Mostrando postagens com marcador Manoel de Oliveira. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Manoel de Oliveira. Mostrar todas as postagens

quinta-feira, 15 de julho de 2021

Centenário de O Garoto, de Charles Chaplin

 

originalmente publicado em A terra é redonda.

republicado em Rede Brasil Atual

            Esta será uma década para comemorar muitos centenários queridos ao cinema, pretexto para rever filmes que assistimos mesmo sem precisar de pretexto, mas os achamos para fazer das novas visitas aos clássicos uma obrigação. Ano passado foi a vez de Caligari, de Wiene, ano que vem será a vez de Nosferatu, de Murnau. Encurralado entre estas duas sinfonias do horror “um filme com um sorriso – e talvez uma lágrima” (o talvez é puramente retórico, porque a lágrima é certa). A década de 1920 foi definitiva para mostrar o potencial artístico desta mídia nascida das fábricas. Apesar disso, se havia alguém no universo cinematográfico que já lograva dos louros da glória do reconhecimento de seu gênio artístico, esse alguém era Charles Chaplin. Neste 2021 celebramos o centenário de O Garoto como desculpa para rever um filme que não deixamos de rever ao longo de nosso percurso pela cinefilia.

            Para um acadêmico como eu, os traços constituindo a genialidade de Chaplin já se encontravam por todos os cantos na literatura teórica e crítica anterior a O Garoto. Ainda assim, é interessante encontrar em The Photoplay um professor de psicologia da universidade de Harvard – portanto, um intelectual bem reconhecido entre seus pares – dando seus primeiros passos pelo cinema e já em 1915 – ou seja, no segundo ano de Chaplin como artista de cinema – reconhecer o diferencial e a superioridade deste criador de filmes. Como bem apontará André Bazin décadas depois de Munsterberg – autor de The Photoplay –, sem o ter lido, este é o período no cinema de Chaplin das grandes gags, mas de um Carlitos ainda pouco desenvolvido em sua psicologia.

            A psicologia de Carlitos se desenvolve em concomitância à segurança autoral de Chaplin, a cada vez que explore contradições sociais e políticas tendo como ator este dândi meio cavalheiro meio vagabundo. Por sinal, este traço de Chaplin realizador rendeu um belo filme revisitando a obra chapliniana no ano passado, Charlie Chaplin, le génie de la liberté, de Yves Jeuland.

Não só a política encorpava a persona das telas deste criador, também seus traços biográficos ajudavam a pintar cenários e situações, movendo um Carlitos inicialmente mais próximo dos hotéis de luxo para os bairros pobres e os centros comerciais das cidades, lugares onde um Vagabundo como ele cada vez mais incorporava seu papel de marginal pronto para tomar o centro da ação.

            Assim O Garoto costuma ser lembrado, como esta grande peça onde a crítica social e a biografia de seu realizador entram em conluio. Eis uma boa fórmula para a justificativa de Chaplin como um autor, como gerações mais tarde cravarão. Todos os títulos são perfeitamente justos. Os temas do filme são muitos, a luta de classes, a maternidade, o papel da segurança do Estado, mas também é interessante notar a maestria do tratamento dado a tantos assuntos pesados de modo breve e que em momento algum soa “pregatório”. Pelo contrário, o fluxo da história trazendo um evento seguido de outro cria uma comoção continuada que transforma seus temas em assunto universal. Compreendemos todos os choques não porque os entendemos, mas porque os sentimos, o entendimento fica para um momento posterior de debate em sites de internet, em cadeiras de bar, ou em debates de sala de aula.

            Ilustrativo de tudo isto é o princípio do filme, narrando a história que levará ao abandono da criança. A Mãe, numa performance tocante da parte de Edna Purviance, aparece primeiro com seu bebê nos braços atrás das grades. Ela não estava presa e não se trata de uma prisão, mas a maternidade voltada a mulheres pobres e solteiras como ela carrega a atmosfera de prisão para mulheres delinquentes cujo crime é a maternidade. Passando em frente a uma igreja numa peregrinação sem rumo, a Mãe vê uma festa celebrando um matrimônio. Ela se entristece com a cena, seu olhar é análogo ao de pinturas de santas, e isto não passa despercebido de Chaplin que monta uma composição mostrando por meio do vitral da igreja às costas da Mãe a sua santidade pelo milagre de ter trazido uma vida ao mundo. Soa demasiado cristã esta última sentença? De fato, contudo o uso de imagens cristãs será recorrente neste filme. Uma das mais famosas é o corte entre a Mãe e um Cristo carregando a cruz, sequência que poderíamos apontar como predecessora ao corte das ovelhas/trabalhadores em Tempos modernos, tão frequentemente vinculado aos métodos de montagem de Eisenstein.

            A história de um casal quebrado, cujo amor resultou na criança que a Mãe agora carrega nos braços, é sintetizada por alguns momentos breves que não dão motivos para o rompimento do casal, apenas demarcam sentimentos de uma paixão ainda existente mantida em silêncio, seguido por uma sensação melancólica. O pai é um pintor pobre, trabalhando em algum sótão em ruínas. Ainda mantém a foto da mulher sobre a lareira como uma lembrança de tempos melhores. Tentando acender um fumo, acidentalmente deixa a fotografia cair na brasa. O papel se queima, a lembrança da paixão foi maculada. Como se não houvesse mais precisão para o presente, como se a própria memória tivesse sido apagada a fogo, o jovem pintor lança o papel de volta às chamas para que desta vez seja de fato consumido, retornando para sua banalidade presente desprovido de presença feminina.

