Com o passar dos tempos o homem desenvolveu e aperfeiçoou suas formas linguísticas, escritas e faladas. Hoje é muito mais simples nos expressarmos por meio da linguagem do que por meio de imagens. Existem determinados conceitos que são de extrema dificuldade de serem expressos (e entendidos) se não o for por meio da escrita ou da fala - e nem pensamos em fazê-lo de outra forma. O desenvolvimento da filosofia, por exemplo, se dá exatamente sobre este solo. Muitos dos embates filosóficos são desenvolvidos tomando como ponto de partida uma questão linguística, desenvolvendo-a em busca de um correspondente realista, no mundo.
Aqui
se trata de falar de cinema. Neste caso, a linguagem escrita (em especial)
exerce papel principal num quesito posterior do cinema: a teoria. Nela são
desenvolvidas questões sobre os meios estéticos representativos e ontológicos
do cinema que seriam de particular complexidade se não tivéssemos desenvolvido
uma linguagem tão sofisticada quanto esta que utilizamos. Imagine se ainda nos servíssemos
de caracteres de comunicação como de nossos antepassados que desenhavam nas
paredes das cavernas: talvez não tivéssemos avançando tanto intelectualmente e nossa compreensão de mundo seria muito mais limitada.
Mas
ainda assim o homem sempre buscou uma formulação imagética em que fosse desnecessário
o uso linguístico para que fosse compreendido. É o caso, por exemplo, da
pintura. Qualquer homem, de qualquer lugar do mundo, que fale a língua que for,
terá compreensão semelhante a de outros homens acerca de determinada pintura – conquanto ela não seja
abstrata. Ao nos depararmos com um quadro que apresente um homem sentado numa
cadeira, compreendemos o que ele faz, o cenário em que está. E provavelmente
compreenderemos até mesmo a significação de sua expressão facial.
No
caso do cinema, em particular em seu período mudo, viu-se como uma das principais
questões guiadoras desta nova forma artística era a de, como nas artes
plástica, se libertar da palavra escrita para que pudesse se expressar somente
por meio das imagens. Como é de conhecimento geral, no período do cinema mudo
aqueles pontos mais complicados de serem expressos na imagem (como a fala dos
personagens) apareciam em letreiros que interrompiam o fluxo contínuo da ação
que se desenrolava. Era um processo pouco criativo do qual os cineastas cada vez
mais tentaram se desvencilhar até o fim do período mudo.
Neste
momento a palavra era vista como sendo inimiga do cinema. Era uma saída fácil
que fazia o cineasta fugir de um meio mais criativo, e por consequência mais artístico.
Era a transição de um pensamento, de uma ideia, para as imagens. Por meio de
sobreposições e cortes que davam significação a determinadas cenas, o período
mudo foi um dos momentos de maior efervescência criativa da história do cinema.
O cineasta que se contentava a se curvar aos letreiros era visto como pouco
artístico. Daí surge a genialidade de uma figura como Murnau e Chaplin. Ambos
tentavam fazer seus filmes com o mínimo possível de letreiros, e ainda assim
seus filmes são compreensíveis e envolventes, souberam reconhecer a essência da forma artística com a qual trabalhavam.
Mas
no meio do caminho surge o cinema falado, e com ele todas as aspirações de um “cinema
puro” – que seria um cinema feito sem a influência das outras artes, feito partindo de
suas próprias particularidades – desmoronam. Os atores que, até então, tinham
que se valer de inúmeras caretas para se fazerem entender, agora podiam
resolver seus problemas falando algumas linhas escritas no roteiro. O cinema
falado foi visto como o fim de um cinema poético, artístico, por grande parte
dos entusiastas do cinema mudo. Mas até mesmo estes se curvaram às falas dos
atores. Mesmo Chaplin que tentou o máximo que pôde manter acesa a chama da
criatividade de outrora.
