alguma, ela simplesmente nos lembra do fato de estarmos assistindo a um filme e o corte é o modo mais explícito de se demonstrar isso.


Como vimos no citado texto anterior, a palavra surge no cinema falado e logo passa a fazer parte constituinte de sua formação (no sentido da forma do filme). Quando o invisível, aquilo que aparece no extracampo nos é apresentado somente pela fala dos personagens, será que não estaria ali, naquelas palavras de quem aparece em cena um constituinte da imagem? Em parte sim, mas não acontece com todo cinema. Como vimos, isto acontece em No tempo das diligências porque aquela ameaça que não vemos e que nos é sugerida pela palavra paira nas imagens do filme. Esta ameaça que está sempre presente necessita estar fora de quadro para que a potência do filme possa surgir.

Mas isto não acontece com todos os filmes, ainda que todos eles insistam em se basear nas palavras dos personagens. Porque este realismo que a palavra emprega ao cinema faz ser mais crível a relação entre os personagens que se apresentam na tela. Mas esta busca pelo realismo cotidiano no cinema faria uma subversão de seu princípio próprio: a história contada por imagens. O que levaria uma figura a preferir contar uma história no cinema ao invés de escrever um livro, um artigo para jornal ou mesmo uma peça de teatro? Muitos dos filmes que são lançados hoje em dia provocam esta dúvida: será que eles deveriam ter sido transformados em filme? Será que eles não estariam melhor alocados em diferentes formas de comunicação ou expressão artística?

O realismo óbvio alcançado pela objetividade fotográfica faz do cinema o meio mais fácil para que um sujeito que tenha menor inspiração criativa possa contar uma história. Porque para alcançar o realismo por meio da prosa é necessário muito trabalho e inventividade por parte do escritor. No caso do cinema é dada a possibilidade de deixar de lado todo este trabalho intelectual excessivo e desenvolver algumas frases – cujo brilhantismo ficaria por conta da capacidade do ator de expressá-las – e simplesmente pôr a câmera em frente aos personagens e deixá-los surgir. Estaria em nossa frente o realismo? Sim, em parte. Porque ninguém poderia negar que aquelas duas pessoas estão conversando uma com a outra ou que seu diálogo é, no mínimo, interessante.


É aí que surge um ponto interessante da teoria de Bazin: a duração. Tomando de empréstimo o termo central da filosofia de Henri Bergson, o crítico de cinema nos dá algo de muito interessante: o filme realista deve conseguir captar esta duração do mundo. Será que todo filme que se propõe realista porque coloca dois atores muito bons conversando torna-se por isso realista? Não é porque dois personagens trocam farpas em cena que isso vá ser ser realista. Nem porque o espectador reconhece aqueles sentimentos expressados em tela. Mais do que isso, é necessária que haja a interação com a câmera.

É a câmera que vai buscar esta duração presente no mundo e expressá-la no cinema. Isso por meio do plano-sequência em que se filma o fluxo de acontecimentos em seu desenrolar natural. Richard Linklater faz isso. Eric Rohmer também. E nem todo cineasta que se propõe a colocar a câmera em frente a seus personagens ou a segui-los por um longo tempo sem cortes que consegue expressar a tal “duração dos fatos”. Sua cena pode simplesmente ficar longa e chata ao invés de envolvente.

Chamando Richard Linklater para dentro desta argumentação retornamos ao primeiro texto desta série, A palavra no cinema. O cineasta estadunidense faz uma provocação muito interessante em seus filmes. Seus personagens falam muito e o diretor os deixa a vontade para que possa conversar e se expressar. A câmera não irá perturbá-los, nem a montagem irá quebrar o desenrolar de suas ações. E ainda assim não serão as palavras que contarão a história. Estas surgiram em cena de modo desconexo, os personagens poderão falar do que lhes será preferível – tal como fazem os personagens de Tarantino – sem ligação com aquele momento presente que vivem ou com o sentimento que aflora. Estará impresso nas imagens o sentimento entre aqueles personagens ou o sentimento dos personagens por si. Em Antes do amanhecer está lá na cena da cabine de música ou mesmo no gesto imperceptível de Jesse querendo ver o rosto de Celine e interrompendo seu ato de retirar o cabelo dela de cima do rosto. São estes gestos, mais que as falas, que traduzem o sentimento que nasce entre os dois personagens.


