por: CESARE ZAVATTINI
Sem a menor dúvida, nossa reação
primeira e mais superficial a respeito da realidade cotidiana é de tédio. Tanto
que não deixando de nos superar e a superar nossa derrota intelectual e moral,
a realidade nos parece desprovida de todo interesse. Não deixa de surpreender
que o cinema tenha sempre sentido naturalmente e quase inevitavelmente a
necessidade de uma “história” a ser inserida na realidade, a fim de render a
paixão, espetáculo. É evidente que se poderia evadir o campo da realidade como
se nada pudesse fazer na intervenção da imaginação.
A característica mais importante do
neorrealismo, sua novidade essencial, me parece ser a descoberta que a
necessidade da história não é mais que uma maneira inconsciente de apontar um
defeito humano, e que a imaginação, sendo ela exercida, não faça mais que supor
esquemas mortos aos fatos vivos socialmente.
Em substância, percebemos que a
realidade é extremamente rica: é preciso somente saber observá-la. E que a
tarefa do artista não consiste em levar o espetador a se indignar e a se mover
pelas transições, mas refletir (e, se quiser, até mesmo se indignar e se mover)
sobre coisas que ele faz e que os outros fazem, sobre a realidade tal como ela
é precisamente.
De uma falta de confiança
inconsciente e profunda na observação da realidade, de uma evasão ilusória e
equívoca, é passada uma confiança ilimitada nas coisas, nos fatos, nos homens.
Esta tomada de posição exige
naturalmente a necessidade de escavar, de dar à realidade esta pulsação, esta
faculdade de comunicar, estas reflexões que, justamente no neorrealismo, não se
crê que ela possa possuir.
Já foi escrito que a guerra foi a
pedra angular do neorrealismo. Este fato enorme abala a alma dos homens e, cada
um a sua maneira, os cineastas ensaiaram transpor no cinema esta emoção
grandiosa. Por nós, Italianos, a guerra nos pareceu particularmente monstruosa,
porque não vimos nenhuma razão para dela participar, tínhamos muitas razões
para não participar. Mas não foi por uma revolta limitada a esta guerra: era
qualquer coisa a mais, era a revelação absoluta, diria ainda eterna, de que a
guerra ofende as necessidades fundamentais e os valores humanos que nos são tão
caras: e esta revelação, a meu ver, era o ponto de partida de um vasto
movimento humano. Poderiam me dizer que esta revelação não é um privilégio da
Itália. Creio que sim. Nesta quantidade de gente designadas como defeitos de
nosso povo, e que são ao contrário suas virtudes – a carência social aparente,
o individualismo, etc... – podemos encontrar as razões de uma vocação, a razão
plena e apaixonada contra a injúria suprema que é a guerra. E este não é o
homem histórico que reage, o homem abstrato dos livros situado em uma
trajetória sem fim de datas, que são as datas das guerras passadas, presentes
ou futuras, mas o homem mais profundo e secreto. Você poderia objetar que o
homem histórico e o homem epíteto coabitam continuamente: admitimos, mas eles
coabitam utilmente quando, pelo princípio dos vasos comunicantes, eles tendem a
ocupar o mesmo nível, primeiro com sua consciência, e segundo com sua
necessidade original de viver. A necessidade de viver, quando é rico e feliz
pode melhor atravessar seus limites que ele escolhe, porque em ultimo caso, um
povo decadente não pode trazer a menor contribuição à humanidade. Ouso pensar
que outros povos, mesmo depois da guerra, continuarão a considerar o homem
enquanto matéria histórica, determinado em seu movimento, mesmo fatal, e que é
o porquê não nos dão um cinema de libertação, como começou a fazer o cinema
italiano: este que por eles, justamente, tudo continuou, enquanto que por nós começou; por eles, a guerra foi uma
das guerras que afligiram nosso planeta, por nós ela teria sido a ultima
guerra. Poderiam eles ser a consequência de suas descobertas, o ímpeto dos
pioneiros, novidade não porque jamais conhecida anteriormente, mas porque
jamais de uma maneira também coletiva e tenaz? As consequências são estas que
veremos abrir a nossa frente um estudo sem fim de como o homem provocou e
sustentou a guerra. Esta é a necessidade de conhecer, de ver como estes eventos
terríveis puderam acontecer, e o cinema é o meio mais direto e mais imediato
para este tipo de exame, melhor que os outros meios de cultura; a linguagem
destes últimos não está próxima de exprimir nossas reações contra as mentiras
das velhas ideias gerais, como nós nos encontramos vestidos ao momento da
guerra e que nos encontramos impedidos de tentar a menor revolta.
