Mostrando postagens com marcador Charles Chaplin. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Charles Chaplin. Mostrar todas as postagens

quinta-feira, 15 de julho de 2021

Centenário de O Garoto, de Charles Chaplin

 

originalmente publicado em A terra é redonda.

republicado em Rede Brasil Atual

            Esta será uma década para comemorar muitos centenários queridos ao cinema, pretexto para rever filmes que assistimos mesmo sem precisar de pretexto, mas os achamos para fazer das novas visitas aos clássicos uma obrigação. Ano passado foi a vez de Caligari, de Wiene, ano que vem será a vez de Nosferatu, de Murnau. Encurralado entre estas duas sinfonias do horror “um filme com um sorriso – e talvez uma lágrima” (o talvez é puramente retórico, porque a lágrima é certa). A década de 1920 foi definitiva para mostrar o potencial artístico desta mídia nascida das fábricas. Apesar disso, se havia alguém no universo cinematográfico que já lograva dos louros da glória do reconhecimento de seu gênio artístico, esse alguém era Charles Chaplin. Neste 2021 celebramos o centenário de O Garoto como desculpa para rever um filme que não deixamos de rever ao longo de nosso percurso pela cinefilia.

            Para um acadêmico como eu, os traços constituindo a genialidade de Chaplin já se encontravam por todos os cantos na literatura teórica e crítica anterior a O Garoto. Ainda assim, é interessante encontrar em The Photoplay um professor de psicologia da universidade de Harvard – portanto, um intelectual bem reconhecido entre seus pares – dando seus primeiros passos pelo cinema e já em 1915 – ou seja, no segundo ano de Chaplin como artista de cinema – reconhecer o diferencial e a superioridade deste criador de filmes. Como bem apontará André Bazin décadas depois de Munsterberg – autor de The Photoplay –, sem o ter lido, este é o período no cinema de Chaplin das grandes gags, mas de um Carlitos ainda pouco desenvolvido em sua psicologia.

            A psicologia de Carlitos se desenvolve em concomitância à segurança autoral de Chaplin, a cada vez que explore contradições sociais e políticas tendo como ator este dândi meio cavalheiro meio vagabundo. Por sinal, este traço de Chaplin realizador rendeu um belo filme revisitando a obra chapliniana no ano passado, Charlie Chaplin, le génie de la liberté, de Yves Jeuland.

Não só a política encorpava a persona das telas deste criador, também seus traços biográficos ajudavam a pintar cenários e situações, movendo um Carlitos inicialmente mais próximo dos hotéis de luxo para os bairros pobres e os centros comerciais das cidades, lugares onde um Vagabundo como ele cada vez mais incorporava seu papel de marginal pronto para tomar o centro da ação.

            Assim O Garoto costuma ser lembrado, como esta grande peça onde a crítica social e a biografia de seu realizador entram em conluio. Eis uma boa fórmula para a justificativa de Chaplin como um autor, como gerações mais tarde cravarão. Todos os títulos são perfeitamente justos. Os temas do filme são muitos, a luta de classes, a maternidade, o papel da segurança do Estado, mas também é interessante notar a maestria do tratamento dado a tantos assuntos pesados de modo breve e que em momento algum soa “pregatório”. Pelo contrário, o fluxo da história trazendo um evento seguido de outro cria uma comoção continuada que transforma seus temas em assunto universal. Compreendemos todos os choques não porque os entendemos, mas porque os sentimos, o entendimento fica para um momento posterior de debate em sites de internet, em cadeiras de bar, ou em debates de sala de aula.

            Ilustrativo de tudo isto é o princípio do filme, narrando a história que levará ao abandono da criança. A Mãe, numa performance tocante da parte de Edna Purviance, aparece primeiro com seu bebê nos braços atrás das grades. Ela não estava presa e não se trata de uma prisão, mas a maternidade voltada a mulheres pobres e solteiras como ela carrega a atmosfera de prisão para mulheres delinquentes cujo crime é a maternidade. Passando em frente a uma igreja numa peregrinação sem rumo, a Mãe vê uma festa celebrando um matrimônio. Ela se entristece com a cena, seu olhar é análogo ao de pinturas de santas, e isto não passa despercebido de Chaplin que monta uma composição mostrando por meio do vitral da igreja às costas da Mãe a sua santidade pelo milagre de ter trazido uma vida ao mundo. Soa demasiado cristã esta última sentença? De fato, contudo o uso de imagens cristãs será recorrente neste filme. Uma das mais famosas é o corte entre a Mãe e um Cristo carregando a cruz, sequência que poderíamos apontar como predecessora ao corte das ovelhas/trabalhadores em Tempos modernos, tão frequentemente vinculado aos métodos de montagem de Eisenstein.

            A história de um casal quebrado, cujo amor resultou na criança que a Mãe agora carrega nos braços, é sintetizada por alguns momentos breves que não dão motivos para o rompimento do casal, apenas demarcam sentimentos de uma paixão ainda existente mantida em silêncio, seguido por uma sensação melancólica. O pai é um pintor pobre, trabalhando em algum sótão em ruínas. Ainda mantém a foto da mulher sobre a lareira como uma lembrança de tempos melhores. Tentando acender um fumo, acidentalmente deixa a fotografia cair na brasa. O papel se queima, a lembrança da paixão foi maculada. Como se não houvesse mais precisão para o presente, como se a própria memória tivesse sido apagada a fogo, o jovem pintor lança o papel de volta às chamas para que desta vez seja de fato consumido, retornando para sua banalidade presente desprovido de presença feminina.

            Alongo a contemplação da história deste casal porque estes momentos marcam um Chaplin exercitando seu talento dramático, o que será levado ainda mais adiante dois anos depois, quando lançará A Woman of Paris (no Brasil lançado com o título Casamento ou luxo). Os motivos acerca da união destas personagens são quase nulos. Os entendemos, fora da tela, como uma espécie de extensão da representação dos pais de seu autor. Também pai e mãe de Chaplin eram artistas, também não viviam juntos. Mas em O Garoto, o abandono do bebê acarreta um sucesso de sabor amargo para ambos – e um prato farto para leituras psicanalíticas. Num encontro da alta sociedade, já num momento mais avançado do filme, Chaplin faz estas duas personagens se encontrarem. Não existem acusações aqui, apenas arrependimentos e saudades. As perguntas nascem em nossa mente de espectador: saberia ele que ela estava grávida? Teria ele a abandonado por saber que ela estava grávida? Teria ele se recusado a casar-se com ela? Todas as perguntas ficam para o campo da especulação. Durante a projeção do filme o que melhor nos serve é o diálogo de emoções travado entre duas personagens tão conflituosas.

            Então, a Mãe deixa o bebê dentro de um carro na frente de uma mansão na expectativa de que os ricos moradores do lugar tomem a criança como sua. Numa reviravolta, dois bandidos típicos dos filmes de Chaplin desde os anos de aprendizagem nos estúdios de Mack Sennett, aparecem. Roubam o carro sem se dar conta da presença da criança no banco traseiro. Param num bairro pobre para fumar, quando escutam o choro da criança vindo do carro. Este é um daqueles momentos que justificam a troca de terminologia de “cinema mudo” para “cinema silencioso”. Apesar do choro não ser escutado pela plateia, ele faz parte da imagem-som, como diria Luiz Manzano. Os cortes da imagem da criança chorando para a imagem dos bandidos reagindo ao choro adiciona uma faixa de áudio ao filme, mesmo na ausência de traquitana para gravar o choro da criança.

            A introdução do filme marca a força da montagem na criação desta história. A maquiagem pesada dos bandidos, tentando criar cavidades escuras em seus rostos, era um aspecto empregado pelos cômicos ao colocar tal tipo nos filmes. Acontece que a imagem dos bandidos abandonando a criança num beco qualquer, longe da mãe, em meio a latas de lixo, surge carregada de um senso angustiante quando seguindo as imagens da Mãe em desespero voltando para recuperar o filho deixado no carro e descobrindo que ele foi levado, que seu paradeiro não voltará a ser encontrado. Diferente do que acontecerá assim que for apresentada a personagem de Carlitos, que virá abolindo este uso mais direto da montagem, a introdução dramática de O Garoto se baseia principalmente no diálogo emocional entre dois polos. A chegada de Carlitos em cena é a passagem para o plano aberto, dando espaço para a composição de quadro e movimento dentro do cenário. Afinal, Carlitos é um bailarino.