A palavra pode, sim, fazer parte das imagens, mas em momentos muito particulares, como no citado filme de John Ford. Ela, mesmo não sendo material, consegue transbordar para o exterior e fazer-se presente na imagem. Mas não são todas as obras que conseguem isso. O realismo do cinema pode ser buscado por uma obra que preze pelo falatório, e nem por isso estará lá uma grande obra. Como dissemos no primeiro texto, não adianta colocar um ator sentado em frente a uma câmera lendo Hamlet que ainda assim será um filme ruim. É necessário que parta do cineasta a motivação que o leva a contar aquela história no cinema, ou seja, por meio de imagens.

Nesse sentido a abertura do ultimo filme de Béla Tarr, O cavalo de Turim, é muito significativa. Nela Tarr coloca um narrador para contar determinado episódio na vida do filósofo Friedrich Nietzsche. O narrador nos oferece todos os elementos para que possamos compor a cena, lugar, tempo histórico, personagens..., mas a imagem nos é subtraída. O que temos é somente uma tela em preto e a voz do narrador. Com o auxílio de nossa própria imaginação construímos a tal cena, e por isso se faz desnecessária a presença de uma figura em quadro nos contando a tal fábula. Semelhante aspecto se encontra em Era uma vez na Anatólia. Os personagens conversam dentro do carro, mas não precisamos vê-los. Vemos somente os carros que cortam a paisagem da Anatólia. Em determinado momento, os carros parados, as pessoas do lado de fora, e um dos personagens decide contar uma história. Ouvimos suas palavras, mas não vemos seu rosto se mover. Ou vemos o rosto de mais ninguém se mover.


A palavra ganhou bastante espaço no cinema depois do surgimento do cinema falado, mas isso não quer dizer que um filme deva ser feito somente baseado nas palavras falada ou escrita. Quando o entendimento ficar mais complexo nas imagens, é necessário o uso das palavras, mas caso contrário não. Era uma vez na Anatólia nos mostra isso. O “era uma vez” do título que nos remete ao ato de contar uma história nos faz pensar nos diferentes modos de contar uma história que aparecem no filme. Existe aquela história principal que é contada por meio da câmera e outras menores que são contadas pelos personagens em suas conversas. A fala, neste momento, adquire um sentido especial: ele pode servir de adendo ao entendimento daquilo que nos mostra a câmera.

Era uma vez na Anatólia se torna muito semelhante a No tempo das diligências. Ambos os filmes fazem a palavra incorporar as imagens porque estaria ali presente um sentido nesta relação. Mas a palavra não possuiria o maior poder no filme em nenhum dos dois casos. Ela torna-se subalterna ao que é mostrado. Ainda assim é parte constituinte da imagem.

Um filme deve ser construído primando por suas imagens. O cinema é uma arte de imagens e assim deve ser pensado e feito. O que dizem os personagens não deve ser mais que um adendo àquilo que é mostrado. 



[este texto faz parte da série a palavra no cinema publicada aqui no blog em novembro de 2014. Este texto é precedido por A palavra no cinema e A palavra e o invisível]

domingo, 16 de novembro de 2014

A palavra e o invisível

quando a imagem esconde a ameaça

Este texto serve como continuação de A palavrano cinema, já publicado aqui. Ele surge para suprimir um espaço que se encontrava no texto passado, mas que não diminui sua importância. Isso porque a imagem ainda é o ponto principal da arte cinematográfica e é o que melhor deve ser pensado e tratado por quem faz filmes. Mas isso não quer dizer que possa ser trabalhado um quesito a mais do cinema: o extracampo.

