sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

A música no cinema - Fred Astaire e Ginger Rogers


Quando surge a possibilidade de se fazer um cinema falado a linguagem cinematográfica já havia se ajustado muito bem a este detalhe faltante da composição fílmica. Alguns cineastas conseguiam se sair muito bem sem seu uso – característica que marcou a obra de alguns cineastas mesmo depois do advento do cinema falado. Mas quando esta se torna uma ideia de valor econômico, já que levaria mais gente aos cinemas – de início curiosos em descobrirem aquela engenhosa invenção – os estúdios estadunidenses iniciam uma corrida contra o tempo para se adaptarem a este salto dado na linguagem cinematográfica.

Este foi um passo dado primeiramente pela Warner Brothers que encontraram no cinema falado um meio de fugir de sua iminente falência. Forma bem sucedidos, pelo que podemos notar hoje separados quase 100 anos desde aqueles tempos. Notamos tanto pela manutenção do cinema falado quanto pela permanência dos estúdios em questão no cenário cinematográfico mundial.

Um dos primeiros desafios deste novo modo de se expressar seria encontrar um meio de justificar o uso da fala nos filmes. Como já colocado mais acima, alguns cineastas já conseguiam driblar o problema do não uso das palavras com uma boa dose de criatividade. Mas o cinema mudo impedia a existência da música ou da relação da música dentro dos filmes. Os cineastas ainda tentavam colocar alguns instrumentos, mas a representação imagética da música nunca será o mesmo que ouvir uma música. Abel Gance em seu magnífico A roda (la roue, 1923) chega a colocar alguns personagens tocando violino. Qual não seria a sensação de tais cenas se pudéssemos escutar os personagens a tocar?


É verdade que alguns cineastas, tais como Chaplin, compunham peças musicais que acompanhavam os rolos de películas que chegavam às salas de cinema para que a banda que fazia o acompanhamento dos filmes pudesse tocar aquilo que fora pensada especialmente para o filme. Mas é diferente. Primeiro que são bandas diferentes, com formações diferentes. O espetáculo terminava por não ser o mesmo para todos os espectadores ao redor do globo tal como o é hoje. (Isso se levarmos ainda em conta que nas pequenas salas somente um pianista sozinho fazia o acompanhamento do filme).

Assim quando a Warner Brothers lança O cantor de jazz seu sucesso se torna também uma questão estética não somente financeira ou tecnológica. E a escolha de fazer um musical como primeiro filme falado foi acertada. Porque nunca antes as plateias de cinema puderam ouvir as sombras dançantes na tela prateada. E pela primeira vez que as escutam, elas podem as ouvir cantar! O cantor de jazz ainda não era uma peça inteiramente falada, mas em seus momentos grandes quando surgia a cantoria se estabelecia ali seu impacto: a música finalmente faz parte do espetáculo cinematográfico.

Chegamos, assim, ao ponto que mais desejava quando comecei a escrever este texto: os filmes de Fred Astaire e Ginger Rogers. Sim, porque este foi o casal mais popular do cinema musical desta primeira década do cinema falado, e talvez de toda a história do cinema até aqui. É curioso este tenha sido o melhor gênero do cinema hollywoodiano a se encaixar neste novo formato de cinema. Era o modo de o cinema poder afirmar esta inovação técnica que era olhada com olhares tortos pelos grandes mestres e apreciadores da arte do filme mudo.


Quão ridículo não seria se tivessem escalado Fred Astaire para estrelar um filme mudo em que ele tivesse que apresentar sua habilidade de dançarino? Não teríamos os sons de seu sapateado ou das músicas que canta – e que acompanham seu bailado. E é aí que entre a genialidade da dupla Astaire-Rogers nesta primeira década. Porque sua dança não possui a mesma efetividade sem a música. E sem o cinema falado não há música. E sem a música não há momentos inesquecíveis da história do cinema como Fred Astaire cantando para Ginger Rogers Cheek to cheek no alto momento de O picolino (top hat, 1935).

Um de seus filmes que mais admiro por deixar mais explícita esta relação música-cinema é Vamos dançar? (shall we dance, 1937) dirigido pelo velho parceiro da dupla, Mark Sandrich. Logo no início da película, Fred Astaire coloca uma música num gramofone e começa a sapatear seguindo o ritmo da composição que toca. Mas o disco está arranhado e permanece numa repetição, forçando-o a continuar um mesmo passo. Ele interrompe seu alegre dançar para retornar à máquina e adiantar a agulha do disco, que tem mais arranhões que produzem o mesmo efeito. É uma cena que não existiria sem a capacidade sonora do cinema.

Tal como em Ritmo louco (swing time, 1936) em que Fred Astaire surge no apartamento de Ginger Rogers enquanto esta se prepara para sair. Estão em diferentes cômodos da casa, e ainda assim são capazes de conversarem. Ele finge deixar a sala fazendo seus passos se distanciarem, ainda que permaneça parado no mesmo lugar. Aproveita que ela acredita que ele não está mais em seu apartamento para sentar-se ao piano e cantar The way you look tonight. Ela para sua arrumação e passa a escutá-lo. Estão em cômodos diferentes, mas a música ecoa pelas paredes.


Seguindo o pensamento do trio de postagens Apalavra no cinema temos algumas cenas que podem ser compreendidas sem a necessidade da fala. Mas algo falta à cena se lhe suprimimos o som: a emoção. O cinema não é uma produção científica, mas artística. O som, mesmo não sendo das mais importantes, é uma das suas características e isto significa que não deve ser abandonada de imediato. Compreendemos o que Fred Astaire faz ao fingir que deixa o apartamento de Ginger Rogers sem a música? Sim. Compreendemos que ela se emociona com o seu canto? Sim. Mas a compreensão não assegura a emoção do espectador frente à cena apresentada.

Assim, quando em A alegre divorciada (the gay divorcee, 1934) Fred Astaire começa a cantar Night and day a comoção que surge na expressão de Ginger Rogers somente pode ser interpretada uma vez compreendamos a música que é cantada. Tal como depois que começam a dançar, ela tenta lhe escapar, mas ele continua sua insistência até que se inicia o número de dança. Este é efetuado também partindo da compreensão da canção: ele está apaixonado por ela e não consegue imaginar sua vida sem ela. A todo momento pensa nela. E assim a envolve na dança – esta que nunca é gratuita nos filmes de Astaire-Rogers, sempre sendo o ponto alto da expressão emocional de seus personagens.


É o cinema musical que finalmente liga a imagem ao som, sendo o melhor exemplo da capacidade inventiva dos cineastas do período sonoro. Porque a música justifica o uso do som. A música trás um algo a mais para a película. A música complementa – fazendo parte (d) – a imagem. Os personagens dos musicais necessitam da música. Esta é a sua grande expressão. E os números musicais saltam seu lado subjetivo, seus desejos e angústias, suas hesitações e alegrias para fora de seus corpos sendo expressa por meio de seu canto e de suas danças. É esta a significação que tem muitos dos números de Fred Astaire e Ginger Rogers enquanto parceiros. Ele tenta conquista-la, guia-la. Ela se entrega à paixão e o segue. Eles bailam. Hesitam e se separam. Voltam a ficar juntos e se envolvem. E parecem encontrar a felicidade que procuram quando dançam juntos. Este é o tipo de construção que somente poderia ser feita por um cinema falado.

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