            O plano mostra bem um beco sórdido, de terra batida e lixo pelo chão. Apresentando a dinâmica do perigo do fora de quadro, lixo cai do alto do prédio em direção à rua. Carlitos vê o acontecido e contorna o montinho de lixo recém-formado, continuando a caminhada com toda a sua graça. Inesperado para ele, outra janela mais a frente, também fora de quadro, se livrará do lixo diário atirando-o à rua, agora acertando em cheio nosso velho conhecido. Parado entre lixeiras, limpando o lixo com o qual foi atacado, o Vagabundo descobre um bebê abandonado. A dinâmica até aqui foi clara, o inesperado vem de cima. Assim, quando Carlitos toma o bebê nos braços não pode deixar de olhar para cima, como se alguém tivesse misturado a criança acidentalmente com o lixo.

            O que fazer com a criança? O novo Carlitos, de profundidade e complexidade psicológica, não é capaz de simplesmente deixá-la onde achou. Procura alguém com quem deixar, talvez alguém que já tenha um bebê. Talvez não. A força da lei na figura de um policial alto e sério que faz Carlitos dar passos para trás é curiosamente o que também o leva à resignação. Encontra em meio às roupas da criança o objeto que servirá de ligação entre passado e presente: um bilhete escrito pela Mãe dizendo que se trata de uma criança órfã. Entendendo bem de solidão, Carlitos acolhe o bebê, levando-o para casa. Quando questionado à porta do casebre, responde que o nome da criança é “John”.

            Os anos passam, vemos os tratos do Vagabundo ao bebê, sua afeição pela criança, que crescida se transforma em sua parceira de trabalho numa das cenas mais bem lembradas da história do cinema. O menino, agora com cinco anos, atira pedras contra vidraças residenciais. Sorte do acaso, Carlitos está passando em frente às residências, podendo consertá-las de imediato. Muito já se escreveu a respeito do brilhantismo do jovem Jackie Coogan interpretando a criança, assim como muito já foi reportado acerca do entrosamento em cena de pai e filho. Pulando etapas, chego ao momento do primeiro reencontro da Mãe com a criança abandonada.

            Já fora mostrado como a passagem dos anos fizeram bem ao status social da Mãe, agora uma artista de fama e fortuna. Mas algo lhe pesa na consciência, obrigando-a a voltar aos bairros pobres para fazer caridade. Ela dá brinquedos às crianças que se aglomeram ao seu redor, fazendo surgir enorme sorriso até então inédito em seu rosto. Para uma outra mãe com uma criança de colo, para além do brinquedo ela também dá uma moeda. Trata-se de uma parte muito sofrida da cidade, onde as pessoas precisam se desdobrar para conseguir comida. As gags de Carlitos e filho mostram bem o quanto de esforço criativo é necessário para conseguir a moeda garantidora do jantar do dia.

            Afastada das crianças, o sorriso da Mãe desaparece. Não é preciso um recurso de montagem para indicar o que se passa. Ela lembra de seu bebê abandonado, provavelmente inquerindo onde ele poderia estar. Numa bela composição de quadro, a Mãe se senta numa calçada à porta da casa 69. Como há um degrau a mais para entrar na casa, a porta aparece alta às costas da Mãe. Enquanto ela se perde em seus devaneios, a porta abre e o menino perdido senta-se logo atrás. Aquele quadro dentro do quadro serve como uma espécie de balão mostrando pensamentos. Numa imagem lírica digna do que Bergman fará décadas depois em suas experiências atravessando mundos de sonhos e lembranças, um rasgo é feito no tecido do tempo unindo Mãe e filho mais uma vez.

            O encontro entre os dois é comovente. A troca de olhares singelos, o carinho da mulher que parece enxergar algo a mais na criança presenteada com brinquedos, um indizível que permanece a incomodá-la. Enquanto ela se afasta do sítio do encontro, sua reação diferente da reação tida anteriormente quando em companhia das outras crianças, como se algo que conectasse os dois houvesse soado em seu interior, mas a falta de exercício da maternidade dificultasse a compreensão do que seria isso.

            Me ative por mais tempo para relembrar os momentos em que Carlitos não está em cena, mas que demonstra a sapiência de seu criador na construção da composição e narração fílmica. Era tamanha a sua facilidade em contar histórias em filme, mesmo quando ele não aparece em cena, que este filme certamente foi um marco para sua passagem a outra obra mais ousada dentro de sua filmografia, o já mencionado A Woman of Paris.

Como artista da pantomima, Chaplin domina o palco, alcança a perfeição do ritmo dos momentos e deslocamento ao longo do cenário – lembremos da icônica sequência da corrida pelos telhados, homenageada por Manoel de Oliveira em Aniki Bobó. Como diretor de cinema, Chaplin demonstra o domínio do corte, da sequência de planos em situações simultâneas em locais distintos, e da composição de quadro, reconhecendo a importância de portas e janelas como forma de reenquadrar certos personagens. Ainda, sabe da importância do som para o cinema, enxergando a sua presença mesmo nesse período silencioso, demonstrando por isso a completude do cinema, não uma falta – daí sua obstinação em se render ao cinema sonoro.

            Retornamos às cenas com descrições também alongadas para criar mais uma sensação de rever este clássico. Não era necessário, mas já que estamos aqui, vamos rever O Garoto?



Clique na imagem para comprar ou

quarta-feira, 9 de junho de 2021

Mário de Andrade escreve sobre O Garoto, de Chaplin

 Trazemos ao leitor deste blog o texto de Mário de Andrade publicado na revista Klaxon como parte da celebração do centenário do filme clássico de Chaplin.


O garoto por Charlie Chaplin é bem uma das obras primas mais completas da modernidade para que sobre ele insista mais uma vez a irrequieta petulância de KLAXON. Celina Arnauld, pelo último número fora de série da Action, comentando o fim com bastante clarividência, denuncia-lhe dois senões: o sonho e a anedota da mulher abandonada que por sua vez abandona o filho. Talvez haja alguma razão no segundo defeito apontado. Efetivamente o caso cheira um pouco a sub-literatura. O que nos indignou foi a poetisa de Poit de Mire criticar o sonho de Carlito. Eis como o percebe: "Mas Carlito poeta sonha mal. O sonho objetivado no film choca como alguns versos de Casimiro Delavigne intercaladas às Illuminations de Rimbaud. Em vez de anjos alados e barrocos, deveria simplesmente mostrar-nos pierrots enfarinhados ou ainda outra cousa e seu fim conservar-se-ia puro. Mas quantos poemas ruins têm os maiores poetas!"

Felizmente não se trata d'um mau poema. O sonho é justo uma das páginas mais formidáveis de O garoto. Vejamos: Carlito é o maltrapilho e o ridículo. Mas tem pretensões ao amor e à elegância. Tem uma instrução (seria melhor dizer conhecimentos) superficial ou desordenada, feita de retalhos, colhidos aqui e além nas correrias de aventura.

É profundamente egoísta como geralmente o são os pobres, mas pelo convívio diurno da desgraça chega a amar o garoto como a filho. Além disso, já demonstrara suficientemente no correr da vida uma religiosidade inculta e ingênua. Num dado momento conseguem enfim roubar-lhe o menino. E a noite adormecida é perturbada pelo desespero de Carlito que procura o enjeitado. Com a madrugada, chupado pela dor. Carlito vai sentar-se à porta da antiga moradia. Cabe nesse estado de sonolência que não é o sono ainda. Então sonha. Que sonharia? O lugar que mais perlustrara na vida, mas enfeitado, ingenuamente enfeitado com flores de papel, que parecem tão lindas aos pobres. E os anjos aparecem. A pobreza inventiva de Carlitos empresta-lhes as caras, os corpos conhecidos de amigos, inimigos, policiais e até cães. E os incidentes passados misturam-se às felicidades presentes. Tem o filho ao lado. Mas a briga com o boxista se repete. E os policiais perseguem-no. Carlito foge num voo. Mas (e estais lembrados do sonho de Descartes) agita-se, perde o equilíbrio, cai na calçada. E o sonho repete o acidente: o polícia atira e Carlito alado tomba. O garoto sacode-o chamando. É que na realidade um polícia chegou. Encontra o vagabundo adormecido para acordá-lo. Este é o sonho que Celina Arnauld considera um mau poema. Como não conseguiu ela penetrar a admirável perfeição psicológica que Carlito realizou! Ser-lhe-ia possível com a mentalidade e os sentimentos que possuía, no estado psíquico em que estava, sonhar pierrots enfarinhados ou minuetos de aeroplanos! Estes aeroplanos imaginados pela adorável dadaísta é que viriam forçar a intenção da modernidade em detrimento da observação da realidade. Carlito sonhou o que teria de sonhar fatalmente, necessariamente: uma felicidade angelical perturbada por um subconsciente sábio em coisas de sofrer ou de ridículo. O sonho é o comentário mais perfeito que Carlito poderia construir da sua pessoa cinematográfica. Não choca. Comove imensamente, sorridentemente. E, considerado à parte, é um dos passos mais humanos da sua obra, é por certo o mais perfeito como psicologia e originalidade.