O que é o extracampo? Ele é aquilo que está fora do campo e que de alguma forma faz parte da mise-en-scène. Com o passar do tempo se desenvolveu todo o potencial deste não-estar da imagem cinematográfica. Escrevo não-estar porque é uma presença que não se faz presente. Pode servir como uma ameaça que não aparece no quadro. E é exatamente por não aparecer que cria toda força dramática[1] da trama do filme. Porque este algo que não está na imagem pode a qualquer momento aparecer em quadro. É criada uma sensação exatamente a partir desta presença faltante.

Comumente é tratado como sendo uma ameaça. Esta é anunciada pela palavra. Algum personagem anuncia o perigo e logo começa a paira no entorno do quadro este risco, aquilo que quer invadir o quadro e expulsar dele os protagonistas. Deste quadro transbordam sensações diversas, mas a que melhor se apresenta é a tensão. Quando é privada ao espectador de ver algo porque também os personagens não podem ver, quem assiste passa por semelhante temor daquele pelo qual passa seu querido herói.


Daí se faz uma grande diferença logo de início. Existem aqueles filmes que optam por mostrar logo a tal ameaça e que, por esta escolha, caem em um fracasso artístico, e aqueles filmes que, escondendo a ameaça, se fazem bem sucedidos. No primeiro caso estão os filmes de terror que constroem sua relação com o espectador pautado pelo choque das imagens cruas que preferem mostrar: o chamado terror gore. De outro lado há o suspense que prefere tirar do espectador a sua onisciência e, com isso, faz dele uma figura a mais no filme.

É este segundo caso que quero me aprofundar no presente texto. Para isto tomemos primeiro o clássico do faroeste No tempo das diligências. Iniciamos com este filme para deixar claro que não é somente no cinema de terror ou de suspense em que se podem ser feito o trabalho com o extracampo. No caso deste filme de John Ford, a trama começa com operadores de telégrafo recebendo a notícia de que o índio Geronimo está nas proximidades. Mesmo sob esta ameaça um grupo decide cortar o deserto numa diligência.

Neste filme a ameaça de Geronimo se faz presente em praticamente todas as cenas, apesar de ele somente aparecer em quadro nas últimas cenas do filme. Este embate é criado pela palavra. A palavra falada que anuncia que a ameaça existe. A ameaça, esta coisa imaterial que por isso não pode surgir em cena. Como anunciar este perigo se não por meio da linguagem falada ou escrita? Será que o espectador teria a mesma sensação de perigo se, ao invés de ouvirmos da boca dos operadores de telégrafo que Geronimo está por perto com seu bando, víssemos os sinais de fumaça dos índios? Provavelmente não. A palavra serve neste caso como um meio imaterial que nos deixa cientes de algo tão imaterial quanto: o futuro.


Esta coisa que somente imaginamos, que temos a esperança de que algum dia chegue, mas que nunca chegará (vivemos sempre no presente). Mas no cinema este porvir se torna presente em algum momento. Sabemos disso enquanto espectadores e, de certa forma, também sabem os personagens. Eles, mais que nós, esperam que esta ameaça nunca chegue a se concretizar. Mas em algum momento ela se fará presente e tomará a imagem. Geronimo por fim aparece em cena e tal como era anunciado, ataca os antigos membros constituintes daquele espaço que agora ele quer ocupar.

A materialização de Geronimo se transforma em um meio de materializar aquilo que vinham temendo os personagens. Aquela ameaça que transbordava para fora da tela na sensação de tensão. Esta que cresce até que não consiga mais ser simplesmente uma sensação para tomar forma material e lá se faz o índio vilão em imagem.

Algo semelhante se dá em Tubarão. A ameaça do animal assassino que vive por debaixo das águas está sempre à espreita deixando assustados os banhistas de verão que foram até a praia. Esta ameaça os deixa atemorizados exatamente por esta característica: ele não pode ser visto, mas sentido. Aqui a ameaça ganha contornos mais agressivos. Diferente de No tempo das diligências, não é somente por meio das palavras que se constitui a ameaça. Na primeira cena do filme a garota que participava de um luau corre até a água e lá é atacada por algo de debaixo da água. Neste momento não sabemos o que está debaixo da água atacando, mas ainda assim existe a ameaça que se faz presente no extracampo.


