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domingo, 9 de junho de 2019

Notas sobre o sublime cinematográfico


Em julho de 1961, o cineasta, crítico e então editor dos Cahiers du cinéma, Éric Rohmer escreveu um dos artigos mais conhecidos de sua carreira como teórico de cinema para esta mesma publicação, intitulado O Gosto da Beleza, que mais tarde viria a figurar como título para a coleção de artigos e ensaios selecionados ao longo de sua carreira de pensador da arte em questão.
Eric Rohmer é conhecido nos meios cinematográficos como sendo um membro que politicamente se posicionaria mais à direita dentre os escritores da revista, e dentre os participantes do que ficou conhecida como a Nouvelle Vague. Em parte por isso o valor do ensaio O Gosto da Beleza foi sombreado pelo que costumeiramente foi interpretado como um lance conservador de Rohmer em buscar a retomada de vocabulário arcaico para tratar o cinema.
A proposta do crítico e cineasta em O Gosto da Beleza é o de encarar o cinema como uma arte madura, e portanto passando do ponto de os críticos e estudiosos se debruçarem unicamente nas formas de expressão das obras fílmicas para se focar na profundidade do conteúdo destes mesmos filmes - e aqui por conteúdo que seja entendido o filme em sua individualidade e singularidade, não sua temática ou roteiro. Se for para julgar os filmes como obra de arte, que os estudiosos de cinema se apropriem do vocabulário utilizado para se reportar a obras de arte.
Os esforços da crítica foram bem realizados ao longo das décadas anteriores, reconhece Rohmer, inclusive a de seus companheiros de Cahiers e de Nouvelle Vague – ocasionais críticos. Por meio dos artigos, críticas e ensaios de André Bazin, François Truffaut, André Labarthe, e alguns outros nomes muito caros à movimentação da cinefilia francesa, foi possível reconhecer algumas mudanças de perspectiva no tratamento interpretativo de uma obra fílmica. Em 1961, data da publicação do artigo de Rohmer, nem mesmo o crítico de um periódico provinciano – escreve ele – ousaria tratar os filmes somente a partir de seu roteiro, da história que conta. Um filme conta com todo um universo de possibilidades expressivas que permitem dar um tratamento ao roteiro, fazendo com que o trabalho de contar uma história em filme vá muito além do que se encontra escrito no texto entregue aos atores.
Chega então um ponto de contraposição. Se seus colegas estabeleceram estas mudanças de perspectiva de como interpretar um filme adotando o conceito de “mise-en-scène”, tomado de empréstimo do teatro e que passa a dizer respeito mais amplamente à encenação fílmica em todas as suas características (o jogo do ator com a câmera, o posicionamento da câmera, o movimento da câmera, a montagem, a colocação da trilha sonora...), Rohmer propõe uma nova mudança de perspectiva colocando sua preferência: o Belo. Para propor o uso da segunda noção em detrimento da primeira, Rohmer diz que no Belo já é possível abarcar a noção de “encenação fílmica”, mas deixa de lado o peso técnico que esta última carrega.
A incursão de Rohmer pelo trabalho que seus parceiros de crítica realizavam até então pode ser expandido para o trabalho feito pelos filósofos ao tomar o cinema como tema de investigação – num padrão que se manteve mesmo depois do artigo de Rohmer. Os comentários envolvendo o dispositivo cinematográfico por filósofos datam desde seus primeiros dias de existência, sendo que dentre os mais famosos estão aqueles de Henri Bergson, notavelmente em A Evolução Criadora. O foco exclusivo no cinema, porém, somente terá início alguns anos mais tarde desta que é a obra mais conhecida de Bergson, quando Hugo Munsterberg publica nos EUA o tratado The Photoplay: A Psychological Study, dedicando-se inteiramente ao estudo do cinema, em 1916. Contudo, o tratado de Munsterberg não ficou tão bem conhecido entre o público geral e os acadêmicos de filosofia e das artes, somente ganhando notoriedade décadas mais tarde.
Durante esta primeira fase da história da teoria de cinema, aqueles que mais tomaram a frente para pensar a arte e suas formas de expressão foram os próprios realizadores. Na União Soviética, os cineastas mais influentes não somente trabalhavam fazendo filmes, como também auxiliavam na formação de novos realizadores de cinema. Foi destas aulas que surgiram experimentos de ordem perceptiva, para notar padrões de comportamento do espectador com relação às imagens – o mais famoso dentre eles é aquele realizado por Lev Kulechov –, assim como para pensar em novos caminhos de utilizar a montagem para melhor desenvolver uma narrativa essencialmente cinematográfica – como é exemplo com os exercícios teóricos e práticos de Eisenstein com a montagem de atrações e a dialética fílmica.
Curiosamente, é na França que se pode encontrar – ainda na década de 1920, durante o período silencioso do cinema – alguns exercícios próximos à proposição de Rohmer em seu artigo. Se na Alemanha do mesmo período ficou famoso o movimento expressionista, na França semelhante movimento acontecia de cineastas desenvolverem obras vanguardistas buscando experimentar com as formas de expressão do cinema. O grupo central do cinema francês do período ficou conhecido como Impressionista, em aproximação com o movimento das artes plásticas do mesmo país. Os cineastas, assim como os soviéticos, trabalhavam também como teóricos, ainda que diferentemente dos soviéticos não tivessem uma escola de formação de novos realizadores. Logo a crítica de cinema francesa ganhou fôlego, e já no final da década de 1910 todo jornal do país carregava uma seção dedicada a crônicas sobre a nova arte. Por meio destes espaços os realizadores de cinema podiam desenvolver suas ideias a respeito do que pensavam. A ideia que mais se aproxima daquela de Rohmer envolve a noção de fotogenia.
Assim como a noção de “encenação fílmica”, a “mise-en-scène” – um conceito tão popular dentre os críticos que mesmo no Brasil é utilizado por acadêmicos sem tradução para guardar sua amplitude descritiva dentro da teoria de cinema – “fotogenia” não é um termo novo para as artes, antes sendo proveniente da fotografia, sendo apropriada pelos estudos de cinema e carregando forte peso técnico, como sua prima “mise-en-scène”. Mas Fotogenia começou a ser utilizada pelos cronistas, críticos e teóricos de cinema nos anos 1920 como um termo para poder abarcar tanto o aspecto técnico do dispositivo cinematográfico, quanto seu aspecto estético. Um exercício de cineastas para encontrar o meio termo entre a técnica e o poético que guarda esta nova arte. A poesia seria rendida no cinema através da Fotogenia. Dentre os realizadores que se dedicaram ao estudo da Fotogenia no cinema, destacam-se Louis Delluc e Jean Epstein.
Apesar das promessas da Fotogenia para o cinema, sua definição nunca foi muito bem precisada pelos realizadores, deixando-a a cargo da intuição de seus leitores e colegas realizadores para desvendar seu mistério. É o que nota, por exemplo, Jacques Aumont, ao citar um trecho de um dos ensaios de juventude de Jean Epstein, escrevendo, “a fotogenia é para o cinema o que a cor é para a pintura, o volume para a escultura: o elemento específico desta arte” – assim começa Epstein, ao que Aumont conclui, “A fotogenia é a virtus artística do cinema. não precisa portanto de nenhuma definição particular. Daí Epstein voltar ao termo dez anos depois exatamente, em 1934-1935, para anunciar uma ‘fotogenia do imponderável’. Simplesmente, a ênfase deslocou-se da fotogenia ao imponderável: o cinema tornou-se a arte do invisível” (AUMONT, p. 92).
Precisamente este invisível, ou imponderável, passou a ser levado em consideração por críticos e filósofos ao longo das décadas seguintes. O próprio Epstein, ao se ver afastado da produção fílmica depois do advento do cinema falado, passou a cada vez mais redigir ensaios sobre o cinema abordando o caráter metafísico do dispositivo cinematográfico, dando particular atenção à relação do cinema com o tempo. Durante este mesmo período, André Bazin, mentor de Eric Rohmer, escreve uma série de ensaios acerca do realismo cinematográfico em estudos de viés ontológico, também se dirigindo ao tempo, ou neste caso em seu débito com a filosofia de Bergson, duração. Assim continuam os estudos de cinema, com Edgar Morin na década de cinema com o livro O Cinema ou o Homem Invisível, Susan Sontag em suas Notas sobre Bresson.
Até que na década de 1970 uma corrente iniciada pelo cineasta estadunidense Paul Schrader, roteirista famoso pelo filme Taxi Driver, começou a chamar este invisível, o imponderável, sob a categorização de “cinema transcendental”. O ensaio de Schrader exerce grande influência sobre estudiosos, especialmente sobre a obra do filósofo francês Gilles Deleuze, ao escrever o segundo tomo de seu texto sobre cinema. Ancorado no título de Schrader que Deleuze cunha seu famoso conceito de imagem-tempo.
Apesar da importância de todas estas concepções, permanece válida a incursão de Eric Rohmer, mas desta vez com uma perspectiva filosófica. Os estudos que se preocuparam com pensar o cinema continuadamente mantiveram suas proposições voltadas para aspectos ora técnicos, ora ontológicos, recusando o vocabulário estético que a tudo isto poderia abarcar, e ainda levaria em consideração a condição do objeto de investigação: a arte cinematográfica.
Na separação dos dois tomos de seu estudo de cinema, Deleuze realiza também uma separação “histórica” – aqui figurando entre aspas porque não trata do autor nem como uma evolução (como o fazia Bazin), nem como uma progressão, ou como havendo um momento de ruptura na história desta arte. A “história” do cinema deleuzeana se divide (como fazia Bazin) entre clássico (imagem-movimento) e moderno (imagem-tempo), uma divisão que continua a causar confusões interpretativas da obra do filósofo. A imagem-tempo seria constitutiva de características muito próximas àquelas detalhadas por muitos outros teóricos de cinema antes dele: há o tempo, o espírito, o pensamento, o transcendente. Curiosamente, no entanto, é encontrar estas características na descrição de escritores clássicos ao considerar a emoção do sublime.
O sublime foi emoção considerada por muitos autores ao longo dos séculos, caída em desuso por acadêmicos próximos à arte cinematográfica antes mesmo de abordá-la. Há, assim, o perigo de tomar uma noção desenvolvida quando inserida em determinados contextos alheios àqueles da arte cinematográfica. Quando pensado por Longino, o sublime é pensado exclusivamente no contexto literário. Quando pensado por Kant, o sublime não se prende às fronteiras da experiência com as artes. Em fato, o sublime tal como tratado por Kant em sua Crítica da Faculdade de Julgar somente será mais diretamente vinculado às artes quando pensado por autores muito mais próximos à produção artística, como Schiller, mesmo assim, ainda antes da criação do cinema.
Próximo do que Rohmer já propunha a respeito do Belo, um estudo que atualize o sublime pensando-o em sua ligação com o cinema não poderá se furtar a levar em consideração as ponderações ontológico-metafísicas em torno desta arte. O objetivo desta pesquisa é o de buscar nas fontes clássicas os estudos sobre o sublime, para que assim seja possível realizar uma atualização da noção, aproximando-o de uma metafísica e de uma ontologia do dispositivo cinematográfico.