Este desejo pulsante do cinema de
ver e de analisar, esta fome de realidade, é de qualquer forma uma homenagem
concreta aos outros, a tudo que existe. E, entre outras coisas, é isto que
distingue o neorrealismo do cinema americano. Com efeito, a posição dos
americanos é antípoda à nossa: eis que somos solicitados pela realidade que nos
toca, que queremos conhecê-la diretamente e a fundo, os americanos continuam a
se contentar com um conhecimento adocicado, através das transposições.
Eis porque, se podemos falar, pela
américa, de uma crise temática, esta crise é impossível entre nós. Não pode
haver carência de temas entre nós, porque não há carência de realidade.
Qualquer a hora do dia, qualquer lugar, qualquer pessoa, pode contar se for
contado de tal modo que revele um modo de destacar os elementos coletivos que
os formem continuamente.
Eis porque não se pode falar de
crise de temas (os fatos) mas, o caso aplicável, de crise de conteúdos (a
interpretação destes fatos).
Esta diferença essencial foi bem
sublinhada por um produtor americano que me disse: - Entre nós, a cena de um
avião que passa é concebida de certa maneira: uma avião passa... tiros de
metralhadora, ... o avião cai. Entre vocês: um avião passa... o avião passa
novamente... o avião passa uma terceira vez.
É perfeitamente verdadeiro. Mas ainda
é pouco. Não é suficiente fazer o avião passar três vezes, é necessário fazê-lo
passar vinte vezes.
Nós trabalhamos para expulsar as
abstrações.
Em um romance, os protagonistas são
os heróis; o sapato do herói era um sapato especial. Nós, ao contrário,
procuramos encontrar o que nossos personagens têm de comum: em meu sapato, no
seu, no do rico, naquele do trabalhador, encontramos os mesmos elementos, o
mesmo trabalho humano.
E chegamos ao estilo. Em outras
palavras, como faremos para exprimir cinematograficamente esta realidade? Eu
repetiria antes, como já disse, que o conteúdo exprimido possui sempre sua
própria técnica. Caso contrário, há imaginação, mas sob a condição que ela
exerce na realidade e não nos limbos. Mas, o que compreendo bem, não daria a
acreditar que os fatos diversos sejam
por mim os únicos fatos que contam. Ensaiei de fixar minha atenção sobre fatos
diversos, na intensão de reconstituir da maneira mais fiel, em me servindo de
um pouco de imaginação que pode vir do conhecimento perfeito do próprio fato.
Será evidentemente mais coerente que as câmeras surpreendam ao momento mesmo em
que eles chegam – e é minha intensão, quando realizo um filme meu em Itália.
Bem entendido, não se pode jamais esquecer que todo relato da coisa que vá comunicar
implica em uma escolha e, por
consequência, o ato criativo do sujeito:
mas o sujeito é composto de qualquer tipo no local, ao invés de ser uma
reconstituição sucessiva. É isto que chamo de cinema de reencontro. Este método de trabalho deveria conduzir, a
meu ver, a dois resultados: antes, ao que concerne ao ponto de vista ético, os
cineastas sairão, buscarão o contato
direto com a realidade: de outro modo, criaríamos uma produção que traria a
novidade de uma consciência coletiva. Porque o nome joga também: se fazemos 100
filmes por ano que se inspirem neste critério, mudaremos os relatórios de
produção se não fazemos mais que três, nos submetemos aos relatos das produções
tais quais existem hoje.