Com
o cinema falado veio a preguiça. O cineasta não precisa mais pensar um meio de mostrar que o personagem está angustiado, ele simplesmente simplesmente o faz dizer que está angustiado. O espectador comum
não se preocupa com esta questão porque está mais interessado na história que
se desenrola. É assim que surgem os filmes de “teste de cadeira”, em que os
personagens passam o filme inteiro a conversar, sentados. O espectador tem a
impressão de ter visto um bom filme porque estes se assemelham muito com suas
próprias vidas em que os problemas são resolvidos por meio de
conversas, sem muitas ações. O cotidiano os acostuma a esta falta de inventividade do filme.
A
palavra seria, assim, um conteúdo estranho ao mundo cinematográfico, que tende
ao imagético. Um filme de ficção deve se resolver por meio de suas imagens, e é
nesta inventividade que se encontra o traço mais característico de um cineasta-artista. Carlitos nunca precisou falar para ser engraçado. Nem mesmo em O grande ditador, quando as piadas eram
todas feitas por meio dos gestos dos atores e não por falas engraçadinhas. O
mesmo se dá com os filmes de Hitchcock. Ao entrevistá-lo, foi precisamente este
o ponto que mais chamou atenção de Truffaut quanto à obra do mestre do
suspense: não são necessárias palavras para a compreensão de seus filmes. Mesmo
um espectador que não fale o idioma do filme seria capaz de entendê-lo somente
pelo que se apresenta na tela.
É
estranho que com o passar do tempo a palavra tenha ganho tanta atenção no
cinema. Filmes que não são bons, que não possuem qualquer inventividade no modo
de contar uma história (não necessariamente inventando algo de novo, pode usar
as velhas fórmulas, contanto que seja criativo ao apresentar a história, abolindo o
simples campo/contracampo das cenas de diálogos) são tidos como grandes obras de arte. Mas o que eles
têm, na verdade, é um grande texto. Será esta característica o suficiente para
que consideremos um filme como uma obra de arte? Não seria esta uma
particularidade da literatura ou, quem sabe, do teatro?
A
excelência do fazer cinematográfico encontra-se exatamente neste “como” contar a história, e não no
simples “contar uma história”. É aí
que se encontra, por exemplo, a genialidade de Godard ao filmar Acossado. A história de seu filme-debute
é extremamente banal, semelhante a de tantos outros filmes, mas como Godard resolve conta-la é diferente de tudo o
que se havia tentado fazer até então. Temos em frente a nossos olhos um filme
que baila ao som do movimento da película que corre dentro da câmera: seus falsos raccord e seus planos-sequência são memoráveis.
Este
ato de deixar a palavra escrita e falada de lado é um conhecimento que provém, em parte, dos curiosos de cinema que iam à cinemateca francesa conhecer a cinematografia
de todo mundo. Os filmes nem sempre precisavam ser legendados para que eles
assistissem, mesmo que não soubessem o idioma nele falado. Não necessitamos
compreender espanhol para poder compreender a obra de Picasso. De sentir algo
quando nos deparamos com ela. O mesmo deve acontecer com um filme. Aquele olhar
choroso de Nana para a tela de cinema em Viver
a vida, também de Godard, traduz isso. Se virmos uma pessoa chorando, de
imediato nos simpatizamos por ela. Um bom cineasta deve saber traduzir este
sentimento por meio das imagens de seu filme e não coloca-las na boca de algum
ator. As lágrimas possuem mais valor que as palavras: "estou triste".
Alguns
anos atrás um filme me chamou atenção. Wall-e
era o mais novo lançamento da Pixar, e um dos lançamentos mais comentados do
ano. A proposta é interessante, no aspecto fílmico. Como pode um cineasta
desenvolver um filme centrado num robô solitário que não fala? O filme deveria
se desenvolver todo por meio de imagens, dos atos limitados de um robô que não
tinha articulações ou músculos expressivos como os que possui o homem. Ainda
assim – talvez por se tratar de um filme infantil – os cineastas caem no
lugar-comum de colocar alguns telões explicando o que até então as imagens
poderiam por si só terem deixado implícito, esforçando o trabalho cooperativo
do espectador com o filme.