ROHMER, Eric. Le gout de la beuté. Publicado originalmente em: Cahiers du Cinéma, Julho de 1961, Tomo XXI, nº 121, p. 18-25.

(texto originalmente apresentado no seminário da pós-graduação em Filosofia da Universidade Federal da Bahia)

terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

Peitos em lilás


(um comentário a Manhã Cinzenta e a liberdade de expressão cinematográfica)


Meu pai costuma contar a história de uma exibição do filme Manhã cinzenta realizada por ele tempos atrás. Finda a projeção, debate aberto. Uma das pessoas na plateia pede a palavra. Aponta para a imagem acima e diz que o filme é pornográfico. É um choque depois de assistir ao filme escutar tal referência. Pornográfico. Para quem proferiu tal dizer, pornografia é simplesmente apresentar uma mulher com peitos de fora. Eis que temos uma história da arte constituída de obras pornográficas.

Mas o caso aqui não é o de escrever sobre pornografia. Deixo este trabalho para Susan Sontag. O nu é visto com cautela e reserva por parte dos grupos mais conservadores da sociedade. Os artistas e suas obras são muito abertos para a representação do nu. Seja de forma direta como se apresenta na imagem acima, seja em suas formas abstratas como na pintura contemporânea. É um encontro com o natural por meio do corpo. A inteligência humana parece separar as pessoas do ambiente que as envolve. Humano e natureza parecem dois seres distintos. Certamente que em filosofia muito já se tratou desta separação. Em arte há a preferência pela união entre gente e natureza. Representação dos sentimentos, demonstração do animalesco humano.

O que há na cena de Manhã cinzenta? A mulher sem nome está em cárcere. Foi presa como subversiva pela ditadura fictícia da trama de ficção-científica do filme. Rasga a blusa com ferocidade enquanto diz que Aurelina tingiu a bandeira nacional de lilás. A cor da morte. O embate entre Abel e Caim. Blusa aberta, rompimento com a inteligência científica que separa humano da natureza. Peito aberto, a vulnerabilidade do animal humano. O seio que alimenta e dá vida à criança é o mesmo que se rompido, morte.

Lembro então outro filme que estive a assistir esta semana. Fahrenheit 451. Filme de François Truffaut. Um daqueles raros casos em que a adaptação cinematográfica em nada fica em débito com a obra original. E que ainda é capaz de trazer novas ideias para a obra original. A certo ponto do filme, o chefe de bombeiros se intromete na ilegal biblioteca que uma senhora guarda no sótão de sua casa. Devem queimar tudo. Porque os bombeiros agora queimam livros, ao invés de apagar incêndios. “Todos os livros devem ser queimados”, diz ele enquanto empunha Minha luta, de Adolf Hitler.

Manhã cinzenta foi proibido pela ditadura brasileira. Filme subversivo que trata da organização estudantil e da prisão de líderes estudantis durante a ditadura fictícia. São eles julgados por um cérebro eletrônico. O poder da ciência que nos separa dos animais que somos. Perante as máquinas surge a vergonha e os peitos devem ser guardados debaixo de panos para que não seja vista nossa inferioridade animal. Nosso perecer. Manhã cinzenta foi então destruído. Todas as cópias que chegaram às mãos do Estado. Chamas lançadas sobre o filme. Uma cópia permaneceu em território nacional, e é esta cópia que permite que hoje conheçamos o filme.

