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sábado, 12 de agosto de 2017

Catando imagens digitais


            Quando adolescente pude comprar uma câmera digital. Uma filmadora, para ser mais preciso. Esperava com ela saciar minhas aspirações criadoras, de contador de histórias. Mas algo desta experiência de contato próximo com uma câmera me incomodava. As imagens que gravava não tinham a qualidade que apresentam os filmes que via. E eu queria fazer filmes como aqueles, claro sabendo das limitações materiais, mas esperando que a câmera me fornecesse uma imagem limpa. Algo que pudesse aproximar minhas produções modestas daquelas que admirava. Aproximar meu filme feito com câmera de 900 reais dos filmes filmados em película. Comecei a aceitar, relutantemente, a diferença. Aproveitei para aprender alguns detalhes artísticos. Se tecnicamente pode ser que não tivesse imagem semelhante, ao menos em composição e iluminação de quadro pudesse fazer algo melhor. De qualquer jeito, os “problemas” que me incomodavam muito permaneciam lá: as silhuetas de corpos em movimento se perdiam em quadriculados típicos da imagem digital; o microfone captava o som dos fios ou o que quer mais que estivesse solto dentro da câmera, quando filmava em movimento, com a câmera na mão; o microfone ainda captava a alavanca de zoom sendo operada. Tudo isto me incomodava e eu queria fazer filmes o mais profissionalmente possível. O caso é que o “profissionalismo” que eu buscava se encontrava diretamente ligado a uma estética do filme (que inviabiliza a câmera, mascara o fato de ser um filme) e uma forma de produzir (os programas e profissionais que “limpam” o filme). O que não conhecia então é a existência de vários cinemas que lutam contra isto.

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            Em minhas pesquisas sobre filmes, em minhas buscas cinefílicas, encontrei Prazeres desconhecidos (2002), do chinês Jia Zhangke. Cheguei a este autor como costumo chegar a tantos outros: a acumulação de citações e referências à sua obra nas críticas, nas colunas, nas entrevistas sobre cinema. Pouco lembro do filme, mas lembro do impacto que causou em mim as imagens filmadas em digital. Escolhi assisti Prazeres desconhecidos porque tinha lido um texto em que dizia que tinha sido filmado em DV. Conhecia o formato e fiquei curioso de ver um filme “profissional” feito em DV, que até onde sei foi criado para ficar no lugar do VHS. E uma das coisas que mais me deixou impactado com o filme foi exatamente a má qualidade da gravação em digital, e como isto não parecia ser tão importante para Jia construir seu filme. Uma coisa lembro com certa clareza: o mesmo “problema” que via em minha câmera, vi no filme de Jia. As imagens quadriculadas, não por conta da baixa qualidade da cópia em que vi o filme, e sim pelo formato em que o filme havia sido gravado. Porque era o mesmo “problema” que tinha em minha câmera digital: as bordas dos corpos em movimento não desenhando um tracejado preciso. O que me passei na época foi a relação entre o digital e a modernização trazida à sociedade pelos mecanismos do capital. 15 anos separam o lançamento de Prazeres desconhecidos da data em que escrevo este texto. Nestes 15 anos as câmeras DV deram lugar à câmera em DVD, que deu lugar ao armazenamento em cartão de memória ou HD interno, a imagem deixou de ter qualidade de 720p, para 1080p, hoje já se encontrando em 4k – formato que, dizem, aproxima o digital da película de alta qualidade. O digital visto sob esta perspectiva poderia ser considerada como um formato terrivelmente arriscado para se filmar. Um filme gravado em digital, daqui alguns anos, estará marcado pela idade do formato em que fora filmado (foi um dos motivos que levou Richard Linklater a optar por filmar Boyhood em película). Em parte, é o que acontece com Prazeres desconhecidos. E coisa que não acontecia com o filme em película – a má qualidade do filme se apresenta em maior granulação da imagem, o que de longe é visto como uma má qualidade ou um aspecto datado. Prazeres desconhecidos poderá perder este caráter de “datado” caso seja feita uma restauração tal como se costuma fazer de certos filmes – ajustando cores, sons. O que acontece é que o objetivo de Jia não era de fazer um filme “limpo”. O digital é parte deste mundo moderno, desta nova fase da sociedade globalizada.
            Bom lembrar que Jia não foi único no uso do digital, muito menos pioneiro. Devemos lembrar de Lars von Trier, que para além de seu uso do plano do dogma por ele desenhado junto a outros cineastas dinamarqueses, adicionou à conta a filmagem de longas-metragem em digital. Coisa que cabia perfeitamente dentro do novo mundo que Trier queria trabalhar em seus filmes pós-dogma. O digital permite maior liberdade para a câmera de entrar na ação, de dar ar frenético. É o que Trier faz em seus filmes, mesmo naqueles em que não mais utiliza uma tecnologia menor para produção (seu constante e nem sempre justificado uso da câmera na mão). Jia faz o contrário em Prazeres desconhecidos.

