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domingo, 31 de maio de 2015

Fantasma de F. W. Murnau (phantom, 1922)


O título de um filme, com frequência, nos deixa com a pulga atrás da orelha sobre o seu conteúdo. Em muitos casos ele faz um eco de referência a um gênero. É o caso da palavra "fantasma". É próprio ao cinema de terror apresentar histórias de fantasmas. Aquelas histórias fantásticas que somente podem acontecer numa tela de cinema ou nas páginas de um livro. "Fantasma" ganhou uma conotação, com o passar do tempo, que o vincula a um gênero narrativo exatamente pela evocação que ele faz - o sobrenatural. Mas alguns filmes se valem de tal palavra quase como se estivesse a desconstruí-la, ou simplesmente a fazer uma brincadeira com o termo. Lembro de, poucos anos atrás, ter assistido a um curta nacional com o famigerado título: Fantasmas. Trata-se de uma película inteiramente composta de um único plano estático que observa uma rua com um posto de gasolina. Até que ao fim surge um carro, a câmera faz o zoom para mostrar a motorista. A imagem volta algumas vezes para ver esta motorista que aparece brevemente em tela. O "fantasma" evocado pelo título é o fantasma da ex-namorada do cinegrafista anônimo. O filme rendeu um texto muito interessante (como sempre) na Revista Cinética.

Em caminho semelhante anda este filme de Murnau, décadas antes do título de André Novais. Fantasma dá a impressão ao espectador um pouco familiarizado com a obra de Murnau de que será um filme semelhante a Nosferatu ou Fausto. Ao assisti-lo percebe-se que não. O fantasma de Murnau é semelhante ao fantasma de André Novais, um fantasma da memória, uma imagem do passado que quer permanecer presente. Que necessita ser exorcizada ou em vídeo (o curta) ou num romance (escrito), como faz o protagonista do filme alemão. Nesta retrospectiva que fiz nestas ultimas semanas da obra do mestre alemão, podemos perceber que seu gosto pelo fantástico não é tão trabalhado quanto pode parecer para aqueles que o conhecem como sendo o criador de Nosferatu. O filme do vampiro é uma exceção dentro da cinematografia de Murnau.


Deixemos de lado este debate e nos fixemos em Fantasma, o filme que realmente nos interessa aqui. É uma peça curiosa, escrita por Thea von Harbou baseada em conto de escritor ganhador do Nobel, Hauptmann. O filme começa com seu protagonista preocupado. Uma mulher diz que ele pode diminuir seus temores se colocá-los em papel. E ele o faz. A história que segue, dividida em seis atos, parte deste desenrolar cuidadoso do poeta que descreve seu passado dramático, e até trágico. O que soa curioso no filme é exatamente esta premissa tomada para contar a história: se é um dos personagens da narrativa que conta a história, como ele pode narrar aquilo que ele não tinha participado? Seria um trabalho da memória? O roteiro de von Harbou não explica. Simplesmente coloca-nos naqueles momentos em que vemos as relações entre os personagens se pautarem sem que Lorentz, o "narrador", esteja presente (seria a imaginação do escritor?).

Como também aconteceu em O castelo Voegelod, o filme de Murnau é extremamente afetado pela presença do trabalho de texto de von Harbou. Os letreiros, por vezes irrelevantes para a compreensão da trama, surgem com uma frequência absurda. Digo irrelevantes, porque muitas vezes eles vêm colocar um assunto que não necessariamente vá ter uma relação direta com a ação - e o letreiro, por sua vez, quebra o desenrolar da ação. Mas a narrativa consegue funcionar muito bem, em especial nos moldes de um cinema influenciado (não necessariamente sendo um, como muitos colocam) pelo expressionismo. Se Lorentz escreve a história que vemos, tomamos também as suas impressões do que acontecem. Dá espaço ao realizador de conceder seu trato estético mais ousado ao filmar partindo da perspectiva de quem está inserido na trama.