A quem fica o direito de abolir a existência de um filme? Ou de um livro? A moral aponta para os seios descobertos da mulher no cárcere e aponta: imoral. Ou melhor, pornográfico. A moral também aponta para Minha luta e diz: imoral. Em ambos os casos corre pelos braços a comichão de lançar fogo sobre ambas as obras. Que de forma alguma são iguais. De forma alguma partilham de mesma ideologia. Ambas encontram-se sob o mesmo fogo cruzado do germe do fascismo. O fascismo que nasce com Minha luta e que é denunciado por Manhã cinzenta. A primeira faz ode à destruição de livros. A segunda se opõe a ela firmemente.

A certo ponto do filme, o protagonista masculino senta a mesa de seu apartamento e lê uma passagem do livro A peste, de Albert Camus. Lemos:

“A multidão festiva ignorava o que se pode ler nos livros: o bacilo da peste não morre nem desaparece, fica dezenas de anos a dormir nos móveis e nas roupas, espera com paciência nos quartos, nos porões, nas malas, nos papéis, nos lenços – e chega talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acorda os ratos e os manda morrer numa cidade feliz”.

Hoje continuamos a ver o dedo em riste a apontar para as mais diversas obras artísticas e pronunciar: pornografia! O nu é criminoso! O sexo é uma corrupção dos seres! O nu e o pornográfico são lidos das mais diversas formas. É ode a crimes. Assim como acontece com Manhã cinzenta, a pornografia intentada não está realmente . É uma simplificação exagerada conceituar pornografia como a presença de um corpo nu. Mesmo que seja o corpo nu de um adulto. Por trás do dedo em riste está o julgamento moral que busca apontar para a diminuição da qualidade artística da obra. Pornografia é má, Manhã cinzenta é filme pornográfico, logo Manhã cinzenta é um mau filme. Que seja atirado ao fogo!

O bacilo da peste se alimenta do fogo. Ressurge em seu ápice quando as fogueiras são montadas. Invade a imaginação das pessoas causando um transe cego. Invoca-se demência e atira-se meninas adolescentes à fogueira. Invoca-se a demência judia dos artistas e atira-se seus livros à fogueira. Invoca-se a pornografia das más obras de arte dos ditos “intelectuais” e atira-as à fogueira. Na fumaça das fogueiras o bacilo da peste encontra transporte e quando caem as chuvas elas invadem as casas.

E assim, a peste se encontra habitando dentro de nossas casas por bastante tempo. Vive incrustada nos encanamentos e nos tempos de maior calor podemos sentir o odor da pestilência a subir pelos ralos. Inundam-nos os narizes, os olhos. A boca e os dedos. Guiam a voz alta e o dedo malicioso. Para a fogueira todos vocês! É preciso lavar o encanamento das casas, respirar o ar puro das paisagens. Não se deixar cair em transe. É preciso enxergar que com a letra A podemos escrever não somente ARMA, mas também AMOR.


Aqui jaz o endereço para assistir o filme e compreender que a pieguice do ultimo parágrafo é menção a passagem do filme em questão:
ou
o documentário realizado por Henrique Dantas sobre Manhã Cinzenta:

sábado, 6 de fevereiro de 2016

Os pivetes de François Truffaut (les mistons, 1957)


A cinefilia é característica presente nos trabalhos de quase todos os cineastas da nouvelle vague. Chabrol fazia sempre referências a Hitchcock, até pela escolha por constantemente filmar suspenses. Rohmer já preferia um caminho mais clássico que o aproximava de Murnau, aquele que parece ter sido seu cineasta preferido - difícil e controverso colocar Rohmer na nouvelle vague, mas façamos pelo bem do argumento. Godard fazia uma miscelânea de referências. Como Truffaut.

Já em seus primeiros filmes, antes mesmo de estourar para o mundo com Les quatre-cent coups, Truffaut já filmava reverenciando os mestres que o ensinaram a ver. Em Les mistons, talvez seu curta mais conhecido desta safra pré-reconhecimento, o cineasta já mostrava suas competências em conseguir reunir diferentes estilos num filme bem estruturado, e o que é mais importante, orgânico. Digo orgânico porque ao reunir influências que vão de cineastas extremamente diferentes como Hitchcock e Vigo é fácil que uma mente bem intencionada produza um monstro de Franskenstein cujas partes não se casam.

Em Les mistons, ou Os pivetes como o filme foi nomeado em terras brasileiras - título simpático - Truffaut consegue reunir todas suas influências de cinefilia num filme de quase vinte minutos com leveza, transformando-o num verdadeiro filme de Truffaut. Ao reunir diferentes estilos em seu filme, Truffaut aglutina todos, digere, e ganha a consciência de como filmar de modo próprio, de modo que lhe seja mais confortável. Insere no seu cinema algumas das características que seguiriam pelo resto de sua carreira.


Uma das características mais claras, e esta que todos os cinéfilos convictos da nouvelle vague seguiam em maior ou menor frequência, é o lado voyeur do espetáculo cinematográfico - coisa aprendida pelo cineasta que todos eles reverenciavam, Alfred Hitchcock. Tanto na construção de um filme quanto em seu visionamento estamos num jogo "voyeurístico". Truffaut compreendeu isso e o inseriu em boa parte de seus filmes. Doinel, para além de cinéfilo, estende seu lado observador para o cotidiano, enquanto segue os outros, observa os gestos alheios. Aqui em Les mistons, Truffaut encontra um grupo de crianças que pratica este ato observador. Passa uma garota bonita de bicicleta e eles, de longe, se contentam em simplesmente observá-la. Num ato que tende mais ao cinema de Cocteau, Truffaut filma uma das crianças se aproximando da bicicleta e beijando o acento vazio onde, uma vez, a desejada jovem esteve sentada.

Há mais em Les mistons, há Vigo. Esta influência é marcante no cinema de Truffaut a partir do ponto revolucionário em que as crianças são tratadas no cinema por Zéro de conduite. As crianças ainda não estão totalmente inseridas nas relações de conformação com as regras impostas pela sociedade e por isso podem se rebelar com maior facilidade. Os adultos, por estarem nelas inseridas, têm maiores dificuldades de enxergar como seria a vida fora delas, acreditando que sem elas haveria o caos completo. Vigo, enquanto anarquista, enxerga no caos infantil que toma conta da escola algo melhor que a ordem imposta. Truffaut, enquanto uma criança rebelde que foi, acredita nele. E assim, a certo ponto do curta, ao interromper um encontro de sua musa com o namorado, as crianças brincam de batalha. Que outro modo haveria de mostrar o caráter revolucionário das crianças numa linguagem que os adultos possam compreender? Crianças não precisam de armas de verdade para combater, diferente dos adultos desprovidos de imaginação. Ao mesmo tempo que parece fazer referência a Vigo, ela retoma à batalha de bolas de neve de Cocteau.

Já em seu curta-metragem de estreia, Truffaut demonstra maturidade na composição de uma peça cinematográfica. Maturidade que já demonstrava em seus artigos, afinal foi aos 22 anos que ele escreveu Uma certa tendência do cinema francês, artigo que balançaria as estruturas da crítica e que daria o pontapé inicial à nouvelle vague e às suas tentativas de exploração das capacidade de expressão com a linguagem cinematográfica. E a carreira de Truffaut já estava bem desenhada antes mesmo de seu sucesso em Cannes.