            Alongo a contemplação da história deste casal porque estes momentos marcam um Chaplin exercitando seu talento dramático, o que será levado ainda mais adiante dois anos depois, quando lançará A Woman of Paris (no Brasil lançado com o título Casamento ou luxo). Os motivos acerca da união destas personagens são quase nulos. Os entendemos, fora da tela, como uma espécie de extensão da representação dos pais de seu autor. Também pai e mãe de Chaplin eram artistas, também não viviam juntos. Mas em O Garoto, o abandono do bebê acarreta um sucesso de sabor amargo para ambos – e um prato farto para leituras psicanalíticas. Num encontro da alta sociedade, já num momento mais avançado do filme, Chaplin faz estas duas personagens se encontrarem. Não existem acusações aqui, apenas arrependimentos e saudades. As perguntas nascem em nossa mente de espectador: saberia ele que ela estava grávida? Teria ele a abandonado por saber que ela estava grávida? Teria ele se recusado a casar-se com ela? Todas as perguntas ficam para o campo da especulação. Durante a projeção do filme o que melhor nos serve é o diálogo de emoções travado entre duas personagens tão conflituosas.

            Então, a Mãe deixa o bebê dentro de um carro na frente de uma mansão na expectativa de que os ricos moradores do lugar tomem a criança como sua. Numa reviravolta, dois bandidos típicos dos filmes de Chaplin desde os anos de aprendizagem nos estúdios de Mack Sennett, aparecem. Roubam o carro sem se dar conta da presença da criança no banco traseiro. Param num bairro pobre para fumar, quando escutam o choro da criança vindo do carro. Este é um daqueles momentos que justificam a troca de terminologia de “cinema mudo” para “cinema silencioso”. Apesar do choro não ser escutado pela plateia, ele faz parte da imagem-som, como diria Luiz Manzano. Os cortes da imagem da criança chorando para a imagem dos bandidos reagindo ao choro adiciona uma faixa de áudio ao filme, mesmo na ausência de traquitana para gravar o choro da criança.

            A introdução do filme marca a força da montagem na criação desta história. A maquiagem pesada dos bandidos, tentando criar cavidades escuras em seus rostos, era um aspecto empregado pelos cômicos ao colocar tal tipo nos filmes. Acontece que a imagem dos bandidos abandonando a criança num beco qualquer, longe da mãe, em meio a latas de lixo, surge carregada de um senso angustiante quando seguindo as imagens da Mãe em desespero voltando para recuperar o filho deixado no carro e descobrindo que ele foi levado, que seu paradeiro não voltará a ser encontrado. Diferente do que acontecerá assim que for apresentada a personagem de Carlitos, que virá abolindo este uso mais direto da montagem, a introdução dramática de O Garoto se baseia principalmente no diálogo emocional entre dois polos. A chegada de Carlitos em cena é a passagem para o plano aberto, dando espaço para a composição de quadro e movimento dentro do cenário. Afinal, Carlitos é um bailarino.

            O plano mostra bem um beco sórdido, de terra batida e lixo pelo chão. Apresentando a dinâmica do perigo do fora de quadro, lixo cai do alto do prédio em direção à rua. Carlitos vê o acontecido e contorna o montinho de lixo recém-formado, continuando a caminhada com toda a sua graça. Inesperado para ele, outra janela mais a frente, também fora de quadro, se livrará do lixo diário atirando-o à rua, agora acertando em cheio nosso velho conhecido. Parado entre lixeiras, limpando o lixo com o qual foi atacado, o Vagabundo descobre um bebê abandonado. A dinâmica até aqui foi clara, o inesperado vem de cima. Assim, quando Carlitos toma o bebê nos braços não pode deixar de olhar para cima, como se alguém tivesse misturado a criança acidentalmente com o lixo.

            O que fazer com a criança? O novo Carlitos, de profundidade e complexidade psicológica, não é capaz de simplesmente deixá-la onde achou. Procura alguém com quem deixar, talvez alguém que já tenha um bebê. Talvez não. A força da lei na figura de um policial alto e sério que faz Carlitos dar passos para trás é curiosamente o que também o leva à resignação. Encontra em meio às roupas da criança o objeto que servirá de ligação entre passado e presente: um bilhete escrito pela Mãe dizendo que se trata de uma criança órfã. Entendendo bem de solidão, Carlitos acolhe o bebê, levando-o para casa. Quando questionado à porta do casebre, responde que o nome da criança é “John”.

            Os anos passam, vemos os tratos do Vagabundo ao bebê, sua afeição pela criança, que crescida se transforma em sua parceira de trabalho numa das cenas mais bem lembradas da história do cinema. O menino, agora com cinco anos, atira pedras contra vidraças residenciais. Sorte do acaso, Carlitos está passando em frente às residências, podendo consertá-las de imediato. Muito já se escreveu a respeito do brilhantismo do jovem Jackie Coogan interpretando a criança, assim como muito já foi reportado acerca do entrosamento em cena de pai e filho. Pulando etapas, chego ao momento do primeiro reencontro da Mãe com a criança abandonada.

            Já fora mostrado como a passagem dos anos fizeram bem ao status social da Mãe, agora uma artista de fama e fortuna. Mas algo lhe pesa na consciência, obrigando-a a voltar aos bairros pobres para fazer caridade. Ela dá brinquedos às crianças que se aglomeram ao seu redor, fazendo surgir enorme sorriso até então inédito em seu rosto. Para uma outra mãe com uma criança de colo, para além do brinquedo ela também dá uma moeda. Trata-se de uma parte muito sofrida da cidade, onde as pessoas precisam se desdobrar para conseguir comida. As gags de Carlitos e filho mostram bem o quanto de esforço criativo é necessário para conseguir a moeda garantidora do jantar do dia.

            Afastada das crianças, o sorriso da Mãe desaparece. Não é preciso um recurso de montagem para indicar o que se passa. Ela lembra de seu bebê abandonado, provavelmente inquerindo onde ele poderia estar. Numa bela composição de quadro, a Mãe se senta numa calçada à porta da casa 69. Como há um degrau a mais para entrar na casa, a porta aparece alta às costas da Mãe. Enquanto ela se perde em seus devaneios, a porta abre e o menino perdido senta-se logo atrás. Aquele quadro dentro do quadro serve como uma espécie de balão mostrando pensamentos. Numa imagem lírica digna do que Bergman fará décadas depois em suas experiências atravessando mundos de sonhos e lembranças, um rasgo é feito no tecido do tempo unindo Mãe e filho mais uma vez.

