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sexta-feira, 22 de outubro de 2021

Olney São Paulo

 Considerações sobre a trajetória artística do cineasta baiano

Aproveito a ocasião dos 85 anos de nascimento para fazer uma homenagem ao cineasta Olney São Paulo. Conheço a personagem deste artigo de memória contada, sobrinho que sou do realizador que não cheguei a conhecer. Seu nome sempre esteve presente em meu lar, especialmente quando o cinema ou a história recente do Brasil entravam em questão. O cinema, porque esta foi uma descoberta caseira para mim, sendo introduzido aos clássicos em VHS, depois em DVD, na ausência de uma sala de cinema que mostrasse tais filmes. Os gostos de Olney não passavam batido nas minhas sessões com meu pai, especialmente quando entravam em cena os filmes de faroeste. Difícil para Olney não se identificar com os cenários áridos dos desertos do oeste estadunidense sendo ele próprio filho da caatinga.

Já o lado história do Brasil remete a episódios dolorosos de serem lembrados por quem viveu, recuperados pela lembrança com um misto de indignação e raiva. Isto porque o sertanejo, que deixou o interior para trás querendo encontrar no Rio de Janeiro lugar mais favorável para suas aspirações, viu-se engolido pelo vórtice da crueldade política vigente na época. Seguindo os passos retirantes de gente como Glauber Rocha – que em Revolução do cinema novo dedica um belo capítulo a Olney, chamando-o de “martyr” do cinema brasileiro – e integrando o flanco dos cineastas baianos na cidade maravilhosa, Olney se viu no meio de um processo político-criminoso tão comum à ditadura instaurada em 1964.

Portanto, não se assuste o leitor se estranhar o nome deste realizador baiano, se não conhecer a sua história ou o filme acerca do qual nos deteremos nos parágrafos vindouros. O silêncio em torno da memória do velho baiano foi orquestrado pela malignidade que vilaniza nordestinos e queima filmes.

 

Olney, cineasta

O mais velho de sete irmãos, nascido em 7 de agosto de 1936 na cidade de Riachão do Jacuípe, Olney se mudou com a família ainda criança para Feira de Santana para dar continuidade aos estudos. À época, Feira de Santana tinha o privilégio de abrigar diversas salas de cinema.  Foi em Feira que se deu o encantamento do jovem pela mais faceira das artes.

Um evento particular e curioso aconteceu quando Olney era ainda adolescente e que marcou toda sua vida. Desembarcou em Feira a equipe de Alex Viany para gravar um episódio de Rosa dos Ventos. O filme tinha produção alemã, contando com realizadores de diferentes países assinando cada um dos episódios. O episódio brasileiro era estrelado. Para além do já famoso crítico Alex Viany, protagonizava o episódio Vanja Orico (saída do sucesso O cangaceiro) e assinava o roteiro Jorge Amado. Curioso com as artes, Olney assistiu às filmagens, conseguindo até os dados de Viany e Jorge Amado para troca de cartas.

Depois desse episódio singular, não teve mais jeito. Montou grupos de teatro amador, abriu revistas, até programa na rádio para falar de cinema. Quando, em 1955, um amigo apareceu com uma máquina de filmar 16mm, lá foi Olney experimentar o ofício de direção. Na ausência de recursos para montar a película, decidiram que o filme seria filmado na ordem dos eventos, parando o filme dentro da máquina. Filmavam uma cena, paravam, voltavam a filmar, sem a possibilidade de erros ou de fazer de novo. A obra foi Um crime na rua, reencontrada recentemente por Henrique Dantas em meio às pesquisas para seus filmes sobre o cinema de Olney, Sinais de cinza e Ser tão cinzento.

Da empreitada amadora passou para o cinema profissional, com estilo firme influenciado pelo cinema novo, em particular pelos filmes de Nelson Pereira dos Santos. De Um crime na rua para Grito da terra foram 9 anos. Baseado no romance Caatinga, de Ciro de Carvalho Leite, Grito da terra é um longa-metragem de ficção que lida com temas como a alfabetização do povo sertanejo e a reforma agrária. Em seu elenco, Helena Ignez, Lucy Carvalho e Lídio Silva.