Assistir ao filme: Les mistons (sem legenda em português)

sábado, 29 de agosto de 2015

O céu de Lisboa de Wim Wenders (Lisbon Story, 1994)


Truffaut já escrevia, em prefácio ao livro de textos de André Bazin sobre, que mesmo entre aqueles que não reconheciam o cinema enquanto uma arte, Charles Chaplin tinha seu espaço. O artista inglês conquistou este lugar considerável no imaginário mundial poetizando a vida comum, a vida das pessoas simples. Enxergando beleza onde todos os outros veriam somente a miséria. Não são poucos os filósofos que indicarão que o artista é aquele que transforma o ordinário em extraordinário. É exatamente isso que faz Chaplin com os pãezinhos em Em busca do ouro. Aquilo que encontramos todos os dias e cujo trato é sempre igual é transformado pelo cômico inglês num baile. É numa homenagem a este tipo de visionário que Wim Wenders vai até a capital portuguesa filmar O céu de Lisboa. Em tempos de filmes digitais, quando as imagens tornaram-se descartáveis porque todos podem produzi-las aos montes, o cineasta alemão faz este retorno às origens, a busca dos poetas do cinematógrafo.

Tudo começa com um ciao a Fellini. O italiano que também possui suas inspirações chaplinianas (ou partilha das mesmas inspirações), surge na capa de um jornal que noticia seu falecimento. A morte de um autor como Fellini poderia anunciar os tempos críticos do cinema. E parece ser exatamente isso que se anuncia por alguns momentos durante a película. Phillip Winter recebe um postal de um amigo cineasta que está a filmar em Lisboa e precisa que ele até lá viaje para fazer o trabalho de som do filme. Na primeira recusa à modernidade prática, Winter escolhe ir da Alemanha à Portugal não de avião, mas de carro. Neste caminho, a influência dos cômicos do cinema mudo torna-se explícita. Winter está de pé quebrado e dirige. O pneu fura numa ponte e ele deixa cair o pneu reserva no rio. Mais tarde falta água no radiador, que ele repõe com Coca-Cola. O carro quebra. Chegando a Lisboa, de carona, não consegue encontrar o endereço do amigo, Friedrich. E, quando adentra o edifício, descobre que o amigo não está lá.


Na casa há uma mesa de montagem com algum filme e uma câmara antiga - semelhante à das fotos de Vertov - sobre um tripé. Deita numa cama e dorme. Acorda com um grupo de crianças o filmando com as práticas câmeras portáteis, digitais, que permitem filmar horas e horas de imagens. Elas seguram as máquinas, filmam o estranho que dorme na cama de seu amigo Friedrich, mas em momento algum prestam atenção ao trabalho de composição das imagens. As câmeras digitais são encontradas em qualquer lugar, a preços razoáveis e qualquer pessoa pode manejá-las. O que não significa que saberá criar com elas. As crianças são postas por Wenders em cena como figuras desta ingenuidade moderna de criação. Com o digital todos se acreditam criadores, e creem que qualquer imagem pode ser comparada às outras, que possui tanta beleza quanto. Mas o que produzem são conjuntos de imagens descartáveis que, caso desapareçam, ninguém, nem mesmo seus criadores, sentirá falta.

As crianças correm para todos os lados sempre com a câmera ligada. Põe a máquina no rosto do engenheiro de som que tenta esconder-se do assédio. Mas não consegue passar todo o tempo longe desta maquinaria sempre ligada. Faz amizade com as crianças e mostra-lhes seu trabalho. Esconde-se por trás de uma parede, faz sons e pede para que elas adivinhem o que é. Entusiasmadas, elas dão identidade àqueles sons produzidos pelo homem. Nunca deixando de gravar, mesmo que o nada. Aquele agrupamento de imagens desordenadas será, depois, projetada numa parede da casa para que Winter assista. Ele não consegue assistir. São muitas horas de imagens sem conteúdo. E parece que Friedrich nunca lhes disse o que poderiam filmar ou deixar de filmar.


Assistindo o filme que o amigo sumido deixou na mesa de montagem é que Winter passa a ter noção de com que trabalhar. Sai às ruas lisboetas em busca dos sons. Descobre toda a beleza do lugar a partir daquele trabalho de segurar o microfone. Fecha os olhos e tenta captar as imagens sonoras - porque é isso o som do cinema - da vizinhança. Ouve o bater de asas dos pombos. Uma mulher que grita com alguém. Uma criança que canta uma cantiga. O mundo se abre perante àquela percepção calma e cuidadosa. O fazer artístico é um processo demorado e paciente. Diferente das imagens digitais das crianças - nenhum preconceito contra as crianças, elas são representação de algo no filme - que buscam o imediato e que podem ser descartadas (e este é um ponto muito caro a Wenders, as imagens descartáveis), a criação artística de filmes de cinema busca este algo além, aquele algo que não seria por nós alcançado no cotidiano. Como os pãezinhos que transformam-se em pés a bailar sobre a mesa com Charles Chaplin.

O cineasta amigo de Winter torna-se desacreditado do fazer cinema. As pessoas são bombardeadas por imagens o tempo todo, e agora também podem produzi-las. Não há mais o espanto e o encantamento que tinham as plateias de tempos idos. É verdade, não há. Mas o que é que de relevante vem sendo feito? As imagens vem sendo produzidas sem qualquer conteúdo relevante. Sem a beleza estética necessária. É isso que Manoel de Oliveira, em participação especial, vem nos lembrar. Posto em frente à câmara, o cineasta português põe-se a imitar Chaplin e seu caminhar pelas ruas lisboetas. O conjunto de belezas da cidade está aí para ser apreciada, mas o passar cotidiano pela arquitetura distancia o sujeito de sua apreciação. O cinema é capaz de trazê-las de volta. E por que não fazê-lo como Vertov fez ao filmar seu O homem com uma câmera?

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

O que é a crítica de cinema, afinal?

André Bazin
O que é crítica, afinal? Esta é uma pergunta oportuna nestes tempos em que qualquer pessoa pode escrever sobre um filme, um livro ou um disco. O que é preciso primeiro apontarmos é que nem todo texto que se põe a comentar uma obra artística é uma crítica. Crítica é tão somente uma das formas pelas quais é possível escrever um texto. Se dermos um passeio rápido pela internet o que encontraremos é uma proliferação de resenhas, resumos, não críticas. O que inicialmente surge como algo positivo - a democratização do acesso à obra de arte - torna-se conflituoso: muitos desses textos não são críticas, apesar de se declararem enquanto tal. Este poder que o espectador comum ganha pode ser extremamente prejudicial à arte, já que muitos dos comentaristas possuem certa popularidade. Nesta vontade de escrever sobre os filmes ou livros de que tanto gostam, os chamados "críticos" da rede assumem um trabalho abjeto iniciado pela mídia impressa: o trabalho abjeto de se dar uma nota. Por que dar nota a uma obra artística? Qual o sentido de objetivar a qualidade da obra numa mensuração quantitativa?

O primeiro aspecto que devemos abordar aqui é a subjetividade. Não do artista, mas do espectador. Sim, porque muitos destes textos criados para a internet partem de uma concepção rasa do que seja arte, baseada em muitos pré-conceitos e lugar-comum. Destes pré-conceitos um muito comum diz respeito à apreciação da obra, a obra enquanto evocativa de sentimentos. É verdade que um dos papeis das artes é provocar no espectador sentimentos, mas será que devemos basear uma crítica em minhas preferências pessoais? Quem sou eu para impor meus gostos sobre os outros, ou até mesmo, desmerecer determinadas obras porque eu não gostei dela? A crítica não pode descair para o lado sentimental de um espectador. O que eu gosto pode ser diferente do que você gosta. No filme Crítico, Kleber Mendonça entrevista um profissional da área que é certeiro em seu ofício: o trabalho do crítico é encontrar a tese do autor e ver se ele deu bom tratamento à ela. Podemos concluir com isto que o trabalho do crítico de análise do filme é objetivo? Sim.