            O encontro entre os dois é comovente. A troca de olhares singelos, o carinho da mulher que parece enxergar algo a mais na criança presenteada com brinquedos, um indizível que permanece a incomodá-la. Enquanto ela se afasta do sítio do encontro, sua reação diferente da reação tida anteriormente quando em companhia das outras crianças, como se algo que conectasse os dois houvesse soado em seu interior, mas a falta de exercício da maternidade dificultasse a compreensão do que seria isso.

            Me ative por mais tempo para relembrar os momentos em que Carlitos não está em cena, mas que demonstra a sapiência de seu criador na construção da composição e narração fílmica. Era tamanha a sua facilidade em contar histórias em filme, mesmo quando ele não aparece em cena, que este filme certamente foi um marco para sua passagem a outra obra mais ousada dentro de sua filmografia, o já mencionado A Woman of Paris.

Como artista da pantomima, Chaplin domina o palco, alcança a perfeição do ritmo dos momentos e deslocamento ao longo do cenário – lembremos da icônica sequência da corrida pelos telhados, homenageada por Manoel de Oliveira em Aniki Bobó. Como diretor de cinema, Chaplin demonstra o domínio do corte, da sequência de planos em situações simultâneas em locais distintos, e da composição de quadro, reconhecendo a importância de portas e janelas como forma de reenquadrar certos personagens. Ainda, sabe da importância do som para o cinema, enxergando a sua presença mesmo nesse período silencioso, demonstrando por isso a completude do cinema, não uma falta – daí sua obstinação em se render ao cinema sonoro.

            Retornamos às cenas com descrições também alongadas para criar mais uma sensação de rever este clássico. Não era necessário, mas já que estamos aqui, vamos rever O Garoto?



Clique na imagem para comprar ou

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Um filme falado de Manoel de Oliveira (2003)

por: Ruy Gardnier




Um gênero cinematográfico que remonta às origens do cinema é o travelogue. Trata-se do registro de viagens e lugares notáveis, com a declarada intenção ilustrativa de apresentar as localidades filmadas a um público ávido por informações sobre outros lugares, algo que só a recente arte do cinema poderia então suprir, muito melhor do que os simples registros fotográficos e muito mais barato do que as perigosas e caríssimas viagens propriamente ditas.Um Filme Falado começa como um travelogue: Rosa Maria (Leonor Silveira, exultante como sempre) acompanha sua filha de sete anos, Maria Joana, por um cruzeiro marítimo pelo Mediterrâneo, e vai narrando à menina todas as marcas do tempo que ficam na História e compõem a geografia: monumentos, lugares, templos. Uma fórmula, talvez: entramos num país, a câmera filma um sítio histórico, a mãe apresenta-o à filha, didaticamente, e a menina começa uma saraivada de perguntas. Uma fórmula ou antes a exposição das regras do jogo? A clareza para com o espectador, constante eterna dos filmes de Oliveira, encontra aqui uma devoção e uma emoção novas: o diretor parece ele mesmo querer guiar as novas gerações para nos fazer notar, tal como Napoleão fez outrora com seus comandados, que séculos e séculos nos contemplam.

Começamos em Portugal. De lá, um monumento em homenagem ao infante Dom Henrique inicia uma série sobre a história portuguesa (a batalha de Alcácer-Ceguer). Mas daí se inicia uma outra, mais espectral: paralelamente à história concreta e tangível dos lugares, Manoel de Oliveira tem prazer em nos apresentar e nos fazer crer que outra história, fluida e invisível mas não menos concreta (de fato, parece que ela é o cimento que faz com que os lugares assumam a forma concreta). Essa história é a das lendas, das sereias, dos mitos e das crenças. O Castelo do Ovo em Nápoles é sustentado por um mito, assim como a lenda de que numa manhã de nevoeiro a alma do Infante Dom Henrique tomará forma e voltará a Portugal. Fugimos logo dos registros factuais de lugares para entrar num tecido mais denso da História, o das práticas humanas e de suas tentativas de explicação para fenômenos que não conhecem na totalidade.



Mas o cruzeiro há de continuar: passamos por Marselha, França, onde o navio recolhe Delphine, uma poderosa empresária (aliás Catherine Deneuve) e onde somos apresentados a uma digressão sobre o poder do petróleo no mundo, sobre guerras e sobre como a história sempre caminha para a frente (é em Marselha que a França estoca petróleo emergencial em caso de guerra). Passamos por Nápoles, Itália, onde sobe ao navio a atriz e modelo Francesca (Stefania Sandrelli), e onde observamos as ruínas de lugares históricos, como o Vesúvio (digressão, naturalmente, sobre a vontade divina em punir, o bem e o mal, etc.). Depois, a Grécia, onde vemos entrar no navio a cantora Helena (Irene Papas), e onde visitamos Atenas, berço da civilização ocidental, e conversamos sobre a Igreja Ortodoxa, sobre deuses e templos, teatros e democracia. A primeira parte do filme obedece à lógica de uma tele-aula histórico-filosófica: contemplamos os lugares, observamos a distância histórica que nos separa dos tempos passados (a fascinação de Oliveira por tudo que é da natureza da ruína não dos dá chance de não atentar para isso) e extraímos ensinamentos daquilo que vemos e aprendemos. Não exatamente um travelogue, mas um travelogos: o que importa aqui é menos o pitoresco da viagem do que a densidade da História que se pode transmitir, o poder que é a passagem do conhecimento de um pai para um filho, de um emissor (um diretor) para um receptor afetivo (seu público), a força que é fazer um “filme falado” para engajar a mais nova pétala de flor (uma menina de sete anos) na História de um mundo que é seu (o Velho Mundo, bem entendido).