Lorentz, a caminho do trabalho, é atropelado por uma carruagem conduzida por uma bela jovem por quem ele se encanta. Passado seu momento de confusão e choque do acidente, ele corre atrás da carruagem da moça que, após ter visto que estava tudo bem e ajudado-o a se levantar, foi embora. Esta imagem da moça permanecerá na mente de Lorentz pelo resto do filme e o levará ao fundo do poço. O fantasma, dito pelo título do filme, será esta lembrança que surgirá sempre em sua mente e que lhe levará a criar uma obsessão. Com sua mente de poeta, o emocional de Lorentz se volta por completo para aquele ideal que deve ser alcançado - a garota perfeita que se foi. Ele a segue até sua casa, mas não consegue falar com ela. Pede aos pais da moça para cortejá-la, e acaba demitido de seu trabalho - são pessoas influentes na sociedade da cidade em que vivem. Na contínua obsessão ele enxerga o rosto da moça por quem está apaixonado no rosto de outra mulher, com quem passa a ter um caso, mas nada disso levará a uma completa satisfação. Com sua vida caindo aos pedaços, a tragédia final era irreversível.

O fantasma tem este poder de, invisivelmente, mexer nas peças que compõem a vida e derrubá-la, embaralhá-la. A moça que sobrevive somente na imaginação de Lorentz age como um fantasma ruim, que sem ser notado trás o caos. Tudo isso muito calmamente mostrado pelo filme e, por sua vez, pelo protagonista que deve pegar cada detalhe deste passado e colocar em papel para que seu sofrimento possa enfraquecer. Esta mostragem lenta da queda da sanidade mental do protagonista leva até o momento mais expressionista do filme: Lorentz passa a delirar e, na rua em que fora atropelado pela moça por quem está apaixonado, enxerga o fantasma da carruagem se distanciando, tal como no filme de Sjostrom*.


Fantasma, filme por muitos anos considerado perdido, mostra que Murnau é um cineasta que se preocupa mais com fazer um cinema dramático, humano, do que os filmes de gênero aos quais normalmente é associado - a exemplo do terror. Se poderia parecer numa primeira vista que o filme se trataria de uma obra sobrenatural, ele prova o contrário: é um filme sobre homens, sua memória e suas obsessões. E talvez o lado animalesco do homem: o desejo - que surge com certa frequência na filmografia do cineasta. O desejo de Lorentz pela moça que viu apenas uma vez, o desejo do homem pela mulher da cidade em Aurora, o desejo de Fausto pelo conhecimento e pela juventude em filme de mesmo nome. Fantasma mostra a universalidade do artista Murnau, de fazer uma obra que pode dialogar com qualquer pessoa, de qualquer lugar, a qualquer momento da história. Porque fala de coisas que são conhecidas por todos. Se já escrevi isso em textos anteriores sobre os filmes do cineasta, é porque é algo que se percebe em todos eles (como se percebe em Chaplin, Shakespeare, Dostoiévski...).


*A carruagem fantasma, 1921.

segunda-feira, 11 de maio de 2015

O Castelo Vogelod de F. W. Murnau (Schloß Vogelöd, 1921)


Como poderiam os filmes em preto e branco fazer a distinção entre noite e dia? O espectador de cinema contemporâneo conhece muitas maneiras, sua cinefilia o faz saber as resoluções criativas conquistadas por décadas de exercício prático do fazer fílmico. Em minha mente salta logo a imagem do cinema noir e os belíssimos jogos de sombras. Se neste texto falaremos sobre o cinema alemão, nada mais justo do que lembrar do cinema expressionista, influenciador dos filmes noir das décadas de 1940-50. Mas existe uma diferença muito grande entre o trabalho feito pelos expressionistas de 1920 dos cineastas da década de 1940: os primeiros utilizavam uma luz achatada, que iluminava a tudo com equidade. As sombras eram desenhadas ou provocadas por distorções nos cenários. Nos filmes noir a sombra provinha de um jogo de luz, com o posicionamento do refletor em lugares estratégicos para que iluminasse determinada parte do cenário e outra ficasse no escuro.

Mas como poderiam os espectadores não fazer a distinção entre dia e noite? Entre a luz exterior e interior? É óbvia a diferença, mesmo nos filmes em preto e branco. Óbvia quando se filma no exterior "de verdade". O que isso significa? Que a luz natural é diferente da luz artificial habitualmente utilizada para a iluminação dos cenários dentro dos estúdios fechados. Mas poucos eram os diretores - e mais importante ainda, os produtores, filmar fora dos estúdios era de custo muito maior do que hoje - que se arriscavam filmar fora das dependências de seus estúdios, onde tudo podia ser milimetricamente controlado (incluindo os gastos). As filmagens em exterior ficavam exclusivas para aquelas cenas maiores, como as batalhas de Nascimento de uma nação. Assim, tanto a luz de interior quanto a de exterior poderiam ser de muita semelhança porque filmadas em estúdio se valendo de semelhante equipamento.


