Estamos
vivendo tempos em que muito se vem falando sobre o crescimento da qualidade das
obras ficcionais televisivas em comparação com o cinema. Em primeiro lugar
devemos deixar bem clara o primeiro equívoco desta afirmação: o cinema vai mal
em termos de qualidade nos EUA e ainda assim entre os filmes dos grandes estúdios. O que isso significa? Que finalmente
estão abrindo os olhos para enxergar o arriscado negócio que é a produção de
filmes. Os grandes estúdios estadunidenses gastam fortunas na sorte. Tal como
jogadores profissionais de pôquer, os estúdios se esbarram em grandes decepções
quando suas grandes esperanças viram cinzas.
Este
é o grande momento que afirma que estas obras de alto orçamento podem visar
fortunas tão extensas como as que foram gastas na composição de uma obra
fílmica, mas não valem o que custam. O espectador não vê nada de novo nos
filmes de cinema e se volta para as produções televisivas que lhe oferecem
conteúdos semelhantes. E quem já assistiu um episódio de Game of Thrones pode atestar que nos quesitos de acessórios em nada
tal produção fica a dever a grandes obras do cinema recente, tal como O senhor dos anéis. Meu objetivo no
presente texto não é o de apontar o que teria de artístico em uma obra que
faltaria em outra, mas o de demarcar quais seriam as diferenças essenciais
entre cinema e tevê.
Porque
este aparente declínio do cinema hollywoodiano, em especial, se dá exatamente
por esta confusão. As obras feitas pelos grandes estúdios da Meca do cinema
estadunidense podem muito bem se encaixar no espaço pequeno do televisor. Por
mais impressionantes que explosões e batidas de carros sejam emocionantes na
tela grande, seu impacto será semelhante na tela de televisão. O que poderia
ser feito de diferente pelo cinema para poder se distanciar destas outras
mídias que desejam substituí-lo? Explorar as suas particularidades, tal como já
pensavam os primeiros pensadores de cinema ainda na época do cinema mudo. Quais
seriam as particularidades do cinema em contraposição à televisão, e mesmo ao
computador?
Num
primeiro momento um detalhe que nos passa despercebido: a luz. Não a luz
proveniente do quadro, mas aquela que ilumina o outro lado da tela, o espaço em
que se encontra o espectador. Que diferença isso teria? Muita! Assistindo à
televisão estamos com a luz acesa, mas para, além disso, temos todo um mundo
heterogêneo de possibilidades que se nos abrem a nossa frente. O que isso significa?
Que o espectador de televisão não consegue emergir por completo na obra que
assiste, ou tem muita dificuldade em fazê-lo. Porque qualquer outra atividade
pode chamar sua atenção num primeiro momento e distraí-lo de seu objetivo
primordial que era assistir a uma obra audiovisual.
Aqui
se dá um segundo problema, que se dá como consequência do que fora apresentado
no parágrafo anterior. A forma da obra audiovisual é prejudicada. Uma obra
televisiva tem a necessidade de conquistar o espectador logo em suas primeiras
cenas, porque o desinteresse deste pode significar a troca de canal e a perda
de audiência por parte da emissora transmissora do programa. No cinema é dada
ao filme a oportunidade de conquistar o espectador, fazendo com que quem
assiste à obra entre no jogo desenhado pelo autor que aos poucos vai crescendo,
sem a necessidade de clichês de construção narrativa de crescimento e
diminuição de intensidade da ação.
Daí
pode-se tirar outro problema. O espectador pode muito bem fazer outra atividade
enquanto “assiste” a uma obra na televisão. Este ponto é muito importante e foi
o guia de criação de televisão mais popular que tivemos até aqui. Ele visa
inteirar o espectador de todos os detalhes da trama que se desenrola, se
valendo principalmente de diálogos. O espectador não precisa estar na mesma
sala que seu televisor e ainda assim ele terá ciência do que se desenrola na
tela. Sabe porque os atores fazem um trabalho semelhante ao do contador de
histórias que narra um conto se valendo até mesmo de um narrador. Por vezes os
atores contam uma história que já fora mostrada em cenas passadas. Unida a esta
técnica do ator recitador de textos há o uso da música. Esta cresce nos
momentos certos para poder salientar os sentimentos envolvendo as cenas que se
apresentam. Se não estou na sala do televisor sei o que ocorre na cena assim
como sei o que sentem os personagens. Tudo isso me é oferecido pelo áudio da
obra.
É
uma construção que foi desenvolvida se valendo de duas características especiais
da televisão: 1) o tamanho reduzido dos primeiros televisores que não
proporcionava boas experiências imagéticas ao espectador e tinha que se fazer
compensar por meio do som; 2) o desinteresse do espectador na imersão na obra
televisiva que remete ao hábito de escutar rádio, quando as pessoas podiam
estar com uma rádio ligada e ao mesmo tempo ler um jornal ou livro. Este
desinteresse é muito pontual, tal como pode ser com a relação do sujeito com um
rádio – dar atenção exclusiva a um programa radiofônico.