Paulo Emílio Sales Gomes
E porque não fazer a mensuração quantitativa da qualidade do filme já que a crítica é objetiva? Em primeiro lugar, este simbolismo ganha maior poder do que deveria. Muitos são os "leitores" que abrem uma crítica, correm a página somente para ver o número de estrelas dadas ao filme. E tudo passa a se resumir a este símbolo. Por mais que o texto elogie o filme, que procure mostrar que o filme é "bom", as três estrelas significarão ao "leitor": não, este filme não vale a pena ser visto. Mas desta formulação parte outro problema: a crítica enquanto indicação de uma obra. Muitas críticas são feitas assim, e muitos são os leitores que buscam uma ajuda "competente" na hora de escolher o filme que irá assistir. A crítica, enquanto indicação do que assistir no cinema, é um tanto pueril. É verdade que bons críticos são capazes de desempenhar este trabalho de indicação de um filme. Mas lembremos que os grandes nomes da crítica de cinema mundial escreveram suas críticas mais famosas (e difundidas através das décadas) em revistas mensais, ou seja, não como indicação mas como aprofundamento. A crítica deveria fazer um serviço posterior, de fornecer uma ampliação das possibilidades interpretativas ao espectador. Assisto ao filme, leio críticas e com o auxílio delas (não necessariamente por elas) passo a desenvolver um panorama do que me foi apresentado. Crio teorias, formulo interpretações aprofundadas. O filme passa a sobreviver pós-sessão.

Voltemos: a crítica de arte não pode se ancorar em minha perspectiva do que é ou não belo. O emocional é subjetivo, ou seja, difere de pessoa para pessoa (e até mesmo de situação para situação: se não gostei de filme A anos atrás, nada indica que venha a desgostá-lo dele hoje). O maior problema de quem defende esta ideia é a limitação interpretativa das obras a que se porá a criticar. Em especial porque parte somente da trama do filme ao invés de perceber como a trama é apresentada - lembremos o comentário no filme de Kleber Mendonça citado anteriormente. E este como é muito importante para a compreensão da arte. Toda obra artística é composta entre a forma e o conteúdo. O trabalho do crítico é analisar o trato desta relação entre o que é apresentado e como é apresentado. Ao criticar uma obra fílmica devemos perceber o posicionamento da câmera, dos personagens, como a cena montada e como isso se casa com a trama. Fazer o resumo da trama como se fosse crítica e a ele adicionar uma nota é permanecer distante da obra, ou da arte. É não ver o caráter cinematográfico de uma obra de cinema.

François Truffaut
Na arte apresentam-se formas de olhar o mundo, e junto a eles a constituição de conceitos. Na simples compreensão da trama muito disso se perde. É o caso do cinema de Resnais, em especial Hiroshima, meu amor. Por muitos vista de modo simplista como uma obra de amor, a profundidade política da obra do filme se apresenta por meio da relação pautada entre o texto e a imagem. Com a constituição da montagem e a criação de uma temporalidade própria. E aquilo que primeiro se enxerga como uma "história de amor" torna-se um filme político. E para este serviço é mais que necessário, é essencial, para um crítico de cinema o conhecimento teórico profundo do cinema. Para que assim possa saber, também, separar seu modo de ler sua arte do modo como lê outras artes - e até ser capaz de reconhecer a inovação de alguns criadores. Este foi um dos grandes equívocos da crítica de cinema da primeira metade do século passado - não toda, claro. Já que o cinema conta histórias, podemos analisá-lo do mesmo jeito que uma obra literária. Terrível engano. Hitchcock passou boa parte de sua carreira sendo posto à margem do cinema "de primeira" porque filmava filmes policiais - gênero B na literatura. Para sua revitalização foram necessários críticos que assistissem cinema, ao invés de ouvidores de diálogo.

Neste sentido há ainda aqueles grupos que embebem-se de certa ideologia e passam a realizar suas críticas partindo deste ideário. Para além de permanecer somente no campo da trama - conteúdo - esta é uma forma de fazer crítica muitíssimo perigosa para a vida de uma obra de arte. Isso porque grandes artistas que não compactuam com a ideologia pregada - digamos, o marxismo ou o liberalismo - podem ser pregados numa cruz. E este, caro leitor, não é um grupo de críticos raros de se encontrar. Eles são muitos e encontram-se em todos os lugares. Os críticos que não gostam dos filmes soviéticos porque propagandeiam o comunismo, os marxistas que não gostam dos filmes hollywoodianos (não todos, mas boa parte) que defendem o "american way of life".

Serge Daney
A crítica ideológica pode trazer pontos positivos por defender novas estéticas, mas isso é muito raro de acontecer. O ideal a uma crítico é ser aberto às obras que lhes são apresentadas independente da ideologia. Porque a ideologia pode nos fazer perder a beleza de certas obras. Claro que ressalvas são sempre necessárias de serem feitas. Caso disso é o cinema nazista. Obviamente, se defender tal ideário é condenável. Mas a beleza de certos filmes não pode ser negada simplesmente porque não compactuo com o ideário ali por trás. É o caso de Olympia de Leni Riefenstahl. O importante aqui é fazermos a defesa do bom cinema e não da ideologia A ou B - e nem ressaltá-la enquanto se faz sua crítica.

Crítica imparcial é quase difícil de encontrar - e pode-se dizer que ela não existe. Até porque sempre defendemos (adotamos) uma perspectiva. Mas o que se deve ser encontrado numa crítica é esta permanência da obra mesmo depois da sessão. E se a obra não consegue se manter viva nestes momentos posteriores, será a crítica que explicitará esta falta.

As páginas a seguir são algumas das que realizam este tipo de crítica aqui defendida:


Segue a este texto, E o papel social da crítica de cinema?,  publicado em 24 de agosto de 2015.

Talvez, o melhor exemplo que se encontre aqui no blog: Adeus, Dragon-Inn | O pão nosso de cada dia

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

A palavra e seu império


Vimos em A palavra e o invisível como a palavra pode ser utilizada em conformidade com o espetáculo cinematográfico. Com o advento do cinema falado poucos foram os cineastas e estudiosos que se posicionaram de modo a enxergar a estranheza da palavra nesta arte. Foi assim que se criou e deixou crescer o império da palavra.

Foi André Bazin que, em A evolução da linguagem cinematográfica, se posicionou nesta discussão. Ele enxergava dois tipos de cinema, aquele da imagem e o realista. Este segundo, de sua preferência, estaria unido à palavra por ser este um modo realista de representação cinematográfica. Na vida cotidiana as pessoas conversam quando se encontram e nada mais natural ao cinema (que é a arte realista por excelência) que mostrar este cotidiano na tela. Mas será que este realista trazido ao cinema pela palavra (pela fala) não faria uma subversão de seus valores ao invés de “avançar” em sua linha evolutiva como propõe o título do texto de Bazin?