Depois de certo tempo, certos do que seria a ameaça, um grupo de pessoas parte para a caçada do tubarão. Esta ameaça se constitui principalmente graças à palavra. Mas diferente do filme de Ford, aqui os ataques são mostrados fazendo com que o espectador possua algo de concreto pelo qual temer. Existe um perigo real por debaixo daquelas águas, escondido em algum canto fora da imagem. Queremos ver, mas esta possibilidade não nos é dada. Não. O que nos é permitido ver são os ataques, os corpos se contorcendo pela dor da morte iminente, o sangue que inunda a praia. Vemos o efeito, não a causa (ou causador).

Em ambos os filmes existe um conteúdo vibrante para além das imagens que é atestado pela palavra escrita e falada. Em ambos os casos a ausência da presença da ameaça em quadro faz com que as imagens demonstrem um peso de algo que está para além dela. Algo que se faz presente no tempo fílmico. Em ambos os casos o extracampo desempenha papel de grande importância para o desenvolvimento da fábula. Este extracampo faz surgir a importância da palavra, este elemento estranho ao cinema, no filme. É aderida pelo cinema para que se atinja a excelência na expressão de uma sensação.  O espectador, embora nem sempre consiga entender, sabe que a palavra é um artifício estranho ao cinema e por isso sofre com esta ausência da imagem à que a palavra se refere. A palavra sugere uma imagem que mais tarde surgirá no filme. A palavra constrói esta espera angustiante. Uma vez surgida a imagem se desfaz a espera e tem-se, enfim, a mudança de sentimento.

O cinema faz a deglutição do que lhe é externo para que passe a constituir parte de seu ser. Ainda assim a palavra não é algo que deva ser considerado antes das imagens. Um filme deve ser construído a partir de suas imagens. Embora No tempo das diligência e Tubarão se valham da palavra para anunciar este perigo que paira sobre os personagens, está ali impressa nas imagens o sinal deste temor, seja pela expressão dos personagens (No tempo das diligências) seja pelo ataque do monstro não visto (Tubarão).


[este texto faz parte da série a palavra no cinema publicada aqui no blog em novembro de 2014. Este texto é precedido por A palavra no cinema e é seguido por A palavra e seu império]



[1] Este dramático é um termo genérico, pode ser entendido por ele tanto suspense, terror...

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Por que devemos conhecer os clássicos?

uma questão para os amantes de cinema


Frequentemente, em debates sobre cinema, se levanta a questão de assistir aos clássicos. As pessoas, em grande parte dos casos, o fazem sem refletir o motivo. Quando refletem, dão motivações bobas que não necessariamente vá dizer qualquer razão relevante para que se vá fazê-lo. O primeiro ponto que precisa ser pensado é: você realmente gosta de cinema? Se a resposta for sim, então debruçar-se sobre os clássicos é um exercício de visionamento de diversos filmes, sem necessariamente pô-los em escalas de maior ou menor importância para a história do cinema e sua formação estético-estilística; são filmes em que se encontra a excelência no fazer fílmico.

Deparamo-nos com uma segunda questão, ainda mais delicada: será que todos os cineastas devem assistir aos clássicos? Sim, devem. Ao menos os cineastas preocupados com fazer um cinema de arte. Porque conhecer o cinema é de fundamental importância para não sair dizendo que inventou a roda (neste quesito é interessante ler o texto publicado aqui: De Kane ao 3D – as revoluções do cinema). É um modo de compreender como a arte se desenvolve ao invés de se basear sobre clichês estéticos. Fazer um filme – ou qualquer obra de arte – não é receber a inspiração de uma musa, tal como diziam os gregos antigos. Fazer arte é um ato cerebral. O escritor recorta diversos parágrafos de sua obra até chegar a forma final. O fotógrafo faz cinquenta fotografias de uma paisagem para encontrar uma que seja boa.