Clique na imagem para comprar ou

segunda-feira, 10 de junho de 2019

Introdução à metafísica da cinefilia


Apresentação para o III efiba

A cinefilia é costumeiramente tratada nos estudos de cinema como um movimento cultural. Sendo um movimento cultural, alguns destes estudos realizam recortes muito específicos de períodos e localidades que abraçaram a “cultura cinéfila”. Curiosamente, a cinefilia assim tratada é fruto das grandes metrópoles dos países mais bem desenvolvidos economicamente, estando ligada à intelectualidade nova iorquina ou parisiense.
Soa inquietante para quem não se encontra nestes centros e se identifica com a cinefilia – mesmo em alguns detalhes da noção de cinefilia descritos por estes mesmos estudos. O caso mais particular destes estudos é o de vincular a cinefilia a um saudosismo de movimentos populares que não mais existem – a exemplo dos cineclubes parisienses dos anos 1940 e 1950 – a um maquinário econômico existente apenas em alguns grandes centros – somente em grandes metrópoles como Nova York ou Paris que é possível pensar salas de cinema de bairro.
Este é o caso da análise de autores como o historiador e crítico de cinema francês Antoine de Baecque e da filósofa estadunidense Susan Sontag. Ambos prontamente escrevem sobre a cinefilia apontando para uma suposta morte da cinefilia vinculada ao fechamento das salas de cinema dos grandes centros urbanos depois da popularização da televisão nos anos 1970. Em ambos os casos, a noção de cinefilia vem diretamente vinculada a uma historiografia do espectador de cinema que prioriza as experiências posteriores à criação da Cinemateca Francesa nos anos 1930.
Se até os anos 1930 existia uma grande dificuldade de criar uma unidade da narrativa histórica do cinema, isto se dava particularmente pelo esquecimento parcial em que caíam os filmes. Até meados de 1935, um filme que saía de cartaz dos cinemas estava fadado a ser esquecido porque não havia outro lugar onde ser exibido, sendo-lhe dedicada a prateleira para aguardar os incêndios comuns dos armazéns de filmes ou o estrago do filme em película.
O trabalho da Cinemateca Francesa é notável, especialmente para estudiosos da arte cinematográfica. Mesmo depois de sua criação, os estudiosos de cinema somente podiam contar com relatos de outros espectadores para comentar filmes influentes desta arte – é o caso de Walter Benajmin, por exemplo, ao escrever seu A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica, vasto conhecedor da arte cinematográfica, mas que em muitos casos somente podia ter acesso a certos filmes com o auxílio de descrição de críticos e outros espectadores.
Mas por outro lado o trabalho da Cinemateca Francesa serviu para que o pensamento centralizador de pesquisadores franceses começasse a apontar a história do espectador de cinema como nascendo junto ao empreendimento de Henri Langlois, fundador da casa. É o caso específico de Antoine de Bacque, que escreve um livro muito detalhado sobre a cinefilia francesa abarcando o período de 1940 a 1960 – período prolífico para a cinefilia francesa, quando se podia ter um cineclube onde se encontravam operários de fábricas e intelectuais do nível de Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir numa mesma plateia. Logo nas primeiras páginas de seu estudo, Baecque deixa muito clara o que considera como sendo cinefilia ao dizer que ele próprio se identificou com a cinefilia em seu momento de declínio, nos anos 1970, quando muitas das salas de Paris estavam a fechar por falta de público, público este atraído pelos aparelhos de televisão, muito mais cômodos em ofertar uma experiência audiovisual.
A leitura de uma cinefilia passível de entrar em declínio e vinculada a grandes centros urbanos é redutora. Não somente porque compreende que o cinéfilo é somente aquele que visita com frequência as salas de cinema de determinado circuito exibidor, como também compreende que a cinefilia nasce junto com o surgimento de uma instituição específica, a Cinemateca Francesa. Diferente do que pode ser encontrada nestas incursões historiografias, a cinefilia pode ser encontrada em relatos anteriores à criação da Cinemateca Francesa e em sociedades marginais aos grandes centros urbanos. É o caso do filósofo e psicólogo Hugo Munsterberg, que ainda em 1916 publica, no ano de seu falecimento, o primeiro tratado inteiramente dedicado ao estudo da arte cinematográfica – no qual ele prontamente se posiciona como defensor de que sim, o cinema é uma arte. Neste tratado, Hugo Munsterberg se mostra como um cinéfilo prolífico, conhecendo a produção de anos anteriores como os lançamentos mais recentes – apenas dois anos após o surgimento de Charles Chaplin nas telas de cinema, Munsterberg já era capaz de notar ali um gênio desta arte.
Portanto, existe algo na cinefilia que antecede os estudos sociais – que mesmo em seu reducionismo, na forma dos recortes dos autores aqui listados, mostra sua importância na análise de parte importante da arte cinematográfica, o espectador – que estaria a delinear as características do que é a cinefilia de modo mais amplo. Porque o que move o cinéfilo a retornar às salas de cinema, ou a se voltar aos periódicos dedicados a esta arte, é algo de mais profundo que se encontra inerentemente ao espectador de cinema. Daí a interpretação de que a cinefilia é, antes de qualquer coisa, uma emoção, necessitando, portanto, de um estudo estético para ampliar o entendimento a seu respeito.
Como já apontava George Dickie em ensaio clássico dos estudos de estética do século XX, é preciso tomar certo cuidado ao realizar um estudo estético. Os estetas do século XX, em especial aqueles do início da tradição analítica, eram muito pouco cuidadosos no tratamento de seus temas. O famoso ensaio de Dickie em questão faz a análise do uso do termo “atitude estética”, usado de maneira equivocada por muitos estetas listados ao longo do ensaio, que tratam o termo “atitude estética” – derivado da filosofia tardia de Wittgenstein – como análogo a outro que encontrou seu ápice nos estudos de estética na virada dos séculos XIX para XX: a atenção. Para um filósofo, especialmente para aquele que se vincula à tradição analítica, a noção de “atitude” não pode ser utilizada como análoga a outra como “atenção”. Nosso objetivo aqui não é o de adentrar na argumentação de Dickie a respeito destas duas noções, antes enxergando o motivo de ele tratar desta diferenciação a um campo de criação filosófica. Dickie é defensor de que os estudos estéticos façam um retorno à profundidade argumentativa que carregavam em seus tempos de ouro, nomeadamente no século XVIII, quando Kant e Hume não faziam seus estudos estéticos de maneira dispersa, antes fundamentando esta estética sobre uma ontologia, uma metafísica – como é particularmente o caso de Kant, ao tratar de suas questões estéticas na terceira crítica.
O que nos traz ao termo mais familiar para o público de filosofia, a metafísica. Ao estabelecer que esta é uma introdução à metafísica da cinefilia o que buscamos é realizar uma fundamentação metafísica para o estudo estético que valorará a cinefilia como uma emoção. No caso específico deste estudo, a vinculação se dará com a filosofia da duração desenvolvida pelo francês Henri Bergson.
A metafísica de Bergson, centrada na noção de duração, surge como fundamento para este estudo por sua não prontidão em delimitar a objetividade do universo, antes buscando a precisão. Muito falamos sobre autores vinculados à filosofia de Wittgenstein para agora nos vincularmos subitamente à filosofia de um metafísico como Bergson. O caso é que os dois autores não se encontram em campos tão distantes dentro do debate filosófico, partindo de premissas para a construção de suas obras muito semelhantes, ainda que não idênticas. Esta é notavelmente a interpretação dada por Bento Prado Jr. Tanto Bergson quanto Wittgenstein buscam a superação das fórmulas da filosofia moderna e antiga estabelecendo que a filosofia até aqui se ocupou de fazer as perguntas erradas e toma-las como ponto de partida. Mesmo realizando um estudo metafísico, Bergson abandona os pressupostos que carregavam as metafísicas anteriores ao estabelecer que não devemos – no âmbito da metafísica da duração – nos ocupar com perguntar sobre a essência, o conhecimento das coisas em si, da representação conceitual, a distinção sujeito/objeto. Todos estes detalhes que compõe sua metafísica são caros ao estudo estético que procuramos desenvolver aqui, uma vez que a cinefilia não pressupõe estas mesmas fórmulas.
A duração não é uma substância, antes sendo o meio encontrado por Bergson para delimitar a experiência em seu escorrer, em toda sua imprevisibilidade. Em muitos aspectos, a filosofia desenvolvida por Bergson caminha em direção de uma metafísica da ação – daí até mesmo sua aproximação com os pragmatistas, em especial William James. Mas é o próprio autor que em alguns detalhes, ao escrever sobre a arte e a experiência do espectador, encontra limites para esta ação. Em sua obra inaugural, Ensaio Sobre os Dados Imediatos da Consciência, Bergson estabelece que no caso de uma experiência mais aprofundada do espectador com uma obra artística, o espectador se encontraria num nível de submissão com a obra de arte, como que hipnotizado. Eis aqui um dos aspectos que nos fazem apropriar a filosofia de Bergson e toma-la como ponto de partida para os estudos concernindo a cinefilia como emoção. O espectador, mesmo em um nível mais aprofundado de relação com a obra fílmica, não abandona este caráter de atuação que tem sobre a obra. o que persiste a acontecer é uma troca, porque uma comunhão. São derrubadas aqui as fronteiras que delimitam o espectador como sujeito e o filme como objeto, ou vice versa. Espectador e filme passam a fazer parte um do outro, um a se embeber do espírito do outro.
Esta argumentação que pode ser realizada tendo como pano de fundo a noção de liberdade – aqui sempre tratada como noção, e não conceito, porque se trata de buscar a precisão filosófica e não a objetividade da representação conceitual. Liberdade que é pensada por Bergson no mesmo texto inaugural de sua filosofia, Ensaio Sobre os Dados Imediatos da Consciência. Antes de estabelecer a liberdade em sua acepção política e ética, de deliberação do ser humano frente aos eventos que se lhe apresentam, a liberdade na filosofia de Bergson ganha colorações mais próximas à duração, sendo a abertura do presente. Portanto, cabe separar a liberdade desta conclusão que tende a firmá-la espacialmente. A liberdade tem relação mais próxima à criação do devir contínuo. A constante marcha do universo nos presenteia com a novidade, a liberdade nos permite lidar com as transformações constantes pelas quais as coisas passam, ainda que assim não percebamos por termos nossa atenção voltada para a aparência, para o espaço e sua aparente imutabilidade.
O que nos leva a concluir que o espectador de cinema não é uma figura passiva em meio ao espetáculo cinematográfico do qual faz parte, mesmo em sua quietude corpórea ao se encontrar sentado perante uma tela onde escorrem as imagens. O espectador está em ação mesmo imerso nesta aparente quietude. O progresso da marcha da duração não pode ser transformado em coisa – a liberdade é o que não pode ser exprimido mediante uma lei, porque os estados, tal como são encontrados, não podem ser reproduzidos ou encontrados em sua duplicata.
O nascimento da cinefilia como emoção se dá precisamente na ação do espectador, a atitude inesperada de se deparar com um filme que se inscreve mais profundamente em sua consciência, e que permanece com ele mesmo depois de findada a sessão, porque de maneira mais marcante deixou seus dentes cravados na memória. Nasce da experiência de duração partilhada pelo espectador com o filme, quando a particularidade da temporalidade de um filme se inscreve em sua consciência. O espectador é duração assim como o filme que assiste é duração; ao longo da projeção do filme estas durações passam a se relacionar, de modo que o fluxo vital do espectador se confunde com o fluxo de duração do filme, que pulsa e tem vida em um modo todo próprio.
Encerro assim, de maneira abrupta, esta introdução a um estudo mais amplo, apenas para delimitar em caráter introdutório o princípio destes estudos que buscam fundamentar a emoção de cinefilia numa metafísica, esta tomada de empréstimo de Henri Bergson.