Os discípulos cineastas do crítico francês foram que melhor apresentaram este equivoco de seu mestre. François Truffaut rasga elogios a Hitchcock quando de sua famosa entrevista. Nela os dois cineastas entram em comum acordo de que o cinema é uma arte imagética e por isso deve ser ela a melhor pensada e trabalhada, os diálogos surgem como um adendo. Jean-Luc Godard – autor de filmes de falatório – trilha caminho semelhante ao de seu antigo parceiro de Cahiers. Em Acossado Godard apresenta ao público uma montagem que não pretende ser realista ou sugerir coisa alguma, ela simplesmente nos lembra do fato de estarmos assistindo a um filme e o corte é o modo mais explícito de se demonstrar isso.


Como vimos no citado texto anterior, a palavra surge no cinema falado e logo passa a fazer parte constituinte de sua formação (no sentido da forma do filme). Quando o invisível, aquilo que aparece no extracampo nos é apresentado somente pela fala dos personagens, será que não estaria ali, naquelas palavras de quem aparece em cena um constituinte da imagem? Em parte sim, mas não acontece com todo cinema. Como vimos, isto acontece em No tempo das diligências porque aquela ameaça que não vemos e que nos é sugerida pela palavra paira nas imagens do filme. Esta ameaça que está sempre presente necessita estar fora de quadro para que a potência do filme possa surgir.

Mas isto não acontece com todos os filmes, ainda que todos eles insistam em se basear nas palavras dos personagens. Porque este realismo que a palavra emprega ao cinema faz ser mais crível a relação entre os personagens que se apresentam na tela. Mas esta busca pelo realismo cotidiano no cinema faria uma subversão de seu princípio próprio: a história contada por imagens. O que levaria uma figura a preferir contar uma história no cinema ao invés de escrever um livro, um artigo para jornal ou mesmo uma peça de teatro? Muitos dos filmes que são lançados hoje em dia provocam esta dúvida: será que eles deveriam ter sido transformados em filme? Será que eles não estariam melhor alocados em diferentes formas de comunicação ou expressão artística?

O realismo óbvio alcançado pela objetividade fotográfica faz do cinema o meio mais fácil para que um sujeito que tenha menor inspiração criativa possa contar uma história. Porque para alcançar o realismo por meio da prosa é necessário muito trabalho e inventividade por parte do escritor. No caso do cinema é dada a possibilidade de deixar de lado todo este trabalho intelectual excessivo e desenvolver algumas frases – cujo brilhantismo ficaria por conta da capacidade do ator de expressá-las – e simplesmente pôr a câmera em frente aos personagens e deixá-los surgir. Estaria em nossa frente o realismo? Sim, em parte. Porque ninguém poderia negar que aquelas duas pessoas estão conversando uma com a outra ou que seu diálogo é, no mínimo, interessante.


É aí que surge um ponto interessante da teoria de Bazin: a duração. Tomando de empréstimo o termo central da filosofia de Henri Bergson, o crítico de cinema nos dá algo de muito interessante: o filme realista deve conseguir captar esta duração do mundo. Será que todo filme que se propõe realista porque coloca dois atores muito bons conversando torna-se por isso realista? Não é porque dois personagens trocam farpas em cena que isso vá ser ser realista. Nem porque o espectador reconhece aqueles sentimentos expressados em tela. Mais do que isso, é necessária que haja a interação com a câmera.

É a câmera que vai buscar esta duração presente no mundo e expressá-la no cinema. Isso por meio do plano-sequência em que se filma o fluxo de acontecimentos em seu desenrolar natural. Richard Linklater faz isso. Eric Rohmer também. E nem todo cineasta que se propõe a colocar a câmera em frente a seus personagens ou a segui-los por um longo tempo sem cortes que consegue expressar a tal “duração dos fatos”. Sua cena pode simplesmente ficar longa e chata ao invés de envolvente.

Chamando Richard Linklater para dentro desta argumentação retornamos ao primeiro texto desta série, A palavra no cinema. O cineasta estadunidense faz uma provocação muito interessante em seus filmes. Seus personagens falam muito e o diretor os deixa a vontade para que possa conversar e se expressar. A câmera não irá perturbá-los, nem a montagem irá quebrar o desenrolar de suas ações. E ainda assim não serão as palavras que contarão a história. Estas surgiram em cena de modo desconexo, os personagens poderão falar do que lhes será preferível – tal como fazem os personagens de Tarantino – sem ligação com aquele momento presente que vivem ou com o sentimento que aflora. Estará impresso nas imagens o sentimento entre aqueles personagens ou o sentimento dos personagens por si. Em Antes do amanhecer está lá na cena da cabine de música ou mesmo no gesto imperceptível de Jesse querendo ver o rosto de Celine e interrompendo seu ato de retirar o cabelo dela de cima do rosto. São estes gestos, mais que as falas, que traduzem o sentimento que nasce entre os dois personagens.


A palavra pode, sim, fazer parte das imagens, mas em momentos muito particulares, como no citado filme de John Ford. Ela, mesmo não sendo material, consegue transbordar para o exterior e fazer-se presente na imagem. Mas não são todas as obras que conseguem isso. O realismo do cinema pode ser buscado por uma obra que preze pelo falatório, e nem por isso estará lá uma grande obra. Como dissemos no primeiro texto, não adianta colocar um ator sentado em frente a uma câmera lendo Hamlet que ainda assim será um filme ruim. É necessário que parta do cineasta a motivação que o leva a contar aquela história no cinema, ou seja, por meio de imagens.

Nesse sentido a abertura do ultimo filme de Béla Tarr, O cavalo de Turim, é muito significativa. Nela Tarr coloca um narrador para contar determinado episódio na vida do filósofo Friedrich Nietzsche. O narrador nos oferece todos os elementos para que possamos compor a cena, lugar, tempo histórico, personagens..., mas a imagem nos é subtraída. O que temos é somente uma tela em preto e a voz do narrador. Com o auxílio de nossa própria imaginação construímos a tal cena, e por isso se faz desnecessária a presença de uma figura em quadro nos contando a tal fábula. Semelhante aspecto se encontra em Era uma vez na Anatólia. Os personagens conversam dentro do carro, mas não precisamos vê-los. Vemos somente os carros que cortam a paisagem da Anatólia. Em determinado momento, os carros parados, as pessoas do lado de fora, e um dos personagens decide contar uma história. Ouvimos suas palavras, mas não vemos seu rosto se mover. Ou vemos o rosto de mais ninguém se mover.


A palavra ganhou bastante espaço no cinema depois do surgimento do cinema falado, mas isso não quer dizer que um filme deva ser feito somente baseado nas palavras falada ou escrita. Quando o entendimento ficar mais complexo nas imagens, é necessário o uso das palavras, mas caso contrário não. Era uma vez na Anatólia nos mostra isso. O “era uma vez” do título que nos remete ao ato de contar uma história nos faz pensar nos diferentes modos de contar uma história que aparecem no filme. Existe aquela história principal que é contada por meio da câmera e outras menores que são contadas pelos personagens em suas conversas. A fala, neste momento, adquire um sentido especial: ele pode servir de adendo ao entendimento daquilo que nos mostra a câmera.

Era uma vez na Anatólia se torna muito semelhante a No tempo das diligências. Ambos os filmes fazem a palavra incorporar as imagens porque estaria ali presente um sentido nesta relação. Mas a palavra não possuiria o maior poder no filme em nenhum dos dois casos. Ela torna-se subalterna ao que é mostrado. Ainda assim é parte constituinte da imagem.

Um filme deve ser construído primando por suas imagens. O cinema é uma arte de imagens e assim deve ser pensado e feito. O que dizem os personagens não deve ser mais que um adendo àquilo que é mostrado. 