Existe
ainda uma saída que fora encontrada nos tempos do cinema mudo: o jornal. Era posto
um personagem em cena lendo um jornal que logo seria posto em close-up quase
como um letreiro. Mas não se tratava esta cena como sendo um letreiro, mas como
uma saída inventiva. Na verdade, trata-se de uma trapaça. Um jornal em close-up
é um letreiro, são palavras escritas sendo utilizadas para explicar alguma
parte do filme de grande complexidade para ser executada por meio de imagens –
ou muito longa. É escolhido o menor caminho em direção à saída.
Novamente,
não podemos tomar um filme como uma obra artística por sua trama e pelo diálogo travado por seus personagens. Como o diretor se esforça para resolver os problemas da
história que tem em mãos? Neste sentido, Hitchcock era gênio. Genialidade que
provinha do fato de pensar seu filme em imagens e não em acontecimentos. Quando
o cineasta se bate com o segundo ele deixa o primeiro (que é a essência do
cinema) de lado. Os acontecimentos podem ser resolvidos sem qualquer
inventividade. Ao invés de colocar um ônibus pegando fogo numa rua da cidade o
cineasta prefere colocar um personagem comentado o fato.
O
roteiro pode ser muito bem estruturado, muito bem escrito, mas não servir um
bom filme. Poderíamos filmar um homem lendo Hamlet
por uma hora e meia sentado em uma cadeira. O texto é maravilhoso, o filme
ruim. Parte da inventividade do diretor saber traduzir Hamlet em imagens, sem
que necessariamente se retire o belo texto de Shakespeare - e assim justifique a sua motivação de transformá-lo em filme. Mas como fazê-lo? Cabe
a um grande artista pensá-lo.
É
possível escrever por meio de imagens e se fazer entendido. É possível fazer
passar uma ideia (Eisenstein, Vertov) ou uma emoção (Murnau, Hitchcock) sem o
uso de palavras. Daí a ideia de que o cinema possui uma linguagem própria – se ele
possui uma linguagem própria não seria necessária outra, como os livros que geralmente não necessitam de ilustrações para se fazer entendido. Daí, também, intitularmos este texto por "a palavra no cinema", já que na sétima arte existem dois tipos de linguagem. Concluímos que
a palavra é uma substância estranha dentro do cinema.
Isto
em nada impede o uso das palavras por parte dos atores. Hitchcock fez grande
parte de seus filmes durante o período falado, mas nem por isso ele se curvou
às palavras para contar suas histórias. É aceita a palavra no cinema, contanto que ela não substitua a imagem. O realismo almejado pelos cineastas do
cinema falado se dá com a presença da palavra, mas isto não significa que seus
filmes devam ficar submissos ao uso da palavra escrita ou falada. É o que nos
mostra Richard Linklater em Antes doamanhecer: o filme é constituído de longas conversas, mas nem por isso a
paixão que cresce entre os personagens passa despercebida pela imagem. Muito
pelo contrário. Os personagens não falam de seu desejo um pelo outro até o fim do filme, e quando chegamos a este momento já sabemos tudo
aquilo que eles externam por meio das falas. A cena em que o casal escuta um disco dentro da cabine da loja de música é um exemplo do sucesso do filme
enquanto filme (cinema).
O
cinema é a arte das imagens em movimento e deve ser pensado e feito como tal.
[Este texto faz parte da série a palavra no cinema, publicada aqui no blog em novembro de 2014. Seguem este texto:
A palavra e o invisível
A palavra e seu império]
[as imagens: 1- Acossado (Godard); 2 - Encouraçado Potemkin (Eisenstein); 3 - Janela indiscreta (Hitchcock); 4 - Luzes da cidade (Chaplin); 5 - Aurora (Murnau); 6 - Antes do amanhecer (Linklater).]
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