segunda-feira, 7 de março de 2016

Teses sobre o neorrealismo

por: CESARE ZAVATTINI


            Sem a menor dúvida, nossa reação primeira e mais superficial a respeito da realidade cotidiana é de tédio. Tanto que não deixando de nos superar e a superar nossa derrota intelectual e moral, a realidade nos parece desprovida de todo interesse. Não deixa de surpreender que o cinema tenha sempre sentido naturalmente e quase inevitavelmente a necessidade de uma “história” a ser inserida na realidade, a fim de render a paixão, espetáculo. É evidente que se poderia evadir o campo da realidade como se nada pudesse fazer na intervenção da imaginação.
            A característica mais importante do neorrealismo, sua novidade essencial, me parece ser a descoberta que a necessidade da história não é mais que uma maneira inconsciente de apontar um defeito humano, e que a imaginação, sendo ela exercida, não faça mais que supor esquemas mortos aos fatos vivos socialmente.
            Em substância, percebemos que a realidade é extremamente rica: é preciso somente saber observá-la. E que a tarefa do artista não consiste em levar o espetador a se indignar e a se mover pelas transições, mas refletir (e, se quiser, até mesmo se indignar e se mover) sobre coisas que ele faz e que os outros fazem, sobre a realidade tal como ela é precisamente.
            De uma falta de confiança inconsciente e profunda na observação da realidade, de uma evasão ilusória e equívoca, é passada uma confiança ilimitada nas coisas, nos fatos, nos homens.
            Esta tomada de posição exige naturalmente a necessidade de escavar, de dar à realidade esta pulsação, esta faculdade de comunicar, estas reflexões que, justamente no neorrealismo, não se crê que ela possa possuir.
            Já foi escrito que a guerra foi a pedra angular do neorrealismo. Este fato enorme abala a alma dos homens e, cada um a sua maneira, os cineastas ensaiaram transpor no cinema esta emoção grandiosa. Por nós, Italianos, a guerra nos pareceu particularmente monstruosa, porque não vimos nenhuma razão para dela participar, tínhamos muitas razões para não participar. Mas não foi por uma revolta limitada a esta guerra: era qualquer coisa a mais, era a revelação absoluta, diria ainda eterna, de que a guerra ofende as necessidades fundamentais e os valores humanos que nos são tão caras: e esta revelação, a meu ver, era o ponto de partida de um vasto movimento humano. Poderiam me dizer que esta revelação não é um privilégio da Itália. Creio que sim. Nesta quantidade de gente designadas como defeitos de nosso povo, e que são ao contrário suas virtudes – a carência social aparente, o individualismo, etc... – podemos encontrar as razões de uma vocação, a razão plena e apaixonada contra a injúria suprema que é a guerra. E este não é o homem histórico que reage, o homem abstrato dos livros situado em uma trajetória sem fim de datas, que são as datas das guerras passadas, presentes ou futuras, mas o homem mais profundo e secreto. Você poderia objetar que o homem histórico e o homem epíteto coabitam continuamente: admitimos, mas eles coabitam utilmente quando, pelo princípio dos vasos comunicantes, eles tendem a ocupar o mesmo nível, primeiro com sua consciência, e segundo com sua necessidade original de viver. A necessidade de viver, quando é rico e feliz pode melhor atravessar seus limites que ele escolhe, porque em ultimo caso, um povo decadente não pode trazer a menor contribuição à humanidade. Ouso pensar que outros povos, mesmo depois da guerra, continuarão a considerar o homem enquanto matéria histórica, determinado em seu movimento, mesmo fatal, e que é o porquê não nos dão um cinema de libertação, como começou a fazer o cinema italiano: este que por eles, justamente, tudo continuou, enquanto que por nós começou; por eles, a guerra foi uma das guerras que afligiram nosso planeta, por nós ela teria sido a ultima guerra. Poderiam eles ser a consequência de suas descobertas, o ímpeto dos pioneiros, novidade não porque jamais conhecida anteriormente, mas porque jamais de uma maneira também coletiva e tenaz? As consequências são estas que veremos abrir a nossa frente um estudo sem fim de como o homem provocou e sustentou a guerra. Esta é a necessidade de conhecer, de ver como estes eventos terríveis puderam acontecer, e o cinema é o meio mais direto e mais imediato para este tipo de exame, melhor que os outros meios de cultura; a linguagem destes últimos não está próxima de exprimir nossas reações contra as mentiras das velhas ideias gerais, como nós nos encontramos vestidos ao momento da guerra e que nos encontramos impedidos de tentar a menor revolta.