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            Uma dos usos que mais me chamou atenção com o uso do digital partiu de um filme que não esperava ter esse discurso tão bem desenvolvido. E num filme realizado não muito distante cronologicamente de Prazeres desconhecidos. De 2000, Catadores e eu é um filme a primeira vista bastante singelo de Agnes Varda. Mais uma vez Varda nos convidando para o seu mundo, sua paixão pelos gatos, para dentro de sua casa, para suas viagens, para sua vizinhança. Mas desta vez há algo de diferente: o uso do digital. Coisa que ela deixa bem claro, desde o início. Se se mostra carregando a câmera, consideravelmente mais simples, mais leve, mais maleável que as outras em película – e de menores gastos. Para os projetos de Varda, nada poderia casar melhor do que uma câmera digital.
            Antes de continuar o comentário sobre o filme de Varda, voltemos um pouco no tempo, para aquele 1994 em Lisboa com Wim Wenders. O céu de Lisboa se dirige diretamente a esta transformação no fazer fílmico. A passagem da película para o digital. O cineasta em crise que desaparece e arma crianças da vizinhança com câmeras digitais que filmam inúmeras inutilidades. Verdade, o lixo imagético produzido pelo digital é enorme! (Demos uma olhada breve na internet). Ao momento em que Wenders faz este filme duas coisas se somavam: a má qualidade dos equipamentos digitais e a incapacidade dos profissionais de cinema em saber trabalhar com digital. O que nos traz de volta a Varda. Um filme sobre as pessoas que catam o que é jogado fora pelos outros é tema interessante para um filme: mais interessante ainda é fazer este filme em digital, quando a capacidade e falta de culpa em filmar tudo, jogar fora muito, utilizar de fato pouco, é muito mais fácil (e barato). Assim como suas personagens que se alimentam do que sobra nas feiras, do que os supermercados jogam fora porque “não parece mais bonito para o comprador”, Varda recupera as imagens que seriam imediatamente descaradas por qualquer montador com algum senso estético. Um senso estético desenvolvido ao longo de décadas de fazer cinema. Daí aparecer em Os catadores e eu imagens em que Varda, supostamente, deixou a câmera filmando, e na tela vemos o chão e a tampa da tela pendurada por uma cordinha. Um plano naturalmente descartável – não para Varda, seguindo a lógica do discurso de suas personagens.
            O que me remonta a um dado curioso que lembro de ter apreendido ainda adolescente, quando de minha crise com a câmera digital que tinha comprado, incapaz à época de fazer a associação. Sem destino (1969) trouxe para o cinema hollywoodiano algo de novo para sua estética, que até então seria encarado como “problema”, “defeito”, ou mesmo falta de “profissionalismo” dos envolvidos. Quando se filma um pôr-do-sol um problema frequente é a luz batendo nas lentes da câmera e criando manchas (vários círculos que aparecem na imagem final). Até os anos 1960 este tipo de imagem seria descartada de imediato da montagem. Seria uma imagem defeituosa que não merece fazer parte do filme. Isso porque não coaduna com a estética realista que o cinema tradicional prefere passar: enganar o espectador o máximo de tempo possível do realismo dos eventos que ocorrem a sua frente. Não devemos nos dar conta de que há cortes no filme, muito menos de que há uma câmera. Os cortes devem ser invisíveis (daí as regras de sequência), assim como a câmera (nada de imagens de sombra ou reflexo da câmera). As manchas da luz do sol nas lentes é sinal de que o que estamos assistindo é um filme e quebraria a “ilusão” do real – tão cuidadosamente trabalhada por todos os outros departamentos que cuidam da aparência de um filme (figurino, cenários). Para uma rebelião, uma nova estética. Sem destino queria apresentar ao mundo o cinema da contracultura, certamente não poderia fazê-lo sob a forma do velho cinema.