A tomada de consciência da realidade
que caracteriza o neorrealismo possui duas consequências no que concerne à
construção de um roteiro estritamente narrativo:
1)
Um cinema que de outra forma contava um fato de onde provinha outro, depois um
terceiro, e assim sucessivamente, cada cena era concebida e feita para ser
imediatamente obrigada; hoje, quando imaginamos uma cena, sentimos a necessidade de “permanecer” nesta
cena, porque sabemos que ela possui todas as possibilidades de repercutir mais
além. Podemos dizer tranquilamente: dê-nos um fato qualquer e nós conseguiremos
transformá-lo em espetáculo. A força centrífuga
que constitui (mais do ponto de vista técnico do que do ponto de vista moral) a
característica fundamental do cinema é transformada em força centrípeta;
2)
ainda que o cinema tenha sempre contado a vida em seus fatos mais exteriores, o
neorrealismo afirma hoje que ele não pode conter a alusão, mais terna da
análise. Ou mais ainda de uma síntese ao interior da análise.
Daremos um exemplo: a aventura de
dois seres que buscam um apartamento. Ainda que uma vez tenhamos colocado como
ponto de partida, tomando em consideração o simples pretexto exterior que ele
comporta, para passar imediatamente a outra coisa, hoje se pode afirmar que o
simples fato de buscar um apartamento deveria constituir todo o tema de um
filme, se, bem entendido, este fato estiver escancarado em todos os momentos,
com todos os ecos e os reflexos que derivam.
Compreendemos facilmente que estamos
ainda longe da verdadeira análise; podemos falar simplesmente da análise por
oposição da síntese grosseira da produção corrente. Por enquanto, não
conhecemos mais que uma “atitude” analítica, mas já esta atitude comporta a
pulsação movente nas coisas, um desejo de compreensão, de adesão, de participação,
e somando tudo, de coabitação.
Este princípio de análise se
encontra na consideração sobre estilo, em seu sentido mais estrito, e oposto à síntese burguesa. A síntese burguesa
permitiu encontrar o melhor alimento, a parte selecionada da rede: os cineastas
depenam os aspectos mais representativos de uma situação de bem-estar e de
privilégio. Ora, para precisar criticamente o alcance do neorrealismo, é
preciso sublinhar a parte que leva sempre mais largamente à cultura italiana (e
não pode ser de outra maneira, sendo dada a colaboração de mais e mais
escritores realistas à criação cinematográfica). Quanto a esta colaboração –
que não deve se confinar a oferecer romances, mas que deve contribuir para
enriquecer a linguagem cinematográfica, tão rica de possibilidades quanto a
linguagem literária, – não há dúvida de que deveria fazer grandes progressos ao
cinema, pelo pouco que os escritores se interessam de maneira menos
“provisória” que aqueles que o fazem por hábito.
Disto tenho dito, o neorrealismo,
contrariamente ao que foi feito na época da guerra, entendeu que o cinema deve
contar pequenos fatos, sem introduzir a menor imaginação, se esforçando por
analisar o que seja humano, histórico, determinante e de definitivo.
Creio mais firmemente que o mundo
continua a ir mal porque não conhece a realidade: e a tarefa mais autêntica de
um homem de hoje consiste em se engajar para resolver o melhor que puder o
problema do conhecimento da realidade. Eis porque a necessidade mais urgente de
nosso tempo é a atenção social, mas
esta atenção deve ser direta, como já disse, e não se manifestando através de
apologias mais ou menos bem sucedidas. Um faminto, um humilhado, faltam ser
mostrados com seus nomes e sobrenomes, e não contar uma história onde há um
faminto e um humilhado, porque a este momento tudo muda, tudo é menos eficaz,
menos moral.
A verdadeira função de todas as
artes sempre foi aquela de exprimir as necessidades de seu tempo; e é a esta
função que queremos trazer de volta.