            Este desejo pulsante do cinema de ver e de analisar, esta fome de realidade, é de qualquer forma uma homenagem concreta aos outros, a tudo que existe. E, entre outras coisas, é isto que distingue o neorrealismo do cinema americano. Com efeito, a posição dos americanos é antípoda à nossa: eis que somos solicitados pela realidade que nos toca, que queremos conhecê-la diretamente e a fundo, os americanos continuam a se contentar com um conhecimento adocicado, através das transposições.
            Eis porque, se podemos falar, pela américa, de uma crise temática, esta crise é impossível entre nós. Não pode haver carência de temas entre nós, porque não há carência de realidade. Qualquer a hora do dia, qualquer lugar, qualquer pessoa, pode contar se for contado de tal modo que revele um modo de destacar os elementos coletivos que os formem continuamente.
            Eis porque não se pode falar de crise de temas (os fatos) mas, o caso aplicável, de crise de conteúdos (a interpretação destes fatos).
            Esta diferença essencial foi bem sublinhada por um produtor americano que me disse: - Entre nós, a cena de um avião que passa é concebida de certa maneira: uma avião passa... tiros de metralhadora, ... o avião cai. Entre vocês: um avião passa... o avião passa novamente... o avião passa uma terceira vez.
            É perfeitamente verdadeiro. Mas ainda é pouco. Não é suficiente fazer o avião passar três vezes, é necessário fazê-lo passar vinte vezes.     
           Nós trabalhamos para expulsar as abstrações.
           Em um romance, os protagonistas são os heróis; o sapato do herói era um sapato especial. Nós, ao contrário, procuramos encontrar o que nossos personagens têm de comum: em meu sapato, no seu, no do rico, naquele do trabalhador, encontramos os mesmos elementos, o mesmo trabalho humano.
            E chegamos ao estilo. Em outras palavras, como faremos para exprimir cinematograficamente esta realidade? Eu repetiria antes, como já disse, que o conteúdo exprimido possui sempre sua própria técnica. Caso contrário, há imaginação, mas sob a condição que ela exerce na realidade e não nos limbos. Mas, o que compreendo bem, não daria a acreditar que os fatos diversos sejam por mim os únicos fatos que contam. Ensaiei de fixar minha atenção sobre fatos diversos, na intensão de reconstituir da maneira mais fiel, em me servindo de um pouco de imaginação que pode vir do conhecimento perfeito do próprio fato. Será evidentemente mais coerente que as câmeras surpreendam ao momento mesmo em que eles chegam – e é minha intensão, quando realizo um filme meu em Itália. Bem entendido, não se pode jamais esquecer que todo relato da coisa que vá comunicar implica em uma escolha e, por consequência, o ato criativo do sujeito: mas o sujeito é composto de qualquer tipo no local, ao invés de ser uma reconstituição sucessiva. É isto que chamo de cinema de reencontro. Este método de trabalho deveria conduzir, a meu ver, a dois resultados: antes, ao que concerne ao ponto de vista ético, os cineastas sairão, buscarão o contato direto com a realidade: de outro modo, criaríamos uma produção que traria a novidade de uma consciência coletiva. Porque o nome joga também: se fazemos 100 filmes por ano que se inspirem neste critério, mudaremos os relatórios de produção se não fazemos mais que três, nos submetemos aos relatos das produções tais quais existem hoje.


            A tomada de consciência da realidade que caracteriza o neorrealismo possui duas consequências no que concerne à construção de um roteiro estritamente narrativo:
1) Um cinema que de outra forma contava um fato de onde provinha outro, depois um terceiro, e assim sucessivamente, cada cena era concebida e feita para ser imediatamente obrigada; hoje, quando imaginamos uma cena,  sentimos a necessidade de “permanecer” nesta cena, porque sabemos que ela possui todas as possibilidades de repercutir mais além. Podemos dizer tranquilamente: dê-nos um fato qualquer e nós conseguiremos transformá-lo em espetáculo. A força centrífuga que constitui (mais do ponto de vista técnico do que do ponto de vista moral) a característica fundamental do cinema é transformada em força centrípeta;
2) ainda que o cinema tenha sempre contado a vida em seus fatos mais exteriores, o neorrealismo afirma hoje que ele não pode conter a alusão, mais terna da análise. Ou mais ainda de uma síntese ao interior da análise.
            Daremos um exemplo: a aventura de dois seres que buscam um apartamento. Ainda que uma vez tenhamos colocado como ponto de partida, tomando em consideração o simples pretexto exterior que ele comporta, para passar imediatamente a outra coisa, hoje se pode afirmar que o simples fato de buscar um apartamento deveria constituir todo o tema de um filme, se, bem entendido, este fato estiver escancarado em todos os momentos, com todos os ecos e os reflexos que derivam.
            Compreendemos facilmente que estamos ainda longe da verdadeira análise; podemos falar simplesmente da análise por oposição da síntese grosseira da produção corrente. Por enquanto, não conhecemos mais que uma “atitude” analítica, mas já esta atitude comporta a pulsação movente nas coisas, um desejo de compreensão, de adesão, de participação, e somando tudo, de coabitação.
            Este princípio de análise se encontra na consideração sobre estilo, em seu sentido mais estrito, e oposto à síntese burguesa. A síntese burguesa permitiu encontrar o melhor alimento, a parte selecionada da rede: os cineastas depenam os aspectos mais representativos de uma situação de bem-estar e de privilégio. Ora, para precisar criticamente o alcance do neorrealismo, é preciso sublinhar a parte que leva sempre mais largamente à cultura italiana (e não pode ser de outra maneira, sendo dada a colaboração de mais e mais escritores realistas à criação cinematográfica). Quanto a esta colaboração – que não deve se confinar a oferecer romances, mas que deve contribuir para enriquecer a linguagem cinematográfica, tão rica de possibilidades quanto a linguagem literária, – não há dúvida de que deveria fazer grandes progressos ao cinema, pelo pouco que os escritores se interessam de maneira menos “provisória” que aqueles que o fazem por hábito.
            Disto tenho dito, o neorrealismo, contrariamente ao que foi feito na época da guerra, entendeu que o cinema deve contar pequenos fatos, sem introduzir a menor imaginação, se esforçando por analisar o que seja humano, histórico, determinante e de definitivo.
            Creio mais firmemente que o mundo continua a ir mal porque não conhece a realidade: e a tarefa mais autêntica de um homem de hoje consiste em se engajar para resolver o melhor que puder o problema do conhecimento da realidade. Eis porque a necessidade mais urgente de nosso tempo é a atenção social, mas esta atenção deve ser direta, como já disse, e não se manifestando através de apologias mais ou menos bem sucedidas. Um faminto, um humilhado, faltam ser mostrados com seus nomes e sobrenomes, e não contar uma história onde há um faminto e um humilhado, porque a este momento tudo muda, tudo é menos eficaz, menos moral.