A segunda parte do filme perspectiva e amplia a primeira. Depois de vermos a História inscrita in loco a ferro e fogo, vem a reflexão. Dentro do navio, sentam-se à mesa o capitão John, um americano (John Malkovich), e as três celebridades de cada nacionalidade (francesa, italiana, grega) que vemos entrar no navio a cada parada. Cada pessoa fala sua própria língua, mas como por milagre todos se entendem perfeitamente. Muito corteses e galanteadores entre si, discutem sobre filhos (a continuidade da História), sobre grandes empreendimentos e por fim chegam à questão da tecnologia e do modo como a tecnologia define o ocidente e instaura um cisma em relação ao oriente. Terreno mole onde se imbricam política, cultura e filosofia, a discussão só pode se terminar por um clamor de compreensão mútua e o nascimento de valores convergentes que possam reaproximar os dois grandes e separados blocos terrestres. Não que Manoel de Oliveira busque aqui uma saída redentora de boa consciência: ele é o primeiro a saber que a História não se joga com benevolência e boas intenções (a cena em que Leonor Silveira não consegue explicar à sua filha o porquê de pessoas civilizadas matarem umas às outras – “É de sua natureza”; “Mas o que é ‘sua natureza’?”) é particularmente pungente e graciosa). Resta ao menos a tentativa de construção de uma ponte entre culturas – algo que parece ser fortemente a aposta central do filme.



A partir daí o tecido fica intrincado. Passeamos pelo Egito, pela Turquia e por Aden. Só então a personagem de Leonor Silveira ganha dimensão e passado: ela é casada com um piloto de avião, e vai aportar em Bombaim, Índia, onde vai encontrá-lo, e de lá partirão juntos em férias. John Malkovich chama-a à mesa com suas outras amigas, e em cinco continuam a prosa do dia anterior. Curiosamente, o inglês passa a ser o esperanto o grupo, o que permite algumas reflexões sobre a língua inglesa, a colonização cultural americana, o poder da língua portuguesa no mundo (está nos cinco continentes) e a relativa fraqueza da língua grega, restrita unicamente à Grécia, mesmo tendo sido uma raiz decisiva de quase todas as línguas ocidentais. Um fato curioso é que, mesmo que falem em continuidade, a única pessoa que deixa descendência é Leonor Silveira: todas as outras mulheres não tiveram filhos, e o único laço amoroso do capitão John é com o mar.

Enquanto uma deslumbrante Irene Papas canta, um subordinado passa uma mensagem ao capitão. Ele sai, preocupado, enquanto os passageiros se encantam com a voz da cantora grega. (Daqui em diante, spoilers graves) A canção é em grego, mas o grego é uma língua que ninguém mais ouve. Uma pena: a canção pede para que os ventos impiedosos do norte soprem com mais calma. Enquanto isso, o capitão dá a mensagem: uma bomba foi depositada no navio e todos terão que abandonar a embarcação. A grande maioria consegue sair, mas os créditos sobem na explosão fatal (e no olhar congelado de Malkovich que, desesperado, pedira aos últimos passageiros que pulassem ao mar). Por fim, antes o fim dos créditos, volta a canção de Irene Papas, mais uma vez pedindo aos ventos que se atenuem e soprem com mais serenidade.



Manoel de Oliveira encara o terrorismo não como um deus ex machina apocalíptico e muito menos como um ato repreensível do ponto de vista da civilização. Trata-se de apenas mais um episódio daquilo que é “humano, demasiado humano”, a eterna luta pela sobrevivência e para o subjugo do outro. Mas, do ponto de vista de outracivilização, a da continuidade dos saberes através das letras e da passagem de vivência e informação (esse é o real sentido do título do filme, um filme falado), o que resta é um clamor para que o mundo se veja como uma verdadeira comunidade global, e para que, unido, supere seus problemas, como na babel imaginária que compõem Malkovich, Irene Papas, Catherine Deneuve e Stefania Sandrelli, culturas e línguas diferentes falando diferentes linguagens e se entendendo mutuamente. Oliveira é e sempre foi um cineasta da história. Diversos de seus filmes são estudos de caso que tentam entender a História e revelar a seus espectadores essa maravilhosa e fantasmagórica (deinonunheimlich) dimensão do homem no tempo. Um Filme Falado é menos isso do que um testemunho diante da História, como uma grande escultura, um monumento que abre a boca num último clamor diante da barbárie que bate à porta. Materialista e sem pressupostos de moral, Oliveira entrega sua mensagem universalista ao mesmo tempo em que renova sua profissão de fé no cinema como arte inclusiva (catalisadora de todas as artes) e perspectiva (faz refletir sobre todas elas e sobre si própria). A mesa das atrizes, para além de toda construção temática, é ela própria uma forma de dizer que o cinema é um monumento histórico tão grande quanto as ruínas de Pompéia ou o Partenon, Nápoles ou Constantinopla. Várias camadas de História se fazem presentes num filme de Oliveira, e a passagem entre elas é que compõe toda a beleza que jamais nos deixa de maravilhar, como nos maravilha a história e o humano em geral. Um Filme Falado adiciona à fórmula a contundência de um dos maiores choques em fim de filme nos últimos anos. Em todo caso, um choque que é mais um duplicado clamor por compreensão mútua do que uma mortuário e suicida confissão de que o apocalipse está próximo. É a constatação de que o funesto bate à porta, mas que ainda é possível, universalismo exige, expulsá-lo da varanda.