Ora, algum outro meio de expressão
possibilita como o cinema, fazer conhecer as coisas rapidamente e ao máximo de
pessoas...
...É natural que estes que tenham
compreendido as coisas, bem que ainda obrigados por todos os tipos de razões
(umas válidas, outras não), de compor histórias “inventadas” segundo a
tradição, buscaram introduzir nestas histórias quaisquer elementos que tenham
descoberto.
Eis o que foi efetivamente o
neorrealismo na Itália, através de alguns homens.
Paisà,
Roma, cidade aberta, Ladrões de bicicleta, Terra trema, são filmes que contém
passagens de uma significação total e que se inspiram na possibilidade de tudo
contar; mas, de certo sentido, eles comportam ainda transposições, porque
contam uma história e não aplicam simplesmente o espírito documental. Em certos
filmes como Umberto D., o fato analisado
é bem mais evidente: mas o quadro é aquele do conto habitual, e nós ainda não
estamos no verdadeiro neorrealismo.
O neorrealismo é hoje uma armada
pronta para se por em marcha. Os soldados estão prontos atrás de Rossellini,
Sica, Visconti. O que os fará partir para o assalto: é somente então que a
batalha poderá ser ganha.
Mas o que importa, é que o movimento
começou: ou que vá até o fim, ou que perca uma grande oportunidade, porque em
frente ao realismo se trabalham perspectivas mais vastas que tudo que se pode
imaginar...
Transformar em espetáculo os fatos
cotidianos da vida não é coisa fácil: se pede intensidade de visão, assim como
faz o filme com aquele que o vê. Se agita para dar à vida do homem sua
importância histórica em todos os instantes.
Nisto que concerne outros filmes
recentes com os quais colaborei, digo, por exemplo, não tenho com Quando a mulher erra por documento
importante de minha carreira de neorrealista, porque o fato da coprodução
reduziu a quase nada a inspiração primitiva, que portava o exame de um momento
e de um lugar bem determinados.
Entre meus próximos filmes, Italia mia tem um ponto de partida
neorrealista num sentido bem preciso: ele parte da necessidade de conhecer
profundamente meu país e de minha confiança absoluta nos encontros que faria. Os “aspectos” do neorrealismo figuram na ideia
central de meu “filme enquete”, Amore in
Citta (que sai em breve); e diria ainda Siamo
donne, ao menos pelo fato que ele reencontra um sentido moral na
necessidade de comunicação que inspira as estrelas que se confessam ao público.
Em presença destas confissões, o espectador deve se libertar do complexo de
inferioridade que experimenta frente ao mito da estrela.
Foi colocada todos tipos de acusação
contra o neorrealismo. Aqui as principais:
1)O neorrealismo descreve unicamente a miséria
O
neorrealismo pode e deve estudar a miséria como a riqueza; começamos pela
miséria simplesmente porque ela é uma das realidades mais vivas de nosso tempo:
desafio qualquer um a me demonstrar o contrário. Creia ou finja crer que antes
de uma meia-dúzia de filmes sobre a pobreza o tema já esteja esgotado é um
grande erro. O tema da pobreza (os ricos e os pobres) é um daqueles ao qual se
pode dedicar durante toda uma vida. Nós apenas começamos. E se os ricos fecham
as caras perante Milagre em Milão,
que é uma fábula, eles verão melhor. Coloco-me, eu mesmo, entre os ricos: o que
há em nós os ricos, não é somente a riqueza com dinheiro (o dinheiro que não é
senão o aspecto mais suntuoso e o mais aparente), mas todas as formas de
injustiça e violência que fluem. Não existe uma posição “moral” do homem que
dito rico.
2) O neorrealismo não oferece soluções, não mostra rotas novas: as
conclusões dos filmes neorrealistas são absolutamente evasivas.
Respondo esta acusação com todas
minhas forças. Cada momento de um de nossos filmes é uma resposta contínua a
interrogações. Quanto às soluções, não é do artista como tal as considerar: ele
simplesmente, e já é muito, faz sentir a necessidade e a urgência.