            A verdadeira função de todas as artes sempre foi aquela de exprimir as necessidades de seu tempo; e é a esta função que queremos trazer de volta.
            Ora, algum outro meio de expressão possibilita como o cinema, fazer conhecer as coisas rapidamente e ao máximo de pessoas...
            ...É natural que estes que tenham compreendido as coisas, bem que ainda obrigados por todos os tipos de razões (umas válidas, outras não), de compor histórias “inventadas” segundo a tradição, buscaram introduzir nestas histórias quaisquer elementos que tenham descoberto.
            Eis o que foi efetivamente o neorrealismo na Itália, através de alguns homens.
            Paisà, Roma, cidade aberta, Ladrões de bicicleta, Terra trema, são filmes que contém passagens de uma significação total e que se inspiram na possibilidade de tudo contar; mas, de certo sentido, eles comportam ainda transposições, porque contam uma história e não aplicam simplesmente o espírito documental. Em certos filmes como Umberto D., o fato analisado é bem mais evidente: mas o quadro é aquele do conto habitual, e nós ainda não estamos no verdadeiro neorrealismo.
            O neorrealismo é hoje uma armada pronta para se por em marcha. Os soldados estão prontos atrás de Rossellini, Sica, Visconti. O que os fará partir para o assalto: é somente então que a batalha poderá ser ganha.
            Mas o que importa, é que o movimento começou: ou que vá até o fim, ou que perca uma grande oportunidade, porque em frente ao realismo se trabalham perspectivas mais vastas que tudo que se pode imaginar...
            Transformar em espetáculo os fatos cotidianos da vida não é coisa fácil: se pede intensidade de visão, assim como faz o filme com aquele que o vê. Se agita para dar à vida do homem sua importância histórica em todos os instantes.
            Nisto que concerne outros filmes recentes com os quais colaborei, digo, por exemplo, não tenho com Quando a mulher erra por documento importante de minha carreira de neorrealista, porque o fato da coprodução reduziu a quase nada a inspiração primitiva, que portava o exame de um momento e de um lugar bem determinados.
            Entre meus próximos filmes, Italia mia tem um ponto de partida neorrealista num sentido bem preciso: ele parte da necessidade de conhecer profundamente meu país e de minha confiança absoluta nos encontros que faria. Os “aspectos” do neorrealismo figuram na ideia central de meu “filme enquete”, Amore in Citta (que sai em breve); e diria ainda Siamo donne, ao menos pelo fato que ele reencontra um sentido moral na necessidade de comunicação que inspira as estrelas que se confessam ao público. Em presença destas confissões, o espectador deve se libertar do complexo de inferioridade que experimenta frente ao mito da estrela.


            Foi colocada todos tipos de acusação contra o neorrealismo. Aqui as principais:
1)O neorrealismo descreve unicamente a miséria
O neorrealismo pode e deve estudar a miséria como a riqueza; começamos pela miséria simplesmente porque ela é uma das realidades mais vivas de nosso tempo: desafio qualquer um a me demonstrar o contrário. Creia ou finja crer que antes de uma meia-dúzia de filmes sobre a pobreza o tema já esteja esgotado é um grande erro. O tema da pobreza (os ricos e os pobres) é um daqueles ao qual se pode dedicar durante toda uma vida. Nós apenas começamos. E se os ricos fecham as caras perante Milagre em Milão, que é uma fábula, eles verão melhor. Coloco-me, eu mesmo, entre os ricos: o que há em nós os ricos, não é somente a riqueza com dinheiro (o dinheiro que não é senão o aspecto mais suntuoso e o mais aparente), mas todas as formas de injustiça e violência que fluem. Não existe uma posição “moral” do homem que dito rico.
            2) O neorrealismo não oferece soluções, não mostra rotas novas: as conclusões dos filmes neorrealistas são absolutamente evasivas.
            Respondo esta acusação com todas minhas forças. Cada momento de um de nossos filmes é uma resposta contínua a interrogações. Quanto às soluções, não é do artista como tal as considerar: ele simplesmente, e já é muito, faz sentir a necessidade e a urgência.
            3) Os fatos não interessam a ninguém, nem constituem um espetáculo
            Quando contornamos a análise do “fato qualquer”, os cineastas não obedecem os desejos mais ou menos expressos dos fundos capitalistas do cinema e do próprio público, sucumbindo a uma espécie de preguiça, porque a análise de um fato é sempre mais difícil de efetuar que a enumeração de um único arquivo de um fato antes de outro. Em outras palavras, este problema de aprofundamento que contornam os cineastas.
            O verdadeiro cinema neorrealista torna-se naturalmente um cinema menos caro que o cinema atual porque seu conteúdo pode ser exprimido mais economicamente. A consequência mais importante é que ele pode se libertar assim do capitalismo. De fato, todas as artes buscam se exprimir pelo meio mais econômico: mais uma arte é moral e menos ela implica em custos. A imortalidade social do cinema vem de seu preço elevado. O cinema ainda não encontrou sua moral, sua necessidade, sua qualidade, porque custa muito caro.
            Temos a ilusão, – chame assim, se quiser, – que conosco começa algo de diferente. Com efeito, o homem que sofre à minha frente é absolutamente diferente do homem que sofreu há cem anos. Concentro toda minha atenção no homem de hoje. E a bagagem histórica que carrego comigo, e que além disso eu não faria – e nem poderia – me libertar brutalmente, e nem devo me impedir de ser tudo ao meu desejo de emancipar este homem de seu sofrimento em me servindo de meios dos quais disponho. Este homem (é uma de minhas ideias fixas) tem um nome e sobrenome, pertence à sociedade que também nos concerne sem erro possível: sinto sua fascinação, de modo que sinto de modo premente, que sou obrigado a falar dele, dele e não de uma personagem inventada, porque a este momento a imaginação se interpõe entre a realidade e eu...
            ...Me é muitas vezes pedido para explicar porque os atores são impedidos de atuar no cinema: digo que os atores devem atuar no cinema, mas que eles não têm grandes coisas a fazer com o neorrealismo. O cinema neorrealista não demanda aos homens verem os atores profissionais; suas habilidades profissionais têm à sua profissão homens, que eles dotam da consciência mais profunda. Mas é evidente que esta consciência não pode ser criada ou reforçada através do conhecimento que farão eles próprios e outros, conhecer o que é melhor alcançado pelo cinema neorrealista.
            Mas então, me dirão, como e quando intervém a imaginação? Ela se agita de uma imaginação particular e de um novo método a ser utilizado.
            Aqui um exemplo: uma mulher vai até o sapateiro comprar sapatos para seus filhos. Estes sapatos custam 7.000 liras. A mulher procura pagar-lhe menos.
            A cena dura dez minutos. E acontece se eu fizer um filme de dez horas. Como? Analiso o fato em todos os seus elementos constitutivos, o que vem antes, o que vem depois, e o que se passa entre tempos.
            A mulher procura os sapatos: o que faz seu filho durante este tempo? Que se passa na Índia, que possa ser relacionado com um par de sapatos?
            Os sapatos custam 7.000 liras, como eles chegam às mãos desta mulher, o problema do custo que lhes impõe, o que eles representam para ela?
            E o sapateiro que vende os sapatos, quem é ele? O que acontece entre estes dois seres? Ele também tem dois filhos para alimentar, com quem conversar. Você quer entender a conversa deles? Eis então.
            E assim sucessivamente. Vamos ao fundo das coisas, de mostrar as relações entre os fatos e o processo de onde nascem os fatos. Se analisamos o tipo de “achado de um par de sapatos”, veremos em nossa frente um mundo complexo e vasto, rico em peso e valor, nestes motivos práticos, sociais, econômicos, psicológicos. O banal desaparece, porque não existe.
            Sou contra as personagens excepcionais, os heróis, sempre experimentei um ódio instintivo a seu respeito. Me sinto ofendido por sua presença, excluído de um mundo ao mesmo tempo que milhões de outros seres.
            Somos todos personagens. Os heróis criam complexos de inferioridade nos espectadores. É chegado o momento de dizer aos espectadores que eles são os verdadeiros protagonistas da vida. O resultado será uma constante recordação da responsabilidade e da dignidade de cada ser humano. Tal é a ambição do neorrealismo: fortalecer todo o mundo, dar a cada um a consciência que ele é humano.
O termo neorrealismo, em seu sentido mais amplo, implica na eliminação da colaboração técnico-profissional, cumprindo a do roteirista.
Nos manuais, nas gramáticas, a sintaxe não possui um sentido, não mais que os conceitos primeiro-plano, contracampo, etc...
Cada um de nós faz roteiro a seu modo. O neorrealismo rompe os esquemas, rejeita todos os dogmas. Ele não pode possuir primeiro-plano ou contracampo a priori.
O tema, a adaptação, a realização não devem ser três fases distintas de um mesmo trabalho: são hoje, mas é uma anomalia.
O roteirista e o adaptador devem desaparecer: chegará um autor único, o realizador, que terminará por não ter nada de comum com o diretor de cena do teatro.
Tudo torna-se móvel, qualquer fato em seu filme, tudo é continuamente possível, tudo é pleno de possibilidades infinitas, não somente durante a filmagem, mas mais ainda durante a montagem, a mixagem, etc...
Depois de 1934 passei a trabalhar para o cinema italiano, e sei que ajudei a destruir alguns esquemas habituais. Se me coloco entre alguns que creem no neorrealismo como um chamado poderoso que podemos endereçar às coisas, não é uma falha de imaginação, porque, ao contrário, me retenho a duas mãos para não ser arrastado pela minha imaginação. A imaginação no sentido tradicional, vendo: o neorrealismo exige de nós que nossa imaginação se exerça in loco, sobre o atual, porque os fatos não revelam sua força imaginativa natural quando eles são estudados e aprofundados. Eis porque eles devem ser espetáculo, porque são revelação.