Com este texto fechamos a trilogia sobre Um filme falado, com três visões de três leitores diferentes.
Veja aqui os outros dois: João Bénard da Costa, Yves São Paulo.
Texto originalmente publicado em: Revista Contracampo.

domingo, 13 de setembro de 2015

Um filme falado de Manoel de Oliveira (2003)


Fazer um filme que se baseie por completo nas falas dos atores é extremamente contrário ao motor primeiro do cinema: a imagem. Nestes casos a imagem passa a segundo plano. Tudo o que passa a ser visto e a importar no filme são aqueles grupos de pessoas que falam, falam sem parar. Isto é muito positivo quando vamos ao teatro e vemos atores recitando os monólogos de Shakespeare ou de Brecht. No cinema, não. Mas como na arte as afirmações universais não possuem lugar, é sempre bom ser surpreendido por alguma obra que surja para nos mostrar um algo além do que o cinema pode ser. Não enquanto meramente um teatro filmado em que atores recitam textos que lhes são entregues, Mas enquanto cinema de verdade.

Um filme falado de Manoel de Oliveira é película sobre a história da humanidade (ou o tempo) e a linguagem. Em cena temos uma mãe, professora universitária de história e sua filha criança. Saem de Portugal em direção à terras distantes: rumam às índias como faziam seus antepassados. Mas desta vez passando pelo canal de Suez, maravilha do mundo moderno que permite a diminuição de tão exaustivo percurso. Como prova disso esta viagem não é realizada para conquistar nada, e sim para a realização de um encontro, o encontro do marido/pai da dupla que sai de terras lusófonas. Durante todo o trajeto (e o filme) o que teremos será uma aula de história. A mãe leva a filha até sítios históricos para poder contar-lhe um pouco do passado de seu povo, um pouco do passado da civilização. Em parte, apresenta-se ali a decadência.


Em A viagem ao princípio do mundo Manoel de Oliveira já nos mostrava como o passado está presente nas coisas. A marca do encosto de um banco numa árvore permanece lá, mesmo muito depois de o banco haver sido retirado. São pedaços de um passado que permanecem ainda presentes, ainda que não nos lembremos deles. Eles estão presentes nas atitudes humanas, que levaram a derrocada destas civilizações passadas, como diz a historiadora à filha curiosa. Por que eles se matavam?, pergunta a menina. A mãe diz ser da natureza deles. Não somente deles, podemos dizer após vermos o fim do filme, mas também nossa. O homem continua a ser o mesmo de séculos atrás, simplesmente ganhou maior poder de fogo.

Em cada parada do navio de cruzeiro que leva mãe e filha até Bombaim, embarcam algumas figuras famosas, que aparecem em revistas e jornais, como notam a dupla que acompanhamos por toda a película. Já na segunda metade do filme, Manoel de Oliveira dá um descanso às suas personagens depois de tanto caminharem, depois de tanta história revisitada, para colocá-las no restaurante do navio. Lá, veem o capitão se reunir com aquelas senhoras que vimos embarcar em cada parada. Uma senhora francesa, uma italiana, outra grega. Estão sentadas em uma mesma mesa e cada uma tem sua vez estipulada para se apresentar, num jogo, como se refere o capitão. E cada uma prefere falar em sua própria língua. Parecem se compreender, e dizem isso a certa altura. O impasse da torre de babel, como relembra o capitão, foi solucionada naquele momento.


A discordância entre as civilizações pode ser muito comodamente resolvida com resposta tão simples, a falta de entendimento por causa da língua. Mas não é este o caso. Sentadas à mesa, as mulheres percebem que conseguem se comunicar sem a necessidade de tradução. A única língua que todas parecem falar é o inglês, idioma que dominou o mundo - e não equivocadamente Manoel de Oliveira pôs um ator estadunidense como capitão de seu navio, o homem capaz de levar-lhes para qualquer lugar. O problema é que todas as civilizações colapsam. Prova vinda de dados históricos. As potências caem e agonizam, como é o caso da Grécia. O país que berço da cultura ocidental, agonizam com uma língua que somente é aprendida em seu próprio solo e nas academias - como lembra a professora de história que estudou o idioma, mas esqueceu.

O filme se divide nestes dois momentos: o filme aula ou filme turismo e a relação intercultural. O primeiro é interessantíssimo. É como se Manoel de Oliveira nos levasse a pontos turísticos da Europa (e depois do Egito) com direito a guia. Lembra o início do cinema, quando os filmes eram curiosidade. E para aumentar ainda mais a curiosidade das pessoas e as manter curiosas com o que seria passado nas sessões seguintes, as empresas filmavam países exóticos para entreter suas plateias. Manoel de Oliveira faz coisa semelhante, mas não abandona um pouco de reflexão, dando motivos para conhecermos a história. O segundo momento é, no mínimo, curioso. São representantes de quatro civilizações: os gregos que dominaram a cultura ocidental na antiguidade, os italianos (ou romanos) que dominaram na idade média, os franceses que fizeram seu domínio durante a modernidade, e os norte-americanos que dominam hoje. Todos impuseram sua cultura sobre o resto do mundo. A portuguesa se senta naquela mesa, mas quase nada fala. A sua inserção naquele ambiente provoca uma mudança: o diálogo necessita ser falado em inglês. Com isto, logo fica clara quem ali é que está por cima, desta vez.


Neste construto estético, Manoel de Oliveira nos insere numa relação de cotidianidade. Estamos acostumados a encontrar outras pessoas e conversar. Não fazemos malabarismos ou coisas do tipo para poder nos comunicar com elas, simplesmente falamos. E um filme falado causa esta impressão. E somos inseridos num filme que nos passa este sentimento de cotidiano. Um cotidiano diferente, é verdade, um cotidiano de viagem. A principal relação que se constrói e que nos causa empatia é da mãe com sua filha. E nada de exagerado é feito pelo diretor. É o asseguramento daquele cotidiano. Numa quebra desta relação, eis que Manoel de Oliveira decide quebrar este cotidiano ao final, como já sugerimos um pouco antes*. Estão as mulheres sentadas a ouvir a mulher grega cantar quando vem um marujo falar com o capitão. Sussurra-lhe algo ao ouvido. O capitão sai e logo retorna, há uma bomba a bordo. Uma das civilizações ficará para trás e explodirá junto com o navio. Não estávamos preparados para este final sem dúvida. Mas será que alguma civilização estava preparada para seu declínio?