3) Os fatos não interessam a ninguém, nem constituem um espetáculo
Quando contornamos a análise do
“fato qualquer”, os cineastas não obedecem os desejos mais ou menos expressos
dos fundos capitalistas do cinema e do próprio público, sucumbindo a uma
espécie de preguiça, porque a análise de um fato é sempre mais difícil de
efetuar que a enumeração de um único arquivo de um fato antes de outro. Em
outras palavras, este problema de aprofundamento que contornam os cineastas.
O verdadeiro cinema neorrealista
torna-se naturalmente um cinema menos caro que o cinema atual porque seu
conteúdo pode ser exprimido mais economicamente. A consequência mais importante
é que ele pode se libertar assim do capitalismo. De fato, todas as artes buscam
se exprimir pelo meio mais econômico: mais uma arte é moral e menos ela implica
em custos. A imortalidade social do cinema vem de seu preço elevado. O cinema
ainda não encontrou sua moral, sua necessidade, sua qualidade, porque custa
muito caro.
Temos a ilusão, – chame assim, se
quiser, – que conosco começa algo de diferente. Com efeito, o homem que sofre à
minha frente é absolutamente diferente do homem que sofreu há cem anos.
Concentro toda minha atenção no homem de hoje. E a bagagem histórica que
carrego comigo, e que além disso eu não faria – e nem poderia – me libertar
brutalmente, e nem devo me impedir de ser tudo ao meu desejo de emancipar este
homem de seu sofrimento em me servindo de meios dos quais disponho. Este homem
(é uma de minhas ideias fixas) tem um nome e sobrenome, pertence à sociedade
que também nos concerne sem erro possível: sinto sua fascinação, de modo que
sinto de modo premente, que sou obrigado a falar dele, dele e não de uma
personagem inventada, porque a este momento a imaginação se interpõe entre a
realidade e eu...
...Me é muitas vezes pedido para
explicar porque os atores são impedidos de atuar no cinema: digo que os atores
devem atuar no cinema, mas que eles não têm grandes coisas a fazer com o
neorrealismo. O cinema neorrealista não demanda aos homens verem os atores
profissionais; suas habilidades profissionais têm à sua profissão homens, que
eles dotam da consciência mais profunda. Mas é evidente que esta consciência
não pode ser criada ou reforçada através do conhecimento que farão eles
próprios e outros, conhecer o que é melhor alcançado pelo cinema neorrealista.
Mas então, me dirão, como e quando
intervém a imaginação? Ela se agita de uma imaginação particular e de um novo
método a ser utilizado.
Aqui um exemplo: uma mulher vai até
o sapateiro comprar sapatos para seus filhos. Estes sapatos custam 7.000 liras.
A mulher procura pagar-lhe menos.
A cena dura dez minutos. E acontece se
eu fizer um filme de dez horas. Como? Analiso o fato em todos os seus elementos
constitutivos, o que vem antes, o que vem depois, e o que se passa entre
tempos.
A mulher procura os sapatos: o que
faz seu filho durante este tempo? Que se passa na Índia, que possa ser
relacionado com um par de sapatos?
Os sapatos custam 7.000 liras, como
eles chegam às mãos desta mulher, o problema do custo que lhes impõe, o que
eles representam para ela?
E o sapateiro que vende os sapatos,
quem é ele? O que acontece entre estes dois seres? Ele também tem dois filhos
para alimentar, com quem conversar. Você quer entender a conversa deles? Eis
então.
E assim sucessivamente. Vamos ao
fundo das coisas, de mostrar as relações entre os fatos e o processo de onde
nascem os fatos. Se analisamos o tipo de “achado de um par de sapatos”, veremos
em nossa frente um mundo complexo e vasto, rico em peso e valor, nestes motivos
práticos, sociais, econômicos, psicológicos. O banal desaparece, porque não
existe.
Sou contra as personagens
excepcionais, os heróis, sempre experimentei um ódio instintivo a seu respeito.
Me sinto ofendido por sua