E sei bem que se pode fazer filmes maravilhosos como aqueles de Charles Chaplin, e que estas não são obras neorrealistas. Sei bem que existem americanos, russos, franceses, e assim em diante, que fazem obras-primas honrando a humanidade: eles certamente não estão estragando a película. E Deus sabe bem que obras magistrais ainda nos serão dadas, seguindo seu gênio, e com estrelas, filmadas em estúdios, a partir de romances. Mas os homens do cinema italiano, por conservar e buscar seu estilo e inspiração, depois de ter entreaberto corajosamente as portas da realidade, devem agora, creio, trabalhar grande.

(originalmente publicado em Cahiers du Cinéma, março de 1954, n° 33, p. 24 - 31)

domingo, 17 de janeiro de 2016

Onde jaz o teu movimento?


1) No filme de Pedro Costa em que acompanhamos os realizadores Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, Onde jaz o teu sorriso?, uma cena chama muito atenção. Tudo o que temos no quadro é a tela onde passa o filme sendo montado pelos cineastas. Straub conversa bastante, já Huillet prefere ficar em silêncio pela maior parte do tempo, mexendo na mesa de montagem, avançando e voltando o filme, buscando o ponto certo em que possa fazer o corte. Na cena em questão temos a busca por um sorriso breve. O ator, ou não-ator, do filme dá um breve sorriso antes do começo da cena, entre a saída da claquete de quadro e a pronúncia de sua fala. Huillet vê da primeira vez que passa o filme. Depois volta em busca daquele momento, para que possa inseri-lo em sua obra. Por mais que volte o filme, encontrando até mesmos os quadros marcados para descarte, ela parece não encontrar aquele momento único. Seria a aura benajminiana se abatendo num filme?

O movimento é a característica principal de um filme de cinema. É graças ao movimento que o cinema é chamado de "cinema". E ao realizador o que mais deve ser buscado no momento de criação de seu filme é este movimento. Não qualquer movimento, como a maior parte das pessoas com acesso a uma câmera de filmar podem fazer. Um movimento dotado de algo a mais. Um movimento significativo. Unido de emoção e ideia. Straub, no filme de Pedro Costa, lembra de Chaplin - no meio das muitas histórias que ele conta. Diz ele que o movimento no cinema do cômico inglês, em seus primórdios, podia ser encontrado no olho. Ou melhor, que o movimento começava pelo olho. Curiosa proposição essa de Straub, mas que não deixa de provocar alguns pensamentos. Chaplin raramente fazia close-ups. O que significa que o movimento no quadro começava de modo quase imperceptível. Mas em se tratando de Chaplin, não seria tão imperceptível assim.


2) O movimento começando pelo olho significa que no quadro há um ponto significativo. Um movimento quase encoberto por outros. Como acontece ao início de filme de outro realizador, e que me fez escrever esse texto. A sufragista (Die Suffragette), de Urban Gad, data de 1913. Os letreiros nos deixam bem clara a intenção de construção de uma história de amor, mesmo por trás de seu conteúdo político. Temos um casal apaixonado, que sofre por diversos desencontros. Ela quer conhecer ele, pede aos amigos, que por algum motivo o negam. Numa das cenas, o casal está no mesmo clube, mas não conseguem se encontrar, impedidos pelas multidões de amigos que evitam o contato dos dois. Ela vê algo fora de quadro. Quer ir nessa direção. É impedida pelas mãos que a empurram para cima de uma carruagem. No mesmo plano, auxiliado por uma panorâmica, um homem surge montado num cavalo. A moça já não mais pode ser vista, mas ele, no cavalo, pode vê-la. Move seu animal na direção dela, mas é impedido pelos corpos de conhecidos ao lado. O movimento do cavalo em direção à carruagem não é chamativo, passa quase despercebido, mas está lá.

Em um só plano também é realizada a cena em que a moça protagonista diz a sua mentora que implantou a bomba na casa de seu rival. Ela caminha cabisbaixa por toda extensão do cômodo até chegar próximo à câmera. Todo esse seu caminhar é acompanhado por sua mentora, cada vez mais tensa com as expressões da mulher. No desenvolver da cena o movimento cria o sentimento do arrependimento das personagens em terem chegado a uma atitude tão radical. A mentora busca nos olhos da outra a resposta que o tempo todo esteve gravada em seu gestual, em seu caminhar, nas expressões de sua face.


3) Semelhante construção da cena de Caminhada noite adentro, o filme mais antigo de Murnau a que temos acesso hoje - os demais se perderam. Quando a ex-mulher do médico surge em seu consultório pedindo-lhe um favor para o novo marido, ele nega. Ela se encolhe, chorando. O movimento dele muda completamente em um plano: de seu gestual de homem de força, que demonstra irritação frente ao pedido, torna-se a figura de um homem sensível, que se solidariza pela dor daquela mulher. Sem necessitar de maiores artifícios, Murnau altera o movimento em um plano, alterando também o seu sentido inicial. Se aquele plano inicialmente era utilizado para mostrar a repelência do ex-marido, ele muda radicalmente para mostrar o homem ainda apaixonado.

4) Essa é a natureza do plano-sequência. Não jaz em sua longa duração, e sim em sua mostragem do movimento. Um filme com muitos cortes pode ser repleto de planos-sequência, como podemos notar pelo filme de Staub-Huillet/Pedro Costa. O que importa é o que acontece no interior do quadro. A aparição do sorriso e o seu consequente desaparecimento.

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

A reversão da morte no cinema

entre Elena e Ser tão cinzento
"A morte é para ser o momento único por excelência. É em relação a ela que se define retroativamente o tempo qualitativo da vida. Ela demarca a fronteira entre a duração consciente e o tempo objetivo das coisas. A morte não é senão um instante depois do outro, mas o último. [...] Na tela, o toureiro morre todas as tardes." André Bazin, em Morte todas as tardes.
"aquele ou aquela que é fotografado é o alvo, o referente, espécie de pequeno simulacro, de eídolon emitido pelo objeto, que de bom grado eu chamaria de Spactrum da Fotografia, porque essa palavra mantém, através de sua raiz, uma relação com o 'espetáculo' e a ele acrescenta essa coisa um pouco terrível que há em toda fotografia: o retorno do morto." Roland Barthes, em A Câmara clara.

Essa é uma das características que mais arrepiam as pessoas que se deparam com a técnica de captação físico-química de imagens. Desde suas primeiras invenções mais populares, ainda no século XIX, a fotografia e por conseguinte o cinema, transtornam a mente das pessoas, seja de forma positiva ou negativa, com esta interação com o que antes não poderia ser mais que imaginado pela mente de um artista. Se desde o princípio das artes a representação das pessoas e de entidades é comum, agora temos a apresentação das pessoas em filme. Acompanhando a caminhada das ciências, as artes adentram neste campo do empirismo. A fotografia e o cinema são formas artísticas de se ter contato com o real (verdade, podem ser mais que isso, mas num primeiro momento são basicamente isso).