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            Assistir a Os catadores e eu despertou em mim a ciência de que o digital é uma nova forma de fazer cinema. Nada de muito original de minha parte. Um momento em que o cinema se abre mais amplamente para a independência dos cineastas. Abre as portas para que mais pessoas possam fazer cinema. Para que possam fazer seus filmes. Ampliara as fronteiras da estética cinematográfica. Varda entendeu isso. Em parte porque seu cinema já se desenhava neste sentido, o digital foi um adendo. Seu cinema de caráter coletivista, familiar. Feito em casa, não em estúdio. O que é mais importante de Os catadores e eu, sob esta perspectiva, é que o digital não deve ser utilizado simplesmente como mais um formato de filmar. Deve ser enxergado como meio para construção de uma nova estética do cinema. Em que os restos podem (e devem) ser reaproveitados. Não é defeito deixar a câmera aparecer, não é defeito o microfone captar mais do que o movimento dos atores e suas falas. É próprio do digital. Antes mesmo do digital Abbas Kiarostami já fazia filme em que ficava explícito ser um filme. Em Close-up, a câmera segue suas personagens e o diretor e operador de câmera conversam. Microfones são instalados nas personagens. O microfone deixa de seu escutado numa cena externa. Isto Kiarostami fez ainda em película. Em digital, as opções se ampliam. Não é por qualquer “defeito” técnico que o espectador deixará de acompanhar o filme – esta parece ser uma das principais considerações dos defensores do realismo do filme de ficção, em que a técnica deve estar invisível. A tentativa de fazer a ficção “credível”. Mas o digital passou a ser abraçado pelos cineastas, mesmo pelo grande cinema de Hollywood. E assim, os realizadores menores, independentes, passaram a se valer de técnicas avançadas (em alguns casos de alto custo para o tipo de filme que fazem, para o tipo de investimento que podem fazer) buscando aproximar-se da estética padrão corrente no cinema mundial. Foi esta busca pela padronização com o que faz o grande cinema que me deixou em conflito com o digital. Este conflito não era só meu. Porque há a possibilidade de tachar um filme de “amador” simplesmente pelo abraçamento do digital em sua crueza. Uma câmera de película 35mm não era viável para qualquer realizador, e a maioria alugava o equipamento. O digital é acessível a todos. O que não é acessível a todos é a estética final empregada nos filmes. O que tende a universalizar os filmes. Criar uma estética padrão do que é o “bom cinema”. O filme de cores controladas, de som trabalhado exaustivamente em pós-produção para inserir detalhes ínfimos com maior clareza. O digital deveria ser o momento de assumir riscos por parte do realizador. De mostrar os restos como alimentos de boa qualidade. Quiçá adotar algumas características do primeiro cinema? (Como o duplo pouso na lua em Viagem à lua, de Méliès).

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            Isto dito, chegou a hora de fazer as pazes com minha velha câmera. Pena, ela não funciona mais. Males do século XXI.

terça-feira, 18 de março de 2014

La Pointe-Courte de Agnes Varda (1955)


direção: Agnes Varda;
roteiro: Agnes Varda;
fotografia: Louis Soulanes, Paul Soulignac, Louis Stein;
editor: Alain Resnais;
estrelando: Philippe Noiret, Silvia Monfort.

