Quando
surge a possibilidade de se fazer um cinema falado a linguagem cinematográfica
já havia se ajustado muito bem a este detalhe faltante da composição fílmica. Alguns
cineastas conseguiam se sair muito bem sem seu uso – característica que marcou
a obra de alguns cineastas mesmo depois do advento do cinema falado. Mas quando
esta se torna uma ideia de valor econômico, já que levaria mais gente aos
cinemas – de início curiosos em descobrirem aquela engenhosa invenção – os estúdios
estadunidenses iniciam uma corrida contra o tempo para se adaptarem a este
salto dado na linguagem cinematográfica.
Este
foi um passo dado primeiramente pela Warner Brothers que encontraram no cinema
falado um meio de fugir de sua iminente falência. Forma bem sucedidos, pelo que
podemos notar hoje separados quase 100 anos desde aqueles tempos. Notamos tanto
pela manutenção do cinema falado quanto pela permanência dos estúdios em questão
no cenário cinematográfico mundial.
Um
dos primeiros desafios deste novo modo de se expressar seria encontrar um meio
de justificar o uso da fala nos filmes. Como já colocado mais acima, alguns
cineastas já conseguiam driblar o problema do não uso das palavras com uma boa
dose de criatividade. Mas o cinema mudo impedia a existência da música ou da
relação da música dentro dos filmes. Os cineastas ainda tentavam colocar alguns
instrumentos, mas a representação imagética da música nunca será o mesmo que
ouvir uma música. Abel Gance em seu magnífico A roda (la roue, 1923)
chega a colocar alguns personagens tocando violino. Qual não seria a sensação
de tais cenas se pudéssemos escutar os personagens a tocar?
É
verdade que alguns cineastas, tais como Chaplin, compunham peças musicais que
acompanhavam os rolos de películas que chegavam às salas de cinema para que a
banda que fazia o acompanhamento dos filmes pudesse tocar aquilo que fora
pensada especialmente para o filme. Mas é diferente. Primeiro que são bandas
diferentes, com formações diferentes. O espetáculo terminava por não ser o
mesmo para todos os espectadores ao redor do globo tal como o é hoje. (Isso se
levarmos ainda em conta que nas pequenas salas somente um pianista sozinho
fazia o acompanhamento do filme).
Assim
quando a Warner Brothers lança O cantor
de jazz seu sucesso se torna também uma questão estética não somente
financeira ou tecnológica. E a escolha de fazer um musical como primeiro filme
falado foi acertada. Porque nunca antes as plateias de cinema puderam ouvir as
sombras dançantes na tela prateada. E pela primeira vez que as escutam, elas
podem as ouvir cantar! O cantor de jazz
ainda não era uma peça inteiramente falada, mas em seus momentos grandes quando
surgia a cantoria se estabelecia ali seu impacto: a música finalmente faz parte
do espetáculo cinematográfico.
Chegamos,
assim, ao ponto que mais desejava quando comecei a escrever este texto: os
filmes de Fred Astaire e Ginger Rogers. Sim, porque este foi o casal mais
popular do cinema musical desta primeira década do cinema falado, e talvez de
toda a história do cinema até aqui. É curioso este tenha sido o melhor gênero do
cinema hollywoodiano a se encaixar neste novo formato de cinema. Era o modo de
o cinema poder afirmar esta inovação técnica que era olhada com olhares tortos
pelos grandes mestres e apreciadores da arte do filme mudo.
Quão
ridículo não seria se tivessem escalado Fred Astaire para estrelar um filme
mudo em que ele tivesse que apresentar sua habilidade de dançarino? Não teríamos
os sons de seu sapateado ou das músicas que canta – e que acompanham seu
bailado. E é aí que entre a genialidade da dupla Astaire-Rogers nesta primeira
década. Porque sua dança não possui a mesma efetividade sem a música. E sem o
cinema falado não há música. E sem a música não há momentos inesquecíveis da
história do cinema como Fred Astaire cantando para Ginger Rogers Cheek to cheek no alto momento de O picolino (top hat, 1935).
Um
de seus filmes que mais admiro por deixar mais explícita esta relação
música-cinema é Vamos dançar? (shall
we dance, 1937) dirigido pelo velho parceiro da dupla, Mark Sandrich. Logo no
início da película, Fred Astaire coloca uma música num gramofone e começa a
sapatear seguindo o ritmo da composição que toca. Mas o disco está arranhado e
permanece numa repetição, forçando-o a continuar um mesmo passo. Ele interrompe
seu alegre dançar para retornar à máquina e adiantar a agulha do disco, que tem
mais arranhões que produzem o mesmo efeito. É uma cena que não existiria sem a
capacidade sonora do cinema.
Tal
como em Ritmo louco (swing time, 1936)
em que Fred Astaire surge no apartamento de Ginger Rogers enquanto esta se
prepara para sair. Estão em diferentes cômodos da casa, e ainda assim são capazes
de conversarem. Ele finge deixar a sala fazendo seus passos se distanciarem,
ainda que permaneça parado no mesmo lugar. Aproveita que ela acredita que ele
não está mais em seu apartamento para sentar-se ao piano e cantar The way you look tonight. Ela para sua
arrumação e passa a escutá-lo. Estão em cômodos diferentes, mas a música ecoa
pelas paredes.
Seguindo
o pensamento do trio de postagens Apalavra no cinema temos algumas cenas que podem ser compreendidas sem a
necessidade da fala. Mas algo falta à cena se lhe suprimimos o som: a emoção. O
cinema não é uma produção científica, mas artística. O som, mesmo não sendo das
mais importantes, é uma das suas características e isto significa que não deve
ser abandonada de imediato. Compreendemos o que Fred Astaire faz ao fingir que
deixa o apartamento de Ginger Rogers sem a música? Sim. Compreendemos que ela
se emociona com o seu canto? Sim. Mas a compreensão não assegura a emoção do
espectador frente à cena apresentada.
Assim,
quando em A alegre divorciada (the
gay divorcee, 1934) Fred Astaire começa a cantar Night and day a comoção que surge na expressão de Ginger Rogers
somente pode ser interpretada uma vez compreendamos a música que é cantada. Tal
como depois que começam a dançar, ela tenta lhe escapar, mas ele continua sua insistência
até que se inicia o número de dança. Este é efetuado também partindo da compreensão
da canção: ele está apaixonado por ela e não consegue imaginar sua vida sem
ela. A todo momento pensa nela. E assim a envolve na dança – esta que nunca é
gratuita nos filmes de Astaire-Rogers, sempre sendo o ponto alto da expressão
emocional de seus personagens.
É
o cinema musical que finalmente liga a imagem ao som, sendo o melhor exemplo da
capacidade inventiva dos cineastas do período sonoro. Porque a música justifica
o uso do som. A música trás um algo a mais para a película. A música
complementa – fazendo parte (d) – a imagem. Os personagens dos musicais
necessitam da música. Esta é a sua grande expressão. E os números musicais
saltam seu lado subjetivo, seus desejos e angústias, suas hesitações e alegrias
para fora de seus corpos sendo expressa por meio de seu canto e de suas danças.
É esta a significação que tem muitos dos números de Fred Astaire e Ginger
Rogers enquanto parceiros. Ele tenta conquista-la, guia-la. Ela se entrega à
paixão e o segue. Eles bailam. Hesitam e se separam. Voltam a ficar juntos e se
envolvem. E parecem encontrar a felicidade que procuram quando dançam juntos. Este
é o tipo de construção que somente poderia ser feita por um cinema falado.
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