Em A câmara clara, citado no início desse texto, Barthes escreve sobre seu contato com uma fotografia. Um dos irmãos de Napoleão. Vendo a figura real daquela personagem histórica ele não pode deixar de dizer algo que escapa a muitos espectadores: estes foram os olhos que viram o imperador! As imagens fotográficas, sejam as estáticas ou as em movimento (cinema) são constantemente vistas como puramente aquilo que é dado tão somente ali. Aquele pequeno pedaço de papel ou aquela dança que se escorre num jogo de luzes. Mas o que apresentam é sempre mais. Há naquilo que foi retratado a possibilidade de imaginar a história anterior e posterior. Porque o retratado, coisa ou pessoa, possui uma história. Barthes, nascido no século XX se via incapaz de conhecer alguém que tivesse tido contato com o mítico Napoleão. Por meio da fotografia, esta barreira temporal foi quebrada. Ele não pode conversar com o sujeito fotografado, mas ao menos pode ter um contato ainda que breve. Quase como um show com Pete Townshend - o vejo, mas não posso falar com ele.


A fotografia desfez uma impossibilidade. E o cinema ampliou. Por meio da fotografia, posso ver quem aqui não mais está. Por meio do cinema, posso viver um momento com ele (graças ao aspecto temporal do dispositivo). Me encanto com o bailar de Chaplin em tela. Mesmo sabendo que aquilo não era tão natural quanto parece, que ele repetiu inúmeras vezes até chegar àquele momento, ainda assim posso compartilhar com este meu ídolo um momento de sua vida. E mesmo que aquele momento tenha durado pouco em sua vida, posso repeti-lo inúmeras vezes. É a morte do toureiro, referida por Bazin. A qualidade distingue cada um dos momentos, e a minha apreciação das cenas de Chaplin nem sempre se dará do mesmo jeito. Ainda assim, sou capaz de assistir e re-assistir a seus filmes diversas vezes e captar os momentos da vida deste maravilhoso Artista. E assim, aquele tempo passa a constituir o meu tempo subjetivo, a minha duração, de modos diversos, porque a minha apreciação é sempre diferente.

A minha apreciação de Chaplin, e a apreciação de Barthes da fotografia do irmão de Napoleão tem algo de comum. São duas figuras que não estão mais vivas e que nos é possível ter contato graças ao processo técnico de gravação de imagem(ns). Imagino o tempo em que não era possível fazer isso. Ter que ouvir as maravilhas de artistas performáticos somente pela memória escrita ou falada de quem viu. Deixar-me levar pelas impressões subjetivas que uma obra de arte impôs sobre alguém.


Com o desenvolvimento destas tecnologias, cada vez mais pessoas passaram a poder registrar fatos ou pessoas que lhes são importantes. E por meio desse registro fazer com que alguém viva para sempre. Há uma lenda muito comum no Brasil de tribo indígenas que tinham medo de ser fotografados, acreditando que por meio da fotografia sua alma seria roubada. Rendeu até mesmo um livro por Adolfo Bioy Casares, A invenção de Morel - não necessariamente sobre os índios. Isso é fruto de escárnio por parte de uns, mas por ser muito bem compreendido. Porque, quando me deparo com um filme como o de Chaplin, sou inundado por emoções diversas como se ele estivesse vivo para provocar-me todas elas - e, de certa forma, está.

***

O que me moveu a escreve esse texto foi o filme Elena. Apesar do burburinho gerado quando de seu lançamento, tempos atrás, somente pude vê-lo agora, em 2015 (apesar desse texto ser publicado em 2016). Filme-ensaio, a diretora Petra Costa se põe a falar de sua irmã mais velha, também artista. Queria fazer cinema, ela. E que outro modo melhor teria a diretora para poder contar a história de sua irmã senão por este meio?


Uma coisa me deixou muito incomodado logo de início. São muitas as imagens soltas preenchidas pela narração oculta da diretora. O cinema parece perder seu sentido. Sendo a arte das imagens em movimento, porque contar uma história sem se valer das "imagens em movimento"? Esse questionamento me abandonou tão logo surgem as primeiras imagens caseiras de Elena. Foram feitas com uma câmera que a então menina ganhou de aniversário, nos confidencia a diretora-narradora. As imagens familiares não ocupam todo o filme, e nem deveriam. As imagens soltas, que podem nos provocar algumas sensações, que são unidas a imagens que ressaltam o caráter ensaístico do filme, não fazem mais do que ampliar nossas percepções históricas. Elena, a protagonista do filme, foi uma pessoa real. Ela possui uma história. E, se as imagens arquivadas pela família não podem compreender toda a sua vida, nos é dado tempo para que possamos imaginar estas elipses. Tal como os olhos do irmão de Napoleão.

Elena passou a viver de novo por meio de um processo de ressuscitamento por sua irmã. Ela renasce a cada sessão. A cada visionamento do filme. Ela deixa de viver somente na memória daqueles que com ela conviveram para tornar-se um ser real vivente. Como os personagens que habitam a ilha do romance de Bioy ou como os personagens cinematográficos de A rosa púrpura do Cairo. Ainda que sua morte seja documentada no processo do filme, na sessão seguinte ela renasce para dançar. É compreendendo isso que Petra Costa encerra seu filme não com o laudo médico que anuncia a causa da morte da irmã, mas com uma dança dela. Elena morreu, mas vive no cinema.


Não diferente é o que faz outro cineasta brasileiro, Henrique Dantas, com seus filmes dedicados à memória do cineasta Olney São Paulo. Desta vez, ao se referir a uma personagem que não aparece na frente, mas atrás das câmeras, o processo de ressuscitamento desta personalidade não pode ser feito por meio das imagens em movimento em que apareça o próprio Olney. Sendo ele cineasta, sua vida pode ser reconstruída por meio de sua obra. É um processo semelhante ao realizado por Alain Resnais em Van Gogh e Gauguin. Ainda que nestes curtas o cineasta francês tenha buscado narrar a vida de seus personagens tal como tenha acontecido, ele deixou uma brecha para um modo de realização cinematográfica: o artista está vivo em sua obra.

Olney, presente em fotografias, está vivo por meio de suas ideias na mesma medida em que os filósofos da Grécia antiga em diálogos. Seu pensamento persiste. Henrique Dantas projeta os filmes do cineasta sertanejo nos cenários de sua vida para poder preenchê-los com a presença deste que não mais pode estar ali. Olney morreu em pessoa, mas permanece presente enquanto ideia. Enquanto pensador. Enquanto influência. Qual a particularidade dos seres humanos senão a racionalidade? Se perco um braço, as duas pernas, não deixo de ser humano. Minha identidade enquanto humano está em minha racionalidade. E a racionalidade de um artista se expressa por meio de sua obra. A obra lançada ao mundo é eterna enquanto haja seres inteligentes para abraçá-la. Em Ser tão cinzento, Henrique leva Olney, ideia, aos espaços em que ele, um dia, viveu. Por meio dessa relação, o cineasta personifica seu personagem. Dá-lhe corpo. Presença.

Olney São Paulo
A morte deveria ser aquele momento único, ao qual seríamos incapazes de retornar ou mesmo de desfazer. "Imagino a suprema perversão cinematográfica", escreve Bazin, "como sendo a projeção ao inverso de uma execução". É verdade. O cinema corrompe a natureza ao desfazer a morte. Claro que tudo isso aparece somente naquele mundo paralelo ao nosso, o mundo interior à tela de cinema. Mas é sempre muito interessante poder ver esta corrupção tomando corpo.

Filmes como Elena e Ser tão cinzento são feitos a partir da memória. Seja dos criadores ou dos entrevistados. Mas eis que se constitui uma memória universal. Bogart, Chaplin, Lilian Gish não mais vivem, e ainda assim nos aparecem vivos. Não convivemos com eles, e ainda assim podemos partilhar com eles uma memória. A memória do olhar da florista. Do sorriso forçado com dois dedos. Porque este é o começo de uma bela amizade que re-começa a cada nova sessão.


Algumas referências:
Morte todas as tardes, de André Bazin, publicado em português em A experiência do cinema, organizado por Ismail Xavier.
A câmara clara, de Roland Barthes, publicado em português pela editora Nova Fronteira.
Assista ao filme Ser tão cinzento.