Ainda no caso do cineasta, conhecer o cinema clássico se trata de fazer um trabalho que é feito desde os primórdios do cinema: conhecer as formas próprias de se expressar através da arte cinematográfica. Os irmãos Lumière inventaram o cinema, mas foi assistindo aos filmes de Méliès que eles começaram a filmar ficções. E assim se repetiu por toda história do cinema. Griffith conhecia o trabalho de Porter, Eisenstein conhecia o trabalho de Griffith, Glauber o trabalho de Eisenstein e assim por diante. Não se trata de uma questão de utilizar os mesmos modelos de concepção de uma obra cinematográfica, mas de entender como se expressar por meio dela: e isso não se aprende sem assistir aos clássicos.


Para o espectador comum assistir aos clássicos já possui uma motivação diferente. Este não está preocupado com os modelos de expressão do cinema para conceber um filme, ainda que o entendimento destas seja um ponto importante que o leve a conhecer (e compreender) os clássicos. Porque diferentes cineastas encontraram modos diferentes de se expressar a partir das especificidades da linguagem cinematográfica. Assistir a um mesmo modelo de cinema – e consequentemente de expressão, encenação... – pode tornar-se repetitivo. Muitos cineastas possuem influências em comum e terminam por fazer filmes muito similares que somente diferem em suas histórias (e daí nascem os clichês). A diferença que encontramos nas formas dos filmes pode fazer da experiência de assistir uma obra cinematográfica algo de extremamente radical, novo, diferente.

Se diretores de uma mesma escola cinematográfica decidirem por filmar a mesma história, possuiríamos filmes muito similares que difeririam somente em seu roteiro. Já se fosse o caso de diretores de diferentes escolas, de países diferentes que se arriscassem a filmar uma mesma história, encontraríamos filmes radicalmente diversos. É o exemplo da nouvelle vague francesa. Os diretores deste movimento possuíam suas preferências pelo cinema hollywoodiano e assim se inspiravam nele para fazer seus filmes. Faziam filmes de gênero cujo resultado diferia radicalmente daquele cinema em que uma vez eles tomaram como inspiração.

É muito importante, tanto para a formação de um cineasta quanto a de um curioso de cinema de arte, o conhecimento dos clássicos para que melhor possa executá-los e assisti-los. Para que possa compreender que nada posto em um filme o é feito de forma gratuita. Numa verdadeira obra artística sempre existe uma motivação que leva o artista a fazer determinadas escolhas. Cabe ao cineasta saber quais são estas escolhas e cabe ao espectador atento saber colhê-las no decorrer do filme. A exemplo disso existe o exemplo famoso de Stanley Kubrick: em alguns de seus filmes, detalhes na composição do cenário eram modificados de uma tomada para outra conscientemente. O artista fez isso com um motivo. O espectador o entende ou procura a motivação pela qual o artista o teria feito.


O espectador curioso, que busca um cinema de arte, o faz para ser desafiado. O cinema tradicional (de molde comercial) não oferece este tipo de informação ao espectador, tratando-se somente de um modelo de entretenimento. Mas o cinema não é somente um modelo de entretenimento. É uma arte. E é este sentimento de renovação e inovação que move a arte que move, também, o cinema. O espectador que se depara com um filme de arte e que os busca, procura compreender e experimentar as formas estéticas do cinema. Quer ser desafiado intelectualmente. Este desafio intelectual aparece em todos clássicos porque ele está presente em toda construção de imagem que o cineasta-artista vá fazer, em toda construção temporal, na ordem dos eventos montados. 

Ele aparece em formas estéticas radicalmente diferentes: está em O ano passado em Marienbad quando Renais vasculha a memória em busca de um passado que o personagem não sabe se existiu; está em No tempo das diligências quando uma ameaça que somente ouvimos falar paira sobre os personagens que precisam cortar o deserto; está em O encouraçado Potemkin quando vemos detalhes que unidos em uma sucessão nos fornecem o todo de um massacre.