Foi um pontapé de luxo para uma carreira de 14 filmes, ao todo, dentre longas e curtas, ficção e documentário. Mas no meio de uma história sobre um sertanejo curioso e criativo, desejoso de fazer parte de uma arte cara, burguesa, para falar de seu povo, veio o golpe militar. Junto com o golpe, o AI-5, que levou Olney à prisão e resultou na destruição de um de seus filmes, Manhã cinzenta. Este processo singular na história do cinema brasileiro, em que um cineasta foi acusado pela produção de um filme com as cópias de sua obra destruídas, precisa ser melhor documentado e lembrado para que reconheçamos as fragilidades do cinema em meio a golpes contra a democracia e a ascensão do fascismo institucional.

 

Olney e o processo Manhã cinzenta

Olney São Paulo era funcionário do Banco do Brasil. Logo após o lançamento de Grito da terra, consegue transferência para trabalhar no Rio de Janeiro, assim ficando mais próximo de toda movimentação do cinema à época. Já estabelecido no Rio, começa a produção de seu segundo filme Manhã cinzenta. Baseado no conto de mesmo título que abre sua coletânea A antevéspera e o canto do sol, publicada em 1966, o filme acompanha um grupo de estudantes que tentam manter viva a chama da luta contra uma ditadura sanguinária. Nesta distopia, os estudantes presos são interrogados por um robô que serve de juiz, após serem vítimas de tortura no cárcere.

O filme foi realizado ao longo do ano de 1968, sendo finalizado em 1969. Antes de submeter a película à censura, Olney exportou cópias do filme, que foi exibido em festivais no Chile, na Alemanha, na Itália, e na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes.

Em 1969, um avião com o embaixador dos EUA no Brasil foi desviado para Cuba. Dentre os guerrilheiros presentes no sequestro estava o coordenador de um cineclube carioca que poucas semanas antes havia pedido a Olney uma cópia de Manhã cinzenta. Em seu recente Nas asas da Pan Am, Silvio Tendler relembra o caso (sem mencionar Olney, uma falha no documentário), sendo ele amigo do guerrilheiro e procurado pelos militares durante a investigação. Olney não teve tanta sorte quanto Tendler. Acusaram-no de ter participado do sequestro, uma vez que seu filme teria sido, supostamente, exibido a bordo.

À altura do incidente, Olney encontrava-se no Chile fazendo uma exibição de Manhã cinzenta. Quando voltou descobriu que seu nome estava envolvido com um caso estranho. Apresentou-se às autoridades para prestar depoimento de livre e espontânea vontade, lá dizendo que não teve relação com o sequestro. Após uma primeira audição, foi liberado pelas autoridades, que ainda suspeitavam de sua viagem ao Chile durante a mesma data. Quando retornou para a segunda data marcada, ficou detido e levado para local ignorado. Ficou incomunicável, deixando sua esposa com três filhos dependendo de ajuda de amigos para manter-se ao longo dos dias de desaparecimento.

Antes de sua volta ao Chile, as autoridades da ditadura já haviam visitado os laboratórios onde se encontravam cópias de Manhã cinzenta, assim como as cinematecas, para apreensão do material. Com Olney detido, antes de sua partida para local ignorado, escoltaram-no até sua residência e apreenderam mais material, tratado como bandido perante seus filhos, num episódio que deixou marcas em suas memórias.

Na cadeia, Olney foi barbaramente torturado para que informasse outros nomes que teriam participação no sequestro do avião. Vendo que Olney era “apenas” cineasta, forçaram-no a dizer nomes para que a culpa da delação persistisse. Como relatou José Carlos Avellar, que trabalhou como fotógrafo de Manhã cinzenta, a Henrique Dantas em Sinais de cinza, Olney carregava a culpa de ter dito os nomes de seus companheiros de equipe. “Mas os nomes estão todos no filme”, teria replicado Avellar. De toda forma, faz parte do processo perenizar a barbárie em quem a sofre.