Este texto faz parte de uma trilogia publicada aqui no blog sobre Um filme falado. São três leituras de três espectadores diferentes. Leia aqui a de João Bénard da Costa, e de Ruy Gardnier.

*Esta quebra do cotidiano me remeteu a alguns autores e filmes, em especial o clássico de Chantal Akerman Jeanne Dielman, filme de pouco mais de três horas de duração em que acompanhamos o cotidiano básico de uma dona de casa (levantar, fazer comprar, tomar banho, preparar o café e o almoço...), o que não nos prepara para o desfecho surpreendente que se apresenta.

terça-feira, 8 de setembro de 2015

Um filme falado de Manoel de Oliveira (2003)

por: João Bénard da Costa

UMA DESARMANTE COMPLEXIDADE

1 - Quando, em 1957, Chaplin estreou o polêmico A King in New York, Rossellini terá dito: “É o filme de um homem livre.”

Enquanto via Um Filme Falado, o filme de Manoel de Oliveira que hoje se estréia em Portugal, lembrei-me dessa reação como a mais óbvia. Só um homem livre (coisa muito mais difícil de se ser do que de se falar) podia ter ousado uma obra assim. Obra que não presta contas a ninguém, não pede contas a ninguém e não ajusta contas com ninguém. Obra em que Oliveira põe toda a sua verdade e nada mais que a sua verdade. Na grande idade, alguns artistas conseguiram-no. Um tão grande despojamento que justifica a dúvida sobre se se está perante uma obra de juventude ou perante uma obra de pletórica maturidade. Como aconteceu com Mozart e levou o seu catalogador - Köchel - a datar como obras de verdes anos obras dos anos finais. Mozart morreu novíssimo? Aparentemente. Mas foi ele próprio quem disse que suou sangue para chegar ao que os distraídos classificaram como superficial ou leve. Para se atingir a “leveza” de Um Filme Falado talvez não sejam precisos 95 anos, mas é preciso certamente algo que anda lá muito perto, em termos de tempo e em termos de modo. Louvado seja!


2 - Começo pelo título. Aparentemente nada de mais corriqueiro, quase um pleonasmo, pois que, com raríssimas exceções, há quase oitenta anos que todos os filmes o são. Estou com curiosidade de saber como o vão traduzir para inglês ou para americano: “A Talkie”? Literalmente, devia ser assim, embora a Variety lhe tenha chamado A Talking Picture, o que, sem trair, não é exatamente a mesma coisa. Mas quando nos pegam na mão para nos lembrar o óbvio, é porque o óbvio não é tão óbvio como aparenta sê-lo. Para gente não poliglota, os filmes falados noutras línguas ou não são ouvidos, são lidos (no caso das versões legendadas), ou são ouvidos (no caso das versões dubladas) em fala de gente que fala a nossa fala, ou seja em fala que a gente do filme não falou. Em Viagem ao Princípio do Mundo, um dos filmes de Oliveira que mais se aproximam deste, uma velha analfabeta da raia minhota perguntava do sobrinho, nascido em França e que só falava francês: “Por que é que ele não fala a nossa fala?” Essa pergunta está implícita em todos os filmes falados, como está implícita em todas as traduções e tem sido um dos temas prediletos de George Steiner.

Pois bem. Neste filme, há um jantar que reúne um ator americano, de origem polaca, no papel do capitão do navio (John Malkovich), uma atriz francesa, no papel de uma rica mulher de negócios (Catherine Deneuve), uma atriz italiana, no papel de um famoso modelo (Stefania Sandrelli), e uma atriz grega no papel de uma célebre cantora (Irene Papas). É um jantar de circunstância, pois que o circunstancial capitão convida para a sua mesa as três celebridades que levava a bordo. A conversa é circunstancial, “uma espécie de jogo”, como lhe chama o capitão, pois que cada um ou cada uma resume a história da vida, com paragem nas datas mais marcantes: nascimento, casamento ou não casamento, filhos ou não filhos. Nada de indiscreto, nem de confidencial. Conversa de salão ou jogo de sala. Mas o que sai fora das normas (de todas as normas) é que o capitão fala inglês, a empresária francês, a ex-modelo italiano e a cantora grego. E todos se entendem perfeitamente. Graças às legendas, também o espectador os entende, como notava com pertinência o crítico da Variety, que se esqueceu, contudo, de sublinhar que essa seqüência proíbe a dublagem, que lhe retiraria por completo o sentido.

Mesmo que admitamos, como hipótese, que os quatro dominam as quatro línguas (não parece ser o caso), nenhum fala a fala do outro. Como aliás é notado, a situação é a inversa do mito de Babel. A língua não é barreira mas continuidade sem ruptura. É a falar que eles se entendem, no diálogo mais antiglobalizador que alguma vez ouvi em cinema. Mesmo que um dos temas de conversa seja a globalização e que a grega recorde que os “founding fathers” americanos ponderaram seriamente a hipótese de o grego ser a língua dos Estados Unidos, o que, caso tivesse acontecido, daria hoje ao grego estatuto universal, em vez de um estatuto cada vez mais regional que Irene Papas tanto lamenta.

Numa mesa próxima estão uma professora de História e a sua filha, ambas portuguesas (Leonor Silveira e Filipa de Almeida). Quando, mais tarde, o capitão as convida para se reunirem aos quatro (antes fizera à professora convite mais dúbio), o “milagre” interrompe-se e é na língua “global” (o inglês) que Leonor Silveira dialoga com os habitantes da outra mesa. A nossa fala, ao longo do filme, não é comunicável senão entre portugueses (mãe e filha, ou ambas com Luís Miguel Cintra, a fazer de Luís Miguel Cintra, quando, “por acaso”, se encontram no Cairo e aquele lhes faz de cicerone).