Assistir aos clássicos se apresenta como um ato de amor ao cinema. Este amor que nos leva a adentrá-lo para que conheçamos cada parte, cada canto mais escondido que forma este todo. E conhecer estes detalhes nos leva a saber distinguir os bons filmes dos ruins, os mais artísticos dos menos. Porque existem bons filmes e filmes ruins. Nos ajuda a distinguir aqueles filmes preocupados em se fazerem enquanto expressões artísticas e aqueles que somente querem ser filmes de entretenimento (comercial). E aí está a grande diferença.

Por que devemos conhecer os clássicos? Porque é nos clássicos que se encontra o cinema em seu melhor acabamento, em sua melhor forma: chamar um filme de clássico significa que ele será uma obra surpreendente independentemente da época em que seja vista. Como diria Mark Cousins em sua série The story of film: na odyssey: o que move o cinema é a paixão, a inovação. Se debruçar sobre os clássicos é encontrar esta paixão e fazer-nos constituir um pedaço dela.


[nas imagens os três filmes citados no texto: 1- Ano passado em Marienbad; 2 - No tempo das diligências; 3 - O encouraçado Potemkin.

sábado, 23 de agosto de 2014

Cidadão Kane é um clássico, você sabe por quê?


Provocativo esse título, não? Ele parte de um fato cada vez mais comum no mundo atual. As informações são tantas que quase se torna impossível digeri-las devidamente. No meio desta velocidade encontra-se o cinema. Ser cinéfilo nunca foi tão fácil como agora. Os filmes chegam a nós, e não nós que vamos até eles. As tecnologias avançaram a tal ponto que posso ter uma sala de cinema em casa. Mas em meio a tudo isso surge um problema: a discussão sobre cinema perdeu seu valor. Seu valor no sentido do conteúdo do debate. A pergunta-título refere-se a isto. Quando vasculhamos a internet em busca de um bom texto analítico sobre o filme que acabamos de assistir, o que em grande parte encontramos são leituras que tratam filmes não como cinema, mas como literatura. Sim, literatura. Porque discutir a narrativa, tão somente, é uma questão para a arte das letras. Para o cinema cabe o seguinte questionamento: como mostrar tal narrativa? Por que o cineasta prefere mostrar isto ao invés daquilo outro?

Por que Cidadão Kane é um clássico?, pergunto. Certamente não pelo uso do flash-back, recurso muitíssimo conhecido, mesmo na época do lançamento do filme. Para que cheguemos ao clássico filme de Welles, façamos antes um breve percurso pela história do cinema:


No princípio, a câmera de cinema permanecia fixa em frente ao cenário como uma mera observadora distante. Ela ficava numa posição privilegiada, que lhe possibilitava enxergar diversas ações a um mesmo momento. O olhar do espectador passeava pelo cenário observando a ação que mais lhe desse prazer. Este posicionamento é usualmente chamado de "regente de orquestra", porque tal como um regente de orquestra, a câmera fica a frente de seus atores (os músicos) indicando-lhes o espaço que devem percorrer.

Mas logo foi deixada de lado quando foi descoberto que melhor que deixar a câmera distante dos atores, seria colocá-la no meio da cena. Surgem os diversos posicionamentos de câmera. O cinema deixa de ser um teatro filmado para ganhar a sua forma própria. O espectador, que num primeiro momento direcionava sua atenção para o que mais lhe desse interesse dentro do quadro, agora tem sua atenção direcionada. A câmera não filma uma sala inteira, mas a moça que está sentada no sofá.

Passam-se anos sendo aprimoradas as técnicas de direcionamento do olhar, até que na década de 1930, com o desenvolvimento de novas lentes que possibilitavam trabalhar com foco curto e longo ao mesmo tempo - ou seja, o ator poderia aproximar-se e distanciar-se da câmera sem sais de foco - o cinema retorna para o seu princípio. Mas a câmera não é mais passiva frente às ações que se lhe apresentam. Agora ela faz parte da encenação, ou como dizem os franceses: a mise-en-scène.