[este texto faz parte da série a palavra no cinema publicada aqui no blog em novembro de 2014. Este texto é precedido por A palavra no cinema e A palavra e o invisível]

terça-feira, 11 de novembro de 2014

A palavra no cinema


Com o passar dos tempos o homem desenvolveu e aperfeiçoou suas formas linguísticas, escritas e faladas. Hoje é muito mais simples nos expressarmos por meio da linguagem do que por meio de imagens. Existem determinados conceitos que são de extrema dificuldade de serem expressos (e entendidos) se não o for por meio da escrita ou da fala - e nem pensamos em fazê-lo de outra forma. O desenvolvimento da filosofia, por exemplo, se dá exatamente sobre este solo. Muitos dos embates filosóficos são desenvolvidos tomando como ponto de partida uma questão linguística, desenvolvendo-a em busca de um correspondente realista, no mundo.

Aqui se trata de falar de cinema. Neste caso, a linguagem escrita (em especial) exerce papel principal num quesito posterior do cinema: a teoria. Nela são desenvolvidas questões sobre os meios estéticos representativos e ontológicos do cinema que seriam de particular complexidade se não tivéssemos desenvolvido uma linguagem tão sofisticada quanto esta que utilizamos. Imagine se ainda nos servíssemos de caracteres de comunicação como de nossos antepassados que desenhavam nas paredes das cavernas: talvez não tivéssemos avançando tanto intelectualmente e nossa compreensão de mundo seria muito mais limitada.

Mas ainda assim o homem sempre buscou uma formulação imagética em que fosse desnecessário o uso linguístico para que fosse compreendido. É o caso, por exemplo, da pintura. Qualquer homem, de qualquer lugar do mundo, que fale a língua que for, terá compreensão semelhante a de outros homens acerca de determinada pintura – conquanto ela não seja abstrata. Ao nos depararmos com um quadro que apresente um homem sentado numa cadeira, compreendemos o que ele faz, o cenário em que está. E provavelmente compreenderemos até mesmo a significação de sua expressão facial.


No caso do cinema, em particular em seu período mudo, viu-se como uma das principais questões guiadoras desta nova forma artística era a de, como nas artes plástica, se libertar da palavra escrita para que pudesse se expressar somente por meio das imagens. Como é de conhecimento geral, no período do cinema mudo aqueles pontos mais complicados de serem expressos na imagem (como a fala dos personagens) apareciam em letreiros que interrompiam o fluxo contínuo da ação que se desenrolava. Era um processo pouco criativo do qual os cineastas cada vez mais tentaram se desvencilhar até o fim do período mudo.

Neste momento a palavra era vista como sendo inimiga do cinema. Era uma saída fácil que fazia o cineasta fugir de um meio mais criativo, e por consequência mais artístico. Era a transição de um pensamento, de uma ideia, para as imagens. Por meio de sobreposições e cortes que davam significação a determinadas cenas, o período mudo foi um dos momentos de maior efervescência criativa da história do cinema. O cineasta que se contentava a se curvar aos letreiros era visto como pouco artístico. Daí surge a genialidade de uma figura como Murnau e Chaplin. Ambos tentavam fazer seus filmes com o mínimo possível de letreiros, e ainda assim seus filmes são compreensíveis e envolventes, souberam reconhecer a essência da forma artística com a qual trabalhavam.

Mas no meio do caminho surge o cinema falado, e com ele todas as aspirações de um “cinema puro” – que seria um cinema feito sem a influência das outras artes, feito partindo de suas próprias particularidades – desmoronam. Os atores que, até então, tinham que se valer de inúmeras caretas para se fazerem entender, agora podiam resolver seus problemas falando algumas linhas escritas no roteiro. O cinema falado foi visto como o fim de um cinema poético, artístico, por grande parte dos entusiastas do cinema mudo. Mas até mesmo estes se curvaram às falas dos atores. Mesmo Chaplin que tentou o máximo que pôde manter acesa a chama da criatividade de outrora.


Com o cinema falado veio a preguiça. O cineasta não precisa mais pensar um meio de mostrar que o personagem está angustiado, ele simplesmente simplesmente o faz dizer que está angustiado. O espectador comum não se preocupa com esta questão porque está mais interessado na história que se desenrola. É assim que surgem os filmes de “teste de cadeira”, em que os personagens passam o filme inteiro a conversar, sentados. O espectador tem a impressão de ter visto um bom filme porque estes se assemelham muito com suas próprias vidas em que os problemas são resolvidos por meio de conversas, sem muitas ações. O cotidiano os acostuma a esta falta de inventividade do filme.

A palavra seria, assim, um conteúdo estranho ao mundo cinematográfico, que tende ao imagético. Um filme de ficção deve se resolver por meio de suas imagens, e é nesta inventividade que se encontra o traço mais característico de um cineasta-artista. Carlitos nunca precisou falar para ser engraçado. Nem mesmo em O grande ditador, quando as piadas eram todas feitas por meio dos gestos dos atores e não por falas engraçadinhas. O mesmo se dá com os filmes de Hitchcock. Ao entrevistá-lo, foi precisamente este o ponto que mais chamou atenção de Truffaut quanto à obra do mestre do suspense: não são necessárias palavras para a compreensão de seus filmes. Mesmo um espectador que não fale o idioma do filme seria capaz de entendê-lo somente pelo que se apresenta na tela.

É estranho que com o passar do tempo a palavra tenha ganho tanta atenção no cinema. Filmes que não são bons, que não possuem qualquer inventividade no modo de contar uma história (não necessariamente inventando algo de novo, pode usar as velhas fórmulas, contanto que seja criativo ao apresentar a história, abolindo o simples campo/contracampo das cenas de diálogos) são tidos como grandes obras de arte. Mas o que eles têm, na verdade, é um grande texto. Será esta característica o suficiente para que consideremos um filme como uma obra de arte? Não seria esta uma particularidade da literatura ou, quem sabe, do teatro?


A excelência do fazer cinematográfico encontra-se exatamente neste “como” contar a história, e não no simples “contar uma história”. É aí que se encontra, por exemplo, a genialidade de Godard ao filmar Acossado. A história de seu filme-debute é extremamente banal, semelhante a de tantos outros filmes, mas como Godard resolve conta-la é diferente de tudo o que se havia tentado fazer até então. Temos em frente a nossos olhos um filme que baila ao som do movimento da película que corre dentro da câmera: seus falsos raccord e seus planos-sequência são memoráveis.

Este ato de deixar a palavra escrita e falada de lado é um conhecimento que provém, em parte, dos curiosos de cinema que iam à cinemateca francesa conhecer a cinematografia de todo mundo. Os filmes nem sempre precisavam ser legendados para que eles assistissem, mesmo que não soubessem o idioma nele falado. Não necessitamos compreender espanhol para poder compreender a obra de Picasso. De sentir algo quando nos deparamos com ela. O mesmo deve acontecer com um filme. Aquele olhar choroso de Nana para a tela de cinema em Viver a vida, também de Godard, traduz isso. Se virmos uma pessoa chorando, de imediato nos simpatizamos por ela. Um bom cineasta deve saber traduzir este sentimento por meio das imagens de seu filme e não coloca-las na boca de algum ator. As lágrimas possuem mais valor que as palavras: "estou triste".