Por que é que Portugal não sai de Babel? É uma boa pergunta que pode ajudar a perceber por que é que o destino das duas portuguesas é o único que é diferente do destino de todos os outros passageiros do navio. Portugal é um caso à parte? Neste filme, é-o. Há contatos, mas não faz parte do jogo. Sempre off, é, no fim, o que fica mais in, no sentido mais radical da expressão.


3 - Navio. Quase todo o filme se passa nele, viagem de uma mãe e filha pelo Mediterrâneo, matriz da civilização de que vivemos os dias finais. Essa situação levou alguns críticos estrangeiros a comparar este último Oliveira a E la nave va de Fellini. Só que este navio não vai. À exceção da parte final da viagem, quando o Mediterrâneo não é mais dele, só o vemos imobilizado nos vários portos (Marselha, Nápoles, Atenas, Istambul, Cairo, Aden) ou num belíssimo plano recorrente, em que a proa rasga as águas azuis. Ao princípio (largada do Tejo e de Lisboa) há movimento (travelling até Belém) mas não há palavras, com o filme falado a começar como filme mudo. Depois, sempre na mesma amurada, em plano em que quase só muda a indumentária das protagonistas, o navio está acostado. Dele, se vê a entrada de Catherine Deneuve (Marselha), de Stefania Sandrelli (Nápoles) e de Irene Papas (Atenas). Catherine Deveuve é filmada em plongée, num curto plano. Stefania Sandrelli tem uma entrada mais aparatosa. Irene Papas, entrada de vedete. Mas só passado o Mediterrâneo todos se encontram e só passado o Mediterrâneo vemos o interior do navio, até essa altura nunca desvendado. Já não é meio de viagem, mas sim fim de viagem, já não é lugar de cruzeiro, mas marca de cruz. Barca de Caronte, se preferirem. E, se há filme nos antípodas do de Fellini, é um Um Filme Falado, certamente o mais clássico e o menos barroco dos filmes de Oliveira. Se se pode dizer que ambos choram o fim de uma civilização, o que é transbordante em Fellini é contido em Oliveira. Nada nos prepara para o desfecho e, no entanto, sem esse desfecho, que é um dos cumes da arte de Oliveira, nada faria sentido. E é um desfecho em “paralítico”.


4 - Como a mãe não se cansa de dizer, essa viagem, planificada para ir ao encontro do marido, que a espera em Bombaim, é um cruzeiro porque decidiu aproveitá-la para mostrar à filha os lugares santificados (ou mitificados) da história do Ocidente. É uma viagem de instrução, como se dizia antigamente. É nessa instrução que tropeçam quase todos os detratores (significativamente portugueses) do filme de Oliveira. A mãe, professora de História, conta a História como Luís Miguel Cintra contava a História de Portugal no Non. Mas em Marselha o que sobressai é um caniche branco, são os mercados, é uma conversa em francês com um vendedor de peixe e é uma placa no chão, remetendo para a colonização fenícia e para a invenção do alfabeto. Em Nápoles, o Castel dell’Ovo e a profecia de Virgílio que o assinalou como sinal de perenidade. O Vesúvio. Ou Pompéia, com a pergunta sobre “o que é uma vida devassa”, a sobreposição dos guias turísticos e o campo-contracampo do décor “reconstituído” e da ruína. Cave canem. Em Atenas, a Acrópole e “como podia ser bonito se tudo estivesse como era”, fala desmentida pelos fulgurantes planos do Pártenon, do Erectéion e, sobretudo, pelo plongéeinadjetivável sobre o teatro. Depois, Istambul e Santa Sofia. Depois, o Cairo e a Esfinge.

Mas, a partir de Constantinopla, os sinais são mais elípticos ou crípticos. Junto ao chão, em plano de pés, mostram-se-nos as cruzes do cristianismo deposto. Os caminhos começam a ser caminhos opostos, na direção de Meca ou na direção de Jerusalém. No Cairo, a esfinge e os escaravelhos iluminam os vivos e os mortos, visitantes dos abismos e do oculto. O azul é a cor do maligno e o que se vê já não coincide com o que não se vê. Insensivelmente, sem mudança de tom nem mudança de estilo (sempre a mesma vaga névoa, sempre o acidental a significar tanto quanto o essencial) estamos a ser levados para o que todos os mitos ensinam, ou para a moral da fábula. Uma desarmante simplicidade? Eu prefiro chamar-lhe uma desarmante complexidade, pois que não me lembro de ser levado tão longe com tamanho deslizamento. Meu Deus, como tudo pode ser tão aparentemente simples (não há um efeito, não há uma “culminância”) sendo tão abissal.



5 - Mas não quero acabar sem dizer que este é um filme - talvez seja o primeiro - que traz a memória do 11 de Setembro e a imagem do mundo que a 11 de Setembro começou.

O plano final é a reverberação (espelhada, depois, no olhar assombroso de Malkovich) do “plano” que vimos, quando homens e mulheres saltaram das torres. Mas nem mãe nem filha saltam, desobedecendo à ordem do capitão. Já não há tempo. Estão, como estivessem no início, na amurada do navio. Mas o tempo suspendeu-se definitivamente e aquilo que foi viagem para transmitir a memória do passado, já não tem qualquer futuro.

O vento da morte (vento do norte) soprou mais forte, ao contrário do que pediu a belíssima canção de Irene Papas. Ficou-nos a beleza de Outrora? No filme ficou. Do navio, a última imagem é a de Copérnico, o primeiro a dizer-nos que a Terra não é o centro do Universo. E é para outros universos queUm Filme Falado nos convoca. Quem, neles, falará a nossa fala? Alguém nos ouve? Alguém nos vê?