Cineastas como Jean Renoir e John Ford descobrem as maravilhas de se utilizar este novo sistema de lentes e passam a filmar planos gerais em que o tempo do plano dura mais tempo do que antes. A grande revolução estética proporcionada por esta estética será notada na década seguinte por André Bazin. Por meio do plano-sequência encontra-se a duração.

O que é a duração? - Influenciado pela filosofia de Henri Bergson, Bazin procura no cinema aquilo que converse diretamente com o fluxo com o qual as coisas se apresentam na realidade - uma propriedade essencial das coisas e dos fatos, como diz Ismail Xavier. Esta propriedade essencial das coisas e dos fatos somente será encontrada no cinema por meio do plano-sequência, esta técnica que permite a captação da realidade em seu fluxo original.


Cidadão Kane entra no meio de tudo isto como o filme que consegue se fazer bem sucedido nesta empreitada "moderna". Welles filma sua história valendo-se da profundidade de campo, distribuindo seus personagens nos cenários sem a necessidade de corte para que possa mostrá-lo em cena. Esta revitalização da profundidade de campo produzida pela obra de debute de Welles é sem dúvida uma das marcas centrais que transformam este filme num clássico. O diretor adapta o dispositivo cinematográfico a seu favor, a seu olhar de diretor teatral, para que possa buscar a dramaticidade das cenas nas relações entre atores e não da fragmentação do espaço cênico pela montagem. Por meio do plano-sequência encontra-se o fluxo de uma realidade. Valoriza-se o espaço por sua natureza, não o fragmentando. Com a revitalização da profundidade de campo, tem-se um melhor aproveitamento do plano-sequência.

O plano-sequência apresenta, assim, a comunhão entre tempo e espaço tão cara à representação cinematográfica. Mas num cinema que se diz moderno, é essencial que esta comunhão seja mais precisa. O espaço deve se juntar com a duração. Com o plano-sequência há finalmente a expressão da duração, que segundo Marcel Martin, em A linguagem cinematográfica, é o verdadeiro tempo estético. A duração impressa no filme pelo plano-sequência encontra no mundo o fluxo essencial das coisas e as reflete no espectador. Consegue-se, assim, a expressão da duração filmando-a em sua completude.

É somente um breve comentário acerca de Cidadão Kane, filme tão rico que merece muitas e muitas páginas de estudos detalhados sobre cada um dos planos. Mas o que deve ser apreendido deste texto é o modo de como deve se efetuar o julgamento de um filme. Não se julga um filme por sua trama, tão somente. Esta é um problema dos literatos. Foi devido a julgamentos que levavam em conta somente o enredo do filme que, durante anos, Alfred Hitchcock fora visto como um cineasta menor: sabemos que ele não é porque nos foi mostrado, com argumentos que levam em conta a forma do filme, o grande diretor que ele é. 

[obs.: Este texto não se volta para o espectador comum de cinema, mas para o espectador comentador de filmes (como críticos de revista, e blogs). Este deve prestar atenção aos seus comentários para que eles não se baseiem em preconceitos para com uma obra. O espectador comum não tem o intuito de formar ou apresentar ao público uma obra, sendo este papel o papel que cabe o espectador comentador. Diferencia-se, entretanto, o espectador comentador daquele espectador comum que escreve as suas impressões pessoais acerca de uma obra. Espera-se do crítico o conhecimento teórico no momento de análise de um filme, o mesmo já não se espera de um espectador comum que escreve sobre cinema. Este último pode ser acompanhado por leitores que se identificam com os gostos do escritor e daí a não se esperar uma análise aprofundada do filme.]

[as imagens:
1 - Assalto ao trem Robbery (1903) de Edwin Porter exemplificando a câmera "regente de orquestra";
2 - Cidadão Kane: Welles em primeiro plano em foco e, ao fundo, um personagem a falar com ele também em foco;
3 - Cidadão Kane: novamente temos Welles (Kane) em primeiro plano e outro personagem que conversa com ele em segundo plano, também em foco.]