Alguns anos atrás um filme me chamou atenção. Wall-e era o mais novo lançamento da Pixar, e um dos lançamentos mais comentados do ano. A proposta é interessante, no aspecto fílmico. Como pode um cineasta desenvolver um filme centrado num robô solitário que não fala? O filme deveria se desenvolver todo por meio de imagens, dos atos limitados de um robô que não tinha articulações ou músculos expressivos como os que possui o homem. Ainda assim – talvez por se tratar de um filme infantil – os cineastas caem no lugar-comum de colocar alguns telões explicando o que até então as imagens poderiam por si só terem deixado implícito, esforçando o trabalho cooperativo do espectador com o filme.


Existe ainda uma saída que fora encontrada nos tempos do cinema mudo: o jornal. Era posto um personagem em cena lendo um jornal que logo seria posto em close-up quase como um letreiro. Mas não se tratava esta cena como sendo um letreiro, mas como uma saída inventiva. Na verdade, trata-se de uma trapaça. Um jornal em close-up é um letreiro, são palavras escritas sendo utilizadas para explicar alguma parte do filme de grande complexidade para ser executada por meio de imagens – ou muito longa. É escolhido o menor caminho em direção à saída.

Novamente, não podemos tomar um filme como uma obra artística por sua trama e pelo diálogo travado por seus personagens. Como o diretor se esforça para resolver os problemas da história que tem em mãos? Neste sentido, Hitchcock era gênio. Genialidade que provinha do fato de pensar seu filme em imagens e não em acontecimentos. Quando o cineasta se bate com o segundo ele deixa o primeiro (que é a essência do cinema) de lado. Os acontecimentos podem ser resolvidos sem qualquer inventividade. Ao invés de colocar um ônibus pegando fogo numa rua da cidade o cineasta prefere colocar um personagem comentado o fato.

O roteiro pode ser muito bem estruturado, muito bem escrito, mas não servir um bom filme. Poderíamos filmar um homem lendo Hamlet por uma hora e meia sentado em uma cadeira. O texto é maravilhoso, o filme ruim. Parte da inventividade do diretor saber traduzir Hamlet em imagens, sem que necessariamente se retire o belo texto de Shakespeare - e assim justifique a sua motivação de transformá-lo em filme. Mas como fazê-lo? Cabe a um grande artista pensá-lo.


É possível escrever por meio de imagens e se fazer entendido. É possível fazer passar uma ideia (Eisenstein, Vertov) ou uma emoção (Murnau, Hitchcock) sem o uso de palavras. Daí a ideia de que o cinema possui uma linguagem própria – se ele possui uma linguagem própria não seria necessária outra, como os livros que geralmente não necessitam de ilustrações para se fazer entendido. Daí, também, intitularmos este texto por "a palavra no cinema", já que na sétima arte existem dois tipos de linguagem. Concluímos que a palavra é uma substância estranha dentro do cinema.

Isto em nada impede o uso das palavras por parte dos atores. Hitchcock fez grande parte de seus filmes durante o período falado, mas nem por isso ele se curvou às palavras para contar suas histórias. É aceita a palavra no cinema, contanto que ela não substitua a imagem. O realismo almejado pelos cineastas do cinema falado se dá com a presença da palavra, mas isto não significa que seus filmes devam ficar submissos ao uso da palavra escrita ou falada. É o que nos mostra Richard Linklater em Antes doamanhecer: o filme é constituído de longas conversas, mas nem por isso a paixão que cresce entre os personagens passa despercebida pela imagem. Muito pelo contrário. Os personagens não falam de seu desejo um pelo outro até o fim do filme, e quando chegamos a este momento já sabemos tudo aquilo que eles externam por meio das falas. A cena em que o casal escuta um disco dentro da cabine da loja de música é um exemplo do sucesso do filme enquanto filme (cinema).

O cinema é a arte das imagens em movimento e deve ser pensado e feito como tal.



[Este texto faz parte da série a palavra no cinema, publicada aqui no blog em novembro de 2014. Seguem este texto: 
A palavra e o invisível
A palavra e seu império]

[as imagens: 1- Acossado (Godard); 2 - Encouraçado Potemkin (Eisenstein); 3 - Janela indiscreta (Hitchcock); 4 - Luzes da cidade (Chaplin); 5 - Aurora (Murnau); 6 - Antes do amanhecer (Linklater).]

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Clouzot não é o Hitchcock francês!


Tornou-se muito comum nos últimos tempos fazer a afirmação de que o cineasta Henri-Georges Clouzot é uma versão francesa de Alfred Hitchcock. Ambos os cineastas apresentam uma qualidade inegável em seus trabalhos, de assustar ou manter sob constante tensão quem assiste a seus filmes. Mas estes dois cineastas possuem características radicalmente diferentes. São tão diferentes que os críticos da Cahiers du Cinema (entre eles François Truffaut e Eric Rohmer) negavam Clouzot e louvavam Hitchcock. Esta diferença se apresenta na forma como seus filmes são feitos.

Hitchcock é um artesão. Seus filmes são sempre feitos visando um fim: a imagem. O cineastas inglês não poupava recursos, nem se preocupava com o que pensariam seus atores, quando se punha na jornada de contar uma história por meio das imagens - essência do cinema, como ele mesmo afirmou em entrevista dada ao já citado fã-crítico-cineasta François Truffaut. Hitchcock começou a fazer cinema quando Murnau o elevava (ele, o cinema) ao seu maior grau artístico. Murnau, autor de Fausto e Aurora, alcançara o nível poético do dispositivo cinematográfico como poucos; e Hitchcock, como fiel seguidor deste modelo, não se furtou de tentar o mesmo. Mas ao invés de encontrar uma poesia romantizada, como Murnau, Hitchcock tenta encontrá-la no suspense: o lado poético do medo.


Clouzot, por outro lado, é um cineasta que não preza tanto pelas imagens - e talvez por isso nunca tenha se tornado um cineasta tão aclamado quanto Hitchcock. Seu suspense é mais contido que o produzido pelo inglês. Em As diabólicas, o terror do espectador surge junto com o da protagonista. Seus olhos esbugalhados e sua fuga do desconhecido são apresentados para um espectador que desconhece o que está a acometer a personagem. Em Clouzot a tensão é criada tanto pela nossa ignorância quanto pela ignorância da personagem. Em Hitchcock é porque sabemos o que se abate sobre o personagem que sentimos medo. Em Psicose, quando Antony Perkins  entra em sua mansão, ele desconhece o posicionamento de Vera Miles - sua presa - no interior da casa. Mas nós sabemos que ela está debaixo da escada. É por sabermos que o perigo está próximo que tememos pela segurança de nosso herói.

Hitchcock desenvolve uma base teórica para os seus filmes e o reproduz na maior parte deles como se estivesse a seguir uma cartilha escrita por ele mesmo. Já Clouzot não possui uma visão de seu cinema tão bem determinada quanto a de Hitchcock,  preferindo adequar-se ao formato que acreditasse ser o melhor para seu filme - Hitchcock adequa a história ao seu olhar. A afirmação feita no título deste texto diz respeito a desmistificar a generalização do suspense hitchcockiano em todo e qualquer suspense, ou em todo e qualquer autor que filme suspense. Grande parte daquilo que Clouzot faz em As diabólicas e O salário do medo não seriam considerados como suspense pelo mestre inglês do gênero. Mas por não coadunar com Hitchcock não quer dizer que Clouzot não fizesse filmes de suspense. Eles simplesmente não são filmes hitchcockianos. Porque Clouzot não é o Hitchcock francês!