Esta postagem faz parte de uma trilogia sobre Um filme falado.
Leia também os textos de Ruy Gardnier, e Yves São Paulo.
Texto encontrado em: Foco Revista de Cinema.
Imagens adicionadas por este blog.

sábado, 29 de agosto de 2015

O céu de Lisboa de Wim Wenders (Lisbon Story, 1994)


Truffaut já escrevia, em prefácio ao livro de textos de André Bazin sobre, que mesmo entre aqueles que não reconheciam o cinema enquanto uma arte, Charles Chaplin tinha seu espaço. O artista inglês conquistou este lugar considerável no imaginário mundial poetizando a vida comum, a vida das pessoas simples. Enxergando beleza onde todos os outros veriam somente a miséria. Não são poucos os filósofos que indicarão que o artista é aquele que transforma o ordinário em extraordinário. É exatamente isso que faz Chaplin com os pãezinhos em Em busca do ouro. Aquilo que encontramos todos os dias e cujo trato é sempre igual é transformado pelo cômico inglês num baile. É numa homenagem a este tipo de visionário que Wim Wenders vai até a capital portuguesa filmar O céu de Lisboa. Em tempos de filmes digitais, quando as imagens tornaram-se descartáveis porque todos podem produzi-las aos montes, o cineasta alemão faz este retorno às origens, a busca dos poetas do cinematógrafo.

Tudo começa com um ciao a Fellini. O italiano que também possui suas inspirações chaplinianas (ou partilha das mesmas inspirações), surge na capa de um jornal que noticia seu falecimento. A morte de um autor como Fellini poderia anunciar os tempos críticos do cinema. E parece ser exatamente isso que se anuncia por alguns momentos durante a película. Phillip Winter recebe um postal de um amigo cineasta que está a filmar em Lisboa e precisa que ele até lá viaje para fazer o trabalho de som do filme. Na primeira recusa à modernidade prática, Winter escolhe ir da Alemanha à Portugal não de avião, mas de carro. Neste caminho, a influência dos cômicos do cinema mudo torna-se explícita. Winter está de pé quebrado e dirige. O pneu fura numa ponte e ele deixa cair o pneu reserva no rio. Mais tarde falta água no radiador, que ele repõe com Coca-Cola. O carro quebra. Chegando a Lisboa, de carona, não consegue encontrar o endereço do amigo, Friedrich. E, quando adentra o edifício, descobre que o amigo não está lá.


Na casa há uma mesa de montagem com algum filme e uma câmara antiga - semelhante à das fotos de Vertov - sobre um tripé. Deita numa cama e dorme. Acorda com um grupo de crianças o filmando com as práticas câmeras portáteis, digitais, que permitem filmar horas e horas de imagens. Elas seguram as máquinas, filmam o estranho que dorme na cama de seu amigo Friedrich, mas em momento algum prestam atenção ao trabalho de composição das imagens. As câmeras digitais são encontradas em qualquer lugar, a preços razoáveis e qualquer pessoa pode manejá-las. O que não significa que saberá criar com elas. As crianças são postas por Wenders em cena como figuras desta ingenuidade moderna de criação. Com o digital todos se acreditam criadores, e creem que qualquer imagem pode ser comparada às outras, que possui tanta beleza quanto. Mas o que produzem são conjuntos de imagens descartáveis que, caso desapareçam, ninguém, nem mesmo seus criadores, sentirá falta.

As crianças correm para todos os lados sempre com a câmera ligada. Põe a máquina no rosto do engenheiro de som que tenta esconder-se do assédio. Mas não consegue passar todo o tempo longe desta maquinaria sempre ligada. Faz amizade com as crianças e mostra-lhes seu trabalho. Esconde-se por trás de uma parede, faz sons e pede para que elas adivinhem o que é. Entusiasmadas, elas dão identidade àqueles sons produzidos pelo homem. Nunca deixando de gravar, mesmo que o nada. Aquele agrupamento de imagens desordenadas será, depois, projetada numa parede da casa para que Winter assista. Ele não consegue assistir. São muitas horas de imagens sem conteúdo. E parece que Friedrich nunca lhes disse o que poderiam filmar ou deixar de filmar.


Assistindo o filme que o amigo sumido deixou na mesa de montagem é que Winter passa a ter noção de com que trabalhar. Sai às ruas lisboetas em busca dos sons. Descobre toda a beleza do lugar a partir daquele trabalho de segurar o microfone. Fecha os olhos e tenta captar as imagens sonoras - porque é isso o som do cinema - da vizinhança. Ouve o bater de asas dos pombos. Uma mulher que grita com alguém. Uma criança que canta uma cantiga. O mundo se abre perante àquela percepção calma e cuidadosa. O fazer artístico é um processo demorado e paciente. Diferente das imagens digitais das crianças - nenhum preconceito contra as crianças, elas são representação de algo no filme - que buscam o imediato e que podem ser descartadas (e este é um ponto muito caro a Wenders, as imagens descartáveis), a criação artística de filmes de cinema busca este algo além, aquele algo que não seria por nós alcançado no cotidiano. Como os pãezinhos que transformam-se em pés a bailar sobre a mesa com Charles Chaplin.

O cineasta amigo de Winter torna-se desacreditado do fazer cinema. As pessoas são bombardeadas por imagens o tempo todo, e agora também podem produzi-las. Não há mais o espanto e o encantamento que tinham as plateias de tempos idos. É verdade, não há. Mas o que é que de relevante vem sendo feito? As imagens vem sendo produzidas sem qualquer conteúdo relevante. Sem a beleza estética necessária. É isso que Manoel de Oliveira, em participação especial, vem nos lembrar. Posto em frente à câmara, o cineasta português põe-se a imitar Chaplin e seu caminhar pelas ruas lisboetas. O conjunto de belezas da cidade está aí para ser apreciada, mas o passar cotidiano pela arquitetura distancia o sujeito de sua apreciação. O cinema é capaz de trazê-las de volta. E por que não fazê-lo como Vertov fez ao filmar seu O homem com uma câmera?