Logo após o término da segunda guerra, em um momento em que a economia europeia se encontrava em frangalhos, a ideia de produzir filmes de baixo orçamento começou a ganhar corpo, atraindo muitos aspirantes a diretores que não encontravam lugar ao sol dentro da indústria cinematográfica de seus países, nem se beneficiar de uma produção com altos orçamentos. Na França este pensamento foi primeiro tomado por Jean-Pierre Melville que filma seu primeiro longa-metragem, O silêncio do mar, com orçamento baixíssimo - algo em torno de 9 milhões de francos em uma época em que o custo médio de um longa-metragem contornava os 50 milhões. O filme foi mais tarde um sucesso de público, rendendo um belíssimo retorno financeiro.

Alguns anos mais tarde, em 1955, Agnes Varda que então trabalhava como fotógrafa profissional, tomou para si a iniciativa de filmar um longa-metragem nos moldes daquele que Melville havia feito. Seu projeto era de filmar em um vilarejo de pescadores chamado Pointe-Courte, e que daria nome ao filme. Para a gravação, Varda prefere não se relacionar com o Centro Nacional de Cinematografia (CNC) para baratear a produção de seu filme feito em cooperativa entre equipe e elenco. O filme custa 7 milhões, mas não dá retorno algum. O CNC o considera um filme amador, mesmo tendo sido filmado em 35mm, o que impede a estreante cineasta de exibir seus filmes nos cinemas. Michel Marie, em seu estudo sobre a nouvelle vague, tem que este foi um ponto importante que mostrou para os futuros diretores a importância do distribuidor para o sucesso de um filme. La Pointe-Courte ficou sem ser exibido no circuito comercial, tendo uma única exibição num cinema de arte, mas que não foi suficiente para dar qualquer retorno financeiro à empreitada.


O filme em si é uma obra impressionante. Varda nos dá algumas das características mais marcantes da nouvelle vague antes mesmo da eclosão do movimento. Temos duas histórias que caminham em paralelo: um casal casado há cinco anos que se encontram no vilarejo onde ele (Philippe Noiret) cresceu e que sua esposa (Silvia Monfort) nunca havia visitado, e a vida dos pescadores que são impedidos de pescar pela guarda costeira.

A parte dos pescadores nos apresenta um grupo de atores não profissionais, escolhidos entre a população local, para interpretar a eles mesmos, seu cotidiano. São as histórias acontecendo nos lugares em que elas acontecem. Este trabalho é o que quiseram fazer os cineastas posteriores ao neorrealismo italiano quando viram este trabalho ser feito pelos pioneiros Roberto Rossellini e Vittorio de Sica. O caráter documental dado pela câmera de Varda a esta parte do filme é inegável, temos a sensação de estar naquelas casas vendo a vida daquelas pessoas. Já na parte em que acompanhamos o casal, que é interpretado por dois atores profissionais, o filme já nos apresenta um trabalho muito mais trabalhado, em que a composição do quadro é cuidadosamente estudada.


Encontra-se uma batalha entre estilos de filmar. Em um momento temos a utilização de não atores e uma filmagem mais espontânea, de outro temos os atores, com sua atuação milimetricamente estudada para que possam ser compostos os quadros tais como a diretora os quer. É uma batalha silenciosa que se apresenta entre a leveza do naturalismo dado à história dos pescadores e o peso dado pela construção teatral tradicional de um filme, em que as imagens clamam por uma representatividade metafórica. Enquanto a esposa julga conhecer seu marido, sem conhecer suas origens, Varda nos mostra que o cinema julga conhecer as pessoas contando-nos suas histórias nos estúdios, enquanto as pessoas estão vivendo estas histórias nas ruas. A esposa acha que conhece tão bem seu marido que poderia ser ele, mas não conhece uma parte importante de sua história, o lugar de onde ele veio e que o moldou. O cinema vai pelo mesmo caminho: ele acha que pode representar - e em algumas concepções até mesmo reproduzir - a vida, mas desconhece as origens das histórias que está a contar, dos personagens sobre os quais estão falando.

Varda em seu debute no cinema nos apresenta uma obra madura e belíssima que vale a pena ser vista com muito cuidado por aqueles que amam o cinema como forma de expressão artística e não como mero divertimento.