Uma cópia sobrevivente do filme, que ficou depois sob a posse de Olney em exibições clandestinas, foi fruto da esperteza do curador da cinemateca do MAM, prestando um grande serviço à memória cinematográfica nacional. Sabendo do interesse dos militares em caçar o filme em questão, trocou a película de lata, permitindo a Manhã cinzenta ganhar sobrevida.

Olney deixa a prisão depois de 12 dias e é internado num hospital. Debilitado, sofre dos pulmões, uma agrura que viria a ser a causa de seu falecimento em 1978.

Ângela José, biógrafa de Olney, parelha o seu julgamento com o processo de Joseph K., no famoso livro de Kafka. Se Olney foi inicialmente preso por um suposto envolvimento com o sequestro do avião, os autos do processo envolvendo Manhã cinzenta mostram a acusação a um realizador por ter feito um filme profundamente subversivo. Olney é obrigado a defender sua obra e a justificar o fato de não ter passado pela censura antes de ter enviado cópias para o exterior. Aponta que as imagens de prisões em processos foram conseguidas junto à TV Globo, e discursa que o filme tem uma vertente comercial e surreal ao utilizar músicas de rock e se valer de um robô.

A penitência duraria até 1971, quando finalmente o tribunal viria a absolvê-lo. O promotor do caso pediu novo julgamento, o que somente seria negado em 1972, quando o caso foi finalmente arquivado. Durante todo esse período, Olney temeu pelo retorno ao cárcere. Seus anos seguintes foram de ativa produção cinematográfica, dedicando-se ao documentário, mas ainda sofrendo com os gritos de seu período de prisão.

 

Manhã cinzenta

Os créditos de abertura mostram uma manhã de céu fechado, as pessoas levando sua vida como mais um dia. Os galopes da história vêm silenciosos, nos lembra Walter Benjamin. Por cima dessas imagens, pulsa o fervor de uma missa crioula, concedendo ao princípio do filme um tom algo épico, ou surreal. Estamos a adentrar num universo diferente, em outra realidade?

O fim dos créditos é marcado pela abrupta mudança de som da missa para o de um rock distorcido, saindo de um rádio. Encontramo-nos numa sala de aula. Uma jovem de cabelos longos, saia acima dos joelhos, dança perante uma comunhão de estudantes sentados prostrados em suas carteiras. A montagem alterna entre a dança da garota e a apatia dos jovens. Alguns deles parecem ser mobilizados pela atitude da garota, ainda que timidamente: batem mãos sobre livros ao ritmo da música e mexem os pés sob as mesas. Ninguém se levanta, ninguém se junta à garota.

Da sala de aula congelada, somos lançados ao futuro. A garota que dançava perante seus companheiros está num estilizado carro de polícia. São prisioneiros. Estamos num país totalitário que prende opositores políticos. A montagem salta do recito (discurso) ficcional para a emulação de um cinejornal em que se noticia uma manifestação de estudantes marcada para dia próximo, segue-se um discurso inflamado. Tal como acontece com Cidadão Kane, há uma construção rítmica em Manhã cinzenta que muito se beneficia da continuidade do som, criando o gancho entre situações discrepantes, entre diferentes eventos, fazendo a conexão entre imagens de cunho documental e outras trabalhadas pelos atores.

Numa união dos dois polos, documental e ficcional, o casal líder estudantil aparece em meio a uma manifestação real, caminhando em meio ao agrupamento. Em certo momento, o namorado sobe a um elevado e começa a simular um discurso. Alternam-se as imagens em que aparecem o casal do filme, imagens de jovens com paus e pedras quebrando carros, de carros incendiados. Na rapidez dinâmica das imagens, vemos estudantes sendo presos, levados até carros da polícia.

A montagem de Manhã cinzenta é acelerada. Como qualquer pesquisador que se detiver por algum tempo lendo a respeito do filme descobrirá, o termo cunhado por Glauber é o mais recorrente para descrevê-la: montagem caleidoscópica. Sua linha do tempo não obedece ao ditame de princípio, meio e fim. Nas idas e vindas vemos imagens ficcionais e imagens documentais se unindo numa história sobre o governo ditatorial de uma terra sem nome. Os estudantes discutem a resistência ao mesmo tempo em que tentam se sacudir da própria apatia. Atuam, mas terminam presos em seu levante contra a autoridade imposta. São julgados por um cérebro eletrônico que possui os discursos do jovem líder estudantil gravados. Não sendo um julgamento justo, o robô compartimenta até mesmo a imagem do que acontecerá, do porvir, com a execução do casal rebelde.

“Progresso” é uma palavra recorrente ao imaginário político brasileiro, vinda a serviço de interesses particulares e não coletivos. A presença do robô na cena do julgamento confere à película ares de ficção-científica. A máquina seria um cérebro avançado, desprovido de preconceitos, mas não é. Vemos ao longo do julgamento a manipulação da máquina para conferir a sentença quista pela acusação. Num de seus melhores momentos, a máquina evoca uma imagem do professor (Lídio Silva) de Grito da terra. O professor alfabetiza os camponeses, aqui aparecendo sob uma fala da garota para seus julgadores. O método de Paulo Freire, sugerido pela garota, é visto como subversivo pelos acusadores. “Sinais chineses, excelência, sinais chineses”, diz um dos fardados ali presente.

Durante o julgamento mostram-se muito fortes os arquétipos criados por Olney para suas personagens, em especial para o casal protagonista. O militar que os prende, e mais tarde participa de seu julgamento, é um aparente defensor da racionalidade, ao mesmo tempo em que diz que “o povo nunca soube pensar”, assim se pondo contra o projeto de alfabetização das massas levantado pela garota. O rapaz líder estudantil é o intelectual, aparece lendo o parágrafo final de A peste, de Camus, em voz alta, e é ele quem discursa nas manifestações. Mas carrega um profundo sentimento de descontentamento, de que sua luta não vingará. Na reunião da sala de aula, ele diz que “todos traíram a si mesmos”. Visto como cérebro das operações, ele sofre a tortura mais severa antes do julgamento, e durante todo seu decorrer permanece prostrado, olhos fechados, sem conseguir permanecer sentado em sua cadeira.

Por outro lado, há a garota que dança. É ela quem conclama para ação. “É preciso fazer alguma coisa”, ela diz para seu parceiro. Durante o julgamento, ela senta provocativamente, colocando uma perna mais alta na cadeira, com cara de desdém contra seus julgadores, respondendo às suas colocações. Ela dança numa tentativa de atiçar os seus companheiros a permanecer de pé. Quando posta contra o paredão para ser fuzilada, novamente ela dança, atordoando seus executores. Morta, o filme volta a vê-la dançar, porque ela será encontrada de pé. Mesmo morta, ela continua de pé.

 

Olney após Manhã cinzenta

Durante o processo judicial de Manhã cinzenta, Olney foi aposentado por invalidez de seu trabalho no Banco do Brasil. O que inicialmente foi recebido como mais um golpe e mais uma vergonha, mais tarde se mostrou como a possibilidade de dedicar seu tempo integral ao cinema. É desse período que nasce a sua fase mais prolífica que inclui a filmagem do longa-metragem O forte, baseado em obra de Adonias Filho, e alguns de seus curtas mais marcantes, dentre eles o belíssimo Sob ditame de rude almajesto: sinais de chuva.

Assim como a garota que dança de Manhã cinzenta, a tentativa da ditadura de impor silêncio a Olney não funcionou. Filmou até mesmo o retorno do político Francisco Pinto, que teve mandato cassado em 1964 quando era prefeito de Feira de Santana. Tinha projetos mais ousados que nunca chegaram a ser gravados, como a revolta dos alfaiates e uma cinebiografia do dissidente Lucas da Feira, uma figura cercada de controvérsias na região de Feira de Santana.

Faleceu no Rio de Janeiro, aos 41 anos, ainda planejando filmes com cada um de seus amigos que iam visitá-lo.

Texto originalmente publicado no site A Terra é Redonda.



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quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Eztetyka da Fome - Glauber Rocha

(texto de 1965)

[tese apresentada durante as discussões em torno do Cinema Novo, por ocasião retrospectiva realizada na Resenha do Cinema Latino-Americano, em Gênova, janeiro de 1965, sob o patrocínio do Columbianum. O tema proposto pelo secretário Aldo Viganó foi Cinema Novo e Cinema Mundial. Contingências forçaram a modificação: paternalismo do europeu em relação ao Terceiro Mundo - foi o principal motivo da mudança de tom]

Dispensando a introdução formativa que se transformou na característica geral das discussões sobre América Latina, prefiro situar as relações entre nossa cultura e a cultura civilizada em termos menos reduzidos do que aqueles que, também, caracterizaram a análise do observador europeu. Assim, enquanto a América Latina lamenta suas misérias gerais, o interlocutor estrangeiro cultiva o sabor dessa miséria, não como sintoma trágico, mas apenas como dado formal em seu campo de interesse. Nem o latino comunica sua verdadeira miséria ao homem civilizado nem o homem civilizado compreende verdadeiramente a miséria do latino.

Eis - fundamentalmente - a situação das Artes no Brasil diante do mundo: até hoje, somente mentiras elaboradas da verdade (os exotismos formais que vulgarizam problemas sociais) conseguiram se comunicar em termos quantitativos, provocando uma série de equívocos que não terminam nos limites da Arte mas contaminam sobretudo o terreno geral do político.


Para o observador europeu, os processos de criação artística do mundo subdesenvolvido só o interessam na medida que satisfazem sua nostalgia do primitivismo; e este primitivismo se apresenta híbrido, disfarçando sob tardias heranças do mundo civilizado, mal compreendidas porque impostas pelo condicionamento colonialista.

A América Latina permanece colônia e o que diferencia o colonialismo de ontem do atual é apenas a forma mais apropriada do colonizador: e além dos colonizadores de fato, as formas sutis daqueles que também sobre nós armam futuros botes.

O problema internacional da AL é ainda um caso de mudança de colonizadores, sendo que uma libertação possível estará ainda por muito tempo em função de uma nova dependência.

Este condicionamento econômico e político que nos levou ao raquitismo filosófico e à impotência, que, às vezes inconsciente, às vezes não, geram no primeiro caso a esterilidade e no segundo a histeria.


A esterilidade: aquelas obras encontradas fartamente em nossas artes, onde o autor se castra em exercícios formais que, todavia, não atingem a plena possessão de suas formas. O sonho frustrado da universalização: artistas que não despertam do ideal estético adolescente. Assim, vemos centenas de quadros nas galerias, empoeirados e esquecidos; livros de contos e poemas; peças teatrais, filmes (que, sobretudo em São Paulo, provocam inclusive falências)... O mundo oficial encarregado das artes gerou exposições carnavalescas  em vários festivais e bienais, conferências fabricadas, fórmulas fáceis de sucesso, coquetéis em várias partes do mundo, além de alguns monstros oficiais da cultura, acadêmicos de Letras e Artes, juris de pinturas e marchas culturais pelo país afora. Monstruosidades universitárias: as famosas revistas literárias, os concursos, os títulos.

A histeria: um capítulo mais complexo. A indignação social provoca discursos flamejantes. O primeiro sintoma é o anarquismo que marca a poesia jovem até hoje (e a pintura). O segundo é uma redução política da arte que faz má politica por excesso de sectarismo. O terceiro, e mais eficaz, é a procura de uma sistematização para a arte popular. Mas o engano de tudo isso é que nosso possível equilíbrio não resulta de um corpo orgânico, mas de um titânico e auto-devastador esforço no sentido de superar a impotência: e, no resultado deste operação fórceps, nós nos vemos frustrados, apenas nos limites inferiores do colonizador: e se ele nos compreende, então, não é pela lucidez de nosso diálogo mas pelo humanitarismo que nossa informação lhe inspira. Mais uma vez o paternalismo é o método de compreensão para uma linguagem de lágrimas ou de mudo sofrimento.

A fome latina, por isto, não é somente um sintoma alarmante: é o nervo de sua própria sociedade. Aí reside a trágica originalidade do Cinema Novo diante do cinema mundial: nossa originalidade é nossa fome e nossa maior miséria é que esta fome, sendo sentida, não é compreendida.


De Aruanda a Vidas Secas, o Cinema Novo narrou, descreveu, poetizou, discursou, analisou, excitou os temas da fome: personagens comendo terra, personagens comendo raízes, personagens roubando para comer, personagens matando para comer, personagens fugindo para comer, personagens sujas, feias, descarnadas, morando em casas sujas, feias, escuras: foi estas galeria de famintos que identificou o Cinema Novo com o miserabilismo tão condenado pelo Governo pela crítica a serviço dos interesses anti-nacionais pelos produtores e pelo público - este ultimo não suportando as imagens da própria miséria. Este miserabilismo do Cinema Novo opõe-se à tendência do digestivo, preconizada pelo crítico-mor da Guanabara, Carlos Lacerda: filmes de gente rica, em casas bonitas, andando em automóveis de luxo: filmes alegres, cômicos, rápidos, sem mensagens, de objetivos puramente industriais. Estes são os filmes que se opõe à fome, como se, na estufa e nos apartamentos de luxo, os cineastas pudessem esconder a miséria moral de uma burguesia indefinida e frágil ou se mesmo os próprios materiais técnicos e cenográficos pudessem esconder a fome que está enraizada na própria incivilização. Como se, sobretudo, neste aparato de paisagens tropicais, pudesse ser mascarada a indigência mental dos cineastas que fazem este tipo de filme. O que fez do Cinema Novo um fenômeno de importância internacional foi justamente seu alto nível de compromisso com a verdade; foi seu próprio miserabilismo que, antes escrito pela literatura de 1930, foi agora fotografado pelo cinema de 1960; e, se antes era escrito como denúncia social, hoje passou a ser discutido como problema político. Os próprios estágios do miserabilismo em nosso cinema são internamente evolutivos. Assim, como observa Gustavo Dahl, vai desde o fenomenológico (Porto das Caixas), ao social (Vidas Secas), ao político (Deus e o diabo na terra do sol), ao poético (Ganga Zumba), ao demagógico (Cinco Vezes Favela), ao experimental (Sol sobre a lama), ao documental (Garrincha, Alegria do Povo), à comédia (Os Mendigos), experiências em vários sentidos, frustradas umas, realizadas outras, mas todas compondo, no final de três anos, um quadro histórico que, não por acaso, vai caracterizar o período Janio-Jango: o período das crises de consciência e de rebeldia, de agitação e revolução que culminou no Golpe de Abril. E foi a partir de Abril que a tese do cinema digestivo ganhou peso no Brasil, ameaçando, sistematicamente, o Cinema Novo.

Nós compreendemos esta fome que o europeu e o brasileiro na maioria não entende. Para o europeu é um estranho surrealismo tropical. Para o brasileiro é uma vergonha nacional. Ele não come mas tem vergonha de dizer isto; e, sobretudo, não sabe de onde vem esta fome. Sabemos nós - que fizemos estes filmes feios e tristes, estes filmes gritados e desesperados onde nem sempre a razão falou mais alto - que a fome não será curada pelos planejamentos de gabinete e que os remendo do tecnicolor não escondem mas agravam seus tumores. Assim, somente uma cultura da fome, minando suas próprias estruturas, pode superar-se qualitativamente: e a mais nobre manifestação cultural da fome é a violência.


A mendicância, tradição que se implantou como redentora piedade colonialista, tem sido uma das causadoras de mistificação política e da ufanista mentira cultura: os relatórios oficiais da fome pedem dinheiro aos países colonialistas com o fito de construir escolas sem professores, de construir casas sem trabalho, de ensinar o ofício sem ensinar o analfabeto. A diplomacia pede, os economistas pedem, a política pede: o Cinema Novo, no campo internacional, nada pediu: impô-se a violência de suas imagens e sons em vinte e dois festivais internacionais.

Pelo Cinema Novo: o comportamento exato de um faminto é a violência, e a violência de um faminto não é primitivismo. Fabiano é primitivo? Antão é primitivo? Corisco é primitivo? A mulher de Porto de Caixas é primitiva?

Do Cinema Novo; uma estética da violência antes de ser primitiva e revolucionária, eis aí o ponto inicial para que o colonizador compreenda a existência do colonizado: somente conscientizando sua possibilidade única, a violência, o colonizador pode compreender, pelo horror, a força da cultura que ele explora. Enquanto não ergue as armas o colonizado é um escravo: foi preciso um primeiro policial morto para que o francês percebesse um argelino.

De uma moral: essa violência, contudo, não está incorporada ao ódio, como também não diríamos que está ligada ao velho humanismo colonizador. O amor que esta violência encerra é tão brutal quanto a própria violência, porque não é um amor de complacência ou de contemplação mas uma amor de ação e transformação.


O Cinema Novo, por isto, não fez melodramas: as mulheres do Cinema Novo sempre foram seres em busca de uma saída possível para o amor, dada a impossibilidade de amar com fome: a mulher protótipo, a de Porto das Caixas, mata o marido; a Dandara de Ganga Zumba foge de guerra para um amor romântico; Sinhá Vitória sonha com os novos tempos para os filhos; Rosa vai ao crime para salvar Manuel e amá-lo em outras circunstâncias; a moça do padre precisa romper a batina para ganhar um novo homem; a mulher de O Desafio rompe com o amante porque prefere ficar fiel ao seu mundo burguês; a mulher de São Paulo S.A. quer a segurança do amor pequeno-burguês e para isto tentará reduzir a vida do marido a um sistema medíocre.

Já passou o tempo em que o Cinema Novo precisava explicar-se para existir: o Cinema Novo necessita processar-se para que se explique à medida que nossa realidade seja mais discernível à luz de pensamentos que não estejam debilitados ou delirantes pela fome. O Cinema Novo não pode desenvolver-se efetivamente enquanto permanecer marginal ao processo econômico e cultural do continente latino-americano; além do mais, porque o Cinema Novo é um fenômeno dos povos colonizados e não uma entidade privilegiada do Brasil: onde houver um cineasta disposto a filmar a verdade e a enfrentar os padrões hipócritas e policialescos da censura, aí haverá um germe vivo do Cinema Novo. Onde houver um cineasta disposto a enfrentar o comercialismo, a exploração, a pornografia, o tecnicismo, aí haverá um germe do Cinema Novo. Onde houver um cineasta, de qualquer idade ou de qualquer procedência, pronto a por seu cinema e sua profissão a serviço das causas importantes de seu tempo, aí haverá um germe do Cinema Novo. A definição é esta e por esta definição o Cinema Novo se marginaliza da indústria porque o compromisso do Cinema Industrial é com a mentira e com a exploração. A integração econômica e industrial do Cinema Novo depende da liberdade da América Latina. Para esta liberdade, o Cinema Novo empenha-se, em nome de si próprio, de seus mais próximos e dispersos integrantes, dos mais burros aos mais talentosos, dos mais fracos aos mais fortes. É uma questão de moral que se refletirá nos filmes, no tempo de filmar um homem ou uma casa, no detalhe de observar, a Filosofia: não é um filme, mas um conjunto de filmes em evolução que dará, por fim, ao público, a consciência de sua própria existência. 

Não temos por isto maiores pontos de contato com o cinema mundial.

O Cinema Novo é um projeto que se realiza na política da fome, por isto mesmo, todas a fraquezas consequentes de sua existência.


(texto presente no livro: Revolução do cinema novo, páginas 28 - 33. 1981 - publicado aqui integralmente).