Solução: o uso de cores. Mas o filme não era preto e branco? Sim, mas a película podia ganhar diferentes colorações únicas: o quadro podia ficar avermelhado, ou alaranjado, ou mesmo azulado (imagem acima). Estas diferentes cores eram exploradas pelos cineastas para poder fazer esta diferenciação de cenários e não prejudicar o visionamento da obra com imagens menos nítidas devido à escuridão das cenas. Tal técnica foi utilizada maravilhosamente em A carruagem fantasma, por exemplo, de Victor Sjostrom. E neste O castelo Vogelod, de Murnau. O experimento de Murnau neste filme demonstra maior profundidade que o de Sjostrom em seu clássico sueco, uma vez que no meio das cenas a cor da imagem muda quando um personagem em cena acende a luz: explicitando a intenção do diretor nestes momentos.

Fora esta experimentação, O castelo Vogelod parece um filme em que Murnau estava muito pouco a vontade de filmar. Não há grandes cenas, e a interrupção da narração por letreiro é constante - talvez a maior de seus filmes. O desenrolar da ação pelos personagens é truncado, a trama decorre por suas falas, e o passado que é por eles evocado fica somente em seu diálogo - novamente, apresentado pelos letreiros que cortam o ritmo da ação. Longe de ser um dos melhores filmes do diretor, Vogelod apresenta como ponto positivo o desenvolvimento da mise-en-scène que viria a utilizar em seus filmes posteriores. O cinema de Murnau se posiciona fortemente contrário à montagem, ao contrário de seus pares vanguardistas de 1920. O que ele não fica contrário é das sobreposições, dos truques de montagem. O elogio de André Bazin ao seu cinema fica nítido ao se assistir a este filme: a câmera não fragmenta o cenário. Mas por buscar a narrativa nas falas de seus personagens, é o ritmo do filme que fica fragmentado, deixando de lado a especificidade cinematográfica (a imagem em movimento) para poder contar a história com palavras escritas.


Numa de suas melhores cenas, Murnau apresenta-nos o sonho de um dos hóspedes do castelo que dá título ao filme. O homem - alívio cômico do filme de suspense - acorda em sua cama e vê a mão de um monstro do lado de fora da sua janela. A tal mão consegue abrir a janela, entrar no quarto e levá-lo. Acordando em seguida, o homem vê que tudo não se passara de um sonho, mas como o castelo está passando por alguns problemas com seus hóspedes estranhos - que desaparecem ou são suspeitos de crimes - ele prefere deixar a residência na manhã seguinte.

O sonho é envolto por uma aura de suspense. Algo vai errado com alguns hóspedes do castelo. Um homem sai já no fim de uma tarde chuvosa para caçar. A chegada de um padre é anunciada. O dono do castelo afirma ter capacidade de prever o futuro, e dita um desfecho trágico para aquelas férias. Se isso abala o homem que tem o sonho a ponto de ele encurtar sua jornada no castelo, os demais preferem permanecer por lá e acompanhar o desenvolver da ação como se fossem espectadores de Hitchcock: voyeurs que dão pitacos sobre o que virá a seguira (e ainda assim, são surpreendidos com o desenvolver das ações). Uma pena a participação de Murnau na construção deste filme ser tão pequena. Como podemos atestar com Hitchcock, o poder das imagens na construção de suspense é vital.


Quando o estranho padre chega ao castelo, uma das mulheres recém-chegadas pede logo para vê-lo. Parecem ser velhos conhecidos. Ela, então, rememora um passado que já é familiar ao padre. Ela ainda se martiriza pela morte do marido, ao que a cena termina com um close-up - um dos raros recursos de fragmentação do espaço cênico executados por Murnau durante o filme - misterioso. Esta imagem teria ganho contornos mais profundos de mistério se a cena seguinte não retornasse para a continuação da conversa do padre com a mesma mulher. A impressão que dá é de que o fabuloso Murnau está lá, mas o roteiro o impede de aparecer. Não que a trama não seja bem desenvolvida, ela simplesmente não consegue se adaptar à arte das imagens em movimento, e insiste em retornar à arte das letras.

Carl Mayer, roteirista desta obra, parece muito pouco confortável com o trabalho de uma obra que não é sua - tanto que poucas vezes em sua carreira voltou a tratar histórias não-originais. O desenrolar da história é claro, mas muito pouco se casa com uma história a ser contata por meio do cinema. Talvez ficasse melhor para o cinema sonoro, mas ainda assim muito refém de um texto sendo recitado pelos atores. Mayer, que mais tarde trabalharia com Murnau em A ultima gargalhada, filme sem letreiros, mostra bem a sua capacidade de contar uma história para cinema. A parceria rendeu muita coisa extraordinária para que venhamos diminuir devido a este percalço. E mesmo aqui Murnau demonstra ser um diretor extraordinário. A quebra do ritmo pelos letreiros não impede que vejamos sua capacidade de construção de cena, de posicionamento de atores: a exemplo da cena em que, durante o jantar, o dono do castelo pergunta a seu hóspede sentado ao seu lado se ele já matou alguém. Ao fundo do homem perturbado com a pergunta vemos uma pintura em que homens caçam um animal. O homem interpelado toma o lugar do animal no quadro e fica sob a mira das armas dos caçadores. Somente a genialidade de Murnau pode nos proporcionar momentos assim.


[sobre a segunda imagem: a mulher acusa o irmão (fora de quadro) de seu ex-marido de ser o assassino (do ex-marido). Perceba como Murnau enquadra o verdadeiro assassino de tal modo que seja ele que fique sob a acusação: é ele que é posto como culpado pelo diretor, ao contrário do que sua personagem mentirosa diz. Ela aponta o assassino e Murnau nos mostra o verdadeiro assassino. Fantástico, não?]

sábado, 13 de setembro de 2014

Charles Chaplin - Em Busca do Ouro (the gold rush, 1925)

Charles Chaplin entre a comédia e a tragédia

Se o personagem do vagabundo nos filmes de Charles Chaplin sofreu bastante, foi porque seu criador também sofreu. Mas todo este sofrimento não era visto da forma como poderia ser enxergada por grande parte das pessoas que por eles passam. Chaplin reverteu este sofrimento em um poço de criatividade de onde poderia retirar um sorriso. A tristeza das situações impressas na película de um filme do comediante não vai além do riso em frente à condição miserável de nossas vidas. Porque para sobreviver nós temos que comer, para que possamos comer na sociedade atual temos que ter dinheiro, então os ricos se fartam enquanto os mais pobres passam fome. Temos que trabalhar para poder sobreviver. Neste quesito, em Vida de cachorro (a dog's life, 1918) Chaplin leva este sonho para um extremo. O vagabundo e sua paixão vão morar em uma fazendo própria em que podem comer do fruto de seu próprio trabalho, não precisam comprar a comida.

Chaplin, que durante sua infância turbulenta passou fome, sabe como poucos transportar este sentimento para tela. É a falta de algo essencial para a vida e do qual de repente ele se vê privado. Mas em mente tenho Em busca do ouro, um filme que está no limite entre as experiências reais do seu autor e das histórias que ele escutara. A cena em que o Vagabundo está numa cabana no meio de uma tempestade de neve, preso com outro minerador, e ambos estão com fome é um exemplo desta frágil separação entre a comédia e a tragédia com a qual Chaplin tão bem sabia trabalhar. Eles estão com fome e podem vir a morrer se não comer. Então o Big Jim começa a enxergar seu companheiro como uma galinha. E irá comê-lo. O que ninguém poderia imaginar que renderia uma situação cômica, se transforma em uma comédia que até hoje faz plateias gargalharem. O mais interessante é saber que o diretor tomou esta ideia de uma tragédia que ocorreu com mineradores que ficaram presos em uma montanha. Ele conseguiu ver o riso nas lágrimas. - Retomo aqui, para título de comparação, a sequência do sonho em Os esquecidos (los olvidados, 1950) de Luis Buñuel. É uma cena que, assim como a citada, trata a fome de forma onírica. Durante um sonho, um dos garotos retratados no filme se vê de volta a sua casa com sua mãe recebendo-o de braços abertos e dando-lhe comida. Ele está com fome e esta fome o atormenta até mesmo em seus sonhos.

Para continuarmos esta separação entre a comédia a tragédia nos filmes de Chaplin nos lembremos da cena da tempestade que assola a cabana em que o Vagabundo se encontra. O vento e o gelo efetuam diversas agressões a cabana a ponto de vermos as madeiras que servem de parede se curvarem com a força do vento. É um exagero que leva à comicidade. Mas um mesmo exagero é empregado em outro filme, mas que desta vez serve como ponto decisivo para a criação do drama da personagem. O filme é Vento e areia de Victor Sjostrom com Lilian Gish (the wind, 1928) que se passa em uma localidade no meio do deserto em que o vento está sempre a soprar de forma agressiva, como se quisesse expulsar os homens daquele lugar. Neste aspecto se assemelha à composição chapliniana, mas o tom dado a esta tempestade constante não é o de comicidade, mas o de desespero. Ficamos desesperados e atordoados junto com a protagonista devido a todo aquele vento que levanta a areia do deserto. O vento está sempre batendo nas paredes de seu casebre, quebrando janelas, desenterrando corpos do chão...

Um terceiro ponto que poderíamos fazer entre a comédia chapliniana e o suspense hithcockiano. Logo no início do filme temos o Vagabundo caminhando pela beirada de um precipício e seguido de perto por um urso que está à espreita. É o exemplo típico do que seria uma cena de suspense em um filme de Alfred Hitchcock. O espectador sabe o que vem, o perigo pelo qual está passando seu querido herói, e quer preveni-lo, mas não pode. No caso do filme de Chaplin, ninguém terá esta reação de prevenir o Vagabundo do risco que ele corre porque todos nós queremos ver o que poderá acontecer caso o urso o pegue, qual seria sua reação. Mas no caso de um filme de Hitchcock, este urso representaria um real risco para a vida de seu personagem e por isso nós, espectadores, teríamos uma reação completamente diferente.

O que podemos tirar de tudo isso? Que Chaplin é um sujeito sem coração que ri do que não deveria ser engraçado? Muito pelo contrário! É a habilidade de um artista de poder enxergar o mundo e ver nele beleza, mesmo naquelas situações em que ninguém poderia imaginar que existiria qualquer sinal de beleza. Este é um dos aspectos mais encantadores da filmografia de Charles Chaplin, esta oscilação entre o riso e as lágrimas, entre a alegria e a tristeza. Porque, mesmo fazendo da tragédia uma comédia, Chaplin ainda sabia fazer seus espectadores chorarem, o que mostra que ele sabia muito bem até onde poderia ir para provocar o riso e até onde ir para provocar o choro. Um verdadeiro artista, portanto.

Publicado originalmente no Jornal Fuxico - UEFS.

sábado, 12 de julho de 2014

Vento e Areia de Victor Sjostrom (the wind, 1928)


direção: Victor Sjostrom;
escrito por: Frances Marion, Dorothy Scarborough (baseado em seu livro);
fotografia: John Arnold;
edição: Conrad A. Nerving;
estrelando: Lillian Gish, Lars Hanson, Montagu Love, Dorothy Cumming.

Quando Bela Tarr lançou seu ultimo filme em 2011, O cavalo de Turim, o impacto do cinema do realizador húngaro se abateu com força sobre os espectadores que o desconheciam. Uma das características mais impressionantes de seu derradeiro filme foi o uso do som para captar o vento. O vento que perturba, oprime e, ao mesmo tempo, mostra que além daquelas paredes que cercam os personagens existe um mundo desconhecido. O vento é uma destas "entidades" fantásticas que podem ser utilizadas no cinema de forma magistral por seu caráter misterioso. Ele surge, nós o sentimos, vemos os efeitos que ele causa, mas não podemos enxergá-lo nem sabemos sua proveniência. E é por meio de uma representação dele que um cineasta atento pode abrir todo um mundo de discussões físicas e/ou metafísicas acerca do mundo que nos cerca. Outro caso que vale ser citado aqui é de Ingmar Bergman que em O sétimo selo conseguiu imprimir em película, o silêncio. É um embate muito característico a cineastas inquietos este de buscar representar em seus filmes (seja imageticamente, como no caso de Bergman, seja por meio do som, como no caso de Tarr) aquilo que seria pobremente captado no mundo.

Em Vento e areia, Victor Sjostrom - que outrora já havia conseguido a proeza de, por meio de sobreposições, fazer fantasmas passearem pelos cenários de A carruagem fantasma -  parte em busca de uma tarefa tão difícil quando a de seu citado clássico: filmar o vento. Tarefa aceita quando o diretor é contratado pelo estúdio MGM para ser um de seus cineastas. Caindo nas graças de Lillian Gish, Sjostrom consegue esta película que viria a se tornar um de seus maiores clássicos, contando uma história típica dos filmes que a atriz costumava fazer. Letty sai da Virginia para morar com o primo em um rancho. Durante a viagem de ida ao tal rancho o primeiro sinal do caos em que ela se encontrará já se apresenta a sua frente. Uma tempestade de areia encontra o trem que cruza o deserto e entra pela janela que Letty havia deixado aberta. É uma desculpa para que um homem com quem havia trocado olhares se aproxime e inicie uma conversa. Somente nesta primeira cena já estão entregues os dois elementos que mais atormentarão a protagonista.


Mas a real preocupação de Sjostrom não é a de filmar um drama, tão somente. Ele quer filmar também o embate do homem e da natureza que o cerca e da possível aceitação deste homem frente ao que a natureza lhe impõe. É o caso de Letty e o vento. O vento é constante, forçando a protagonista a se acostumar com ele ou se entregar a uma loucura já anunciada pelo estranho no trem. A jovem recém-chegada é a única que demonstra um estranhamento com o vento que não para. Todas as demais pessoas estão mais do que acostumadas a ele. Ninguém cambaleia devido ao vento ou se importa com a areia que ele leva para a comida. É um elemento natural que a natureza lhes impôs. Embora façam um paralelo entre o vento e um cavalo, quem é domado não é a natureza, mas o homem. É ele quem se acostuma e passa a viver obedecendo às suas regras (e a cena do ciclone não poderia ser mais simbólica).

E é por isso que a personagem que devemos seguir deve ser alguém que nunca antes havia tido este confronto, para quem a natureza era domável, não domadora. Quando não mais possui o controle do mundo em suas mãos, o chão de Letty passa a desaparecer e os primeiros sinais de loucura aparecerão. Não somente devido ao vento que a importuna, mas a cobrança da esposa de seu primo que a obriga a se casar para deixar sua casa. O mundo ao seu redor lhe impõe suas condições para que ela possa nele viver e ela tem que aceitar sem muito o que dizer. São nestes momentos de maior desespero que a direção de Sjostrom surge para pontuar as aparições deste vento que surge opressor, agredindo as paredes do casebre em que agora vive Letty, as janelas, batendo na porta e querendo entrar (e por vezes conseguindo). Não é por acaso que a redenção da personagem e sua rendição ao vento parta de seu marido, a única figura no filme que não lhe obriga a fazer coisa alguma. Ela sente na pele o que é ser o vento. 


A participação do vento marca o filme. Algumas de suas cenas magistrais demonstram o vigor da natureza e seu poder frente ao homem. Numa das cenas mais marcantes do filme temos a primeira noite de casada de Letty. Seu marido surge no cômodo principal do casebre com um café em mãos, se espanta ao ver pela primeira vez os cabelos soltos de sua esposa e vai até ela oferecer-lhe café. Nota, então, que ela não está contente com o matrimônio e hexita por um momento em agarrá-la a força. Sai do cômodo. Letty continua a pentear seus cabelos, de forma nervosa, caminhando de um lado para o outro. É aqui em que Sjostrom faz a famosa montagem "enquanto isso...", em que primeiro é mostrado a ação de um personagem e após o corte mostra o outro. Com esta montagem paralela em que são mostrados de forma simultânea (embora não apareçam juntos no quadro) os dois personagens, Sjostrom nos demonstra que não somente sua protagonista está apreensiva com o que fará o seu marido, como também ele está apreensivo sobre o que deverá fazer e o que será o seu casamento dali para frente. Numa amostragem de brilhante maestria, o diretor retira a câmera do rosto de seus personagens e passa a mostrar seus pés, afinal de contas são eles os membros que trabalham para demonstrar tal apreensão. Primeiro vemos os pés dele caminhando sobre o chão de madeira, e um corte para o vento que levanta a areia do deserto e a joga contra o casebre. A agressividade do vento contra o casebre é o que impulsiona a agressividade com a qual o marido de Letty irá agir logo em seguida.

Trata-se, portanto, de uma obra essencial para o entendimento do cinema, um filme dirigido por um mestre que conseguiu o que poderia soar impossível: mostrar o invisível. Os devidos créditos desta façanha devem ser dados ao seu diretor. Victor Sjostrom ao filmar o embate entre o homem e a natureza que o cerca não tomou partido por nenhum dos lados, preferindo conciliá-los.

[ps.: a cena do homem enterrado na areia e sendo desenterrado pelo vento é uma das razões pelas quais ver e rever este filme pelo resto da vida!]