Então
o leitor me indaga: e se eu apagar as luzes da sala de minha casa? Bom, não
mudará muita coisa. As luzes apagadas não farão os objetos deixarem de existir
ao seu redor. Ainda existirá a possibilidade de levantar, dar alguns passos e
se por em frente à geladeira cheia de opções para um bom lanche enquanto se
assiste televisão. No cinema isso não só é mais difícil como não recomendável –
apesar de as gerações mais jovens não se importarem com isso e até mesmo atenderem
o celular no meio da exibição (geração essa da qual faço parte, apesar de
escrever como se fosse mais velho). A comida não está num cômodo ao lado, tal
como não é gratuita – assim como o espetáculo também não o é.
Temos
aí uma grande diferença entre as duas plataformas: uma muito mais propensa ao
uso do diálogo, a outra mais propensa a utilização imagética. As novelas
brasileiras, as sitcom estadunidenses, os seriados da tevê a cabo que ganham
todo o mundo, são alguns exemplos deste modelo estético radicalmente diferente
e que deixa logo de cara porque o cinema hollywoodiano passa por tantas
dificuldades. Porque a tevê se especializou em fazer dramas escritos, aprendeu
a construir personagens cativantes. E neste quesito ela sai na frente. Um
personagem que encontro todas as semanas será mais memorável do que aquele que
encontro somente uma vez no ano. Mas o cinema tem algo que passa a frente: o
uso imagético é universal.
Para
que possamos atestar esta universalidade da linguagem imagética basta passar
para uma criança um filme de Chaplin. Ela não lerá os cartões explicativos, mas
isso será desnecessário. O que realmente vale para ele são os trejeitos de
Carlitos. Como ele anda, como ele se mete em confusão, e como ele sai delas.
Carlitos é síntese do cinema porque não precisa de palavras para ser engraçado.
E é muito sintomático como, depois que Chaplin se rendeu ao cinema falado, seus
filmes passaram a ser cada vez mais melancólicos. O cômico em seus filmes
estava sempre no imagético, naquilo que qualquer criança que não saiba ler, de
qualquer parte do mundo, saberá identificar.
A
televisão está submissa à linguagem falada e aos trejeitos do teatro. Quem
ainda reina são o roteirista e o ator. A tevê compartilha com o cinema uma
mesma linguagem, mas não dividem um mesmo modelo criativo. No cinema o artista
é o autor do filme, o diretor, a mente responsável por juntar tudo em uma obra
e fazê-la única, eterna, e universal: tal como Chaplin faz. Se a piada de
Chaplin era o rabo do cachorro que ele colocou dentro de suas calças e cujo
rabo sai por um buraco das calças, na sitcom estadunidense ela sairá da boca de
algum personagem que apontará o cômico da situação. Se em Hitchcock o conflito
da cena esta num copo de leite que pode estar envenenado, no seriado televisivo
estará na conversa de um personagem com outro.
A
diferença posta logo no início do texto sobre a relação da luz acesa com a
apreciação da obra se dá pela imersão do espectador na obra. Na sala de cinema,
em especial, o mundo que rodeia o espectador deixa de existir, daí a
necessidade da criação imagética poderosa, que possa fazer quem assiste
esquecer o mundo material que o cerca para poder imergir naquele outro mundo. Na
televisão não existe esta imersão. O espectador pode gostar de um personagem ou
outro, se identificar com eles e com as situações que eles vivem, mas nunca
será capaz de se por no lugar deles e sentir-se naquele mundo. Há quem diga, a
respeito de determinados filmes de cinema, que é possível mesmo sentir o cheiro
das locações. Isso sim é a verdadeira imersão num mundo imaginário.
Não
tomem como conclusão de que as obras televisivas são inferiores às
cinematográficas. Ainda há muito à televisão a que provar para alçar a posição
de arte – não basta compartilhar uma mesma linguagem com uma forma artística já
estabelecida. É necessário fazer por merecer. E existem alguns seriados, em
especial, que o fazem. Como exemplo cito Mad
Men (citada até mesmo por Bernardo Bertolucci como sendo uma grande obra) e
Breaking Bad. São duas obras
fantásticas que podem ser chamadas de arte.
Novamente,
não é porque dividem uma mesma linguagem em sua criação que cinema e televisão
são uma mesma coisa.
Para
retomarmos a problemática pela qual começamos o texto, desta vez para
encerrá-lo, temos um cinema comercial cujas “fórmulas” são tão simples que
foram reutilizadas por sua, até então, prima pobre: a tevê. Mas ao contrário do
que dizem por aí, o cinema não vai tão mal. É verdade que não há nenhuma
vanguarda em ação, mas também não há na tevê. Mas a criatividade dos cineastas
se mantém. Michael Haneke, Aleksandr Sokurov, Richard Linklater, Abbas
Kiarostami, Kleber Mendonça Filho e Pedro Costa, para citar alguns, continuam
na ativa fazendo filmes muito bons e provando que o cinema não foi nem está tão
próximo de ser destronado. Talvez o que esteja acontecendo seja uma queda do
sistema tradicional de comercialização “audiovisual”. Como diria o argentino
Juan José Campanella: o cinema pode perder grande parte do público, mas não
deixará de existir, pode passar a ser uma arte somente para os amantes de
cinema.
Este não é um texto definitivo, tão somente um aglomerado de provocações para o leitor pensar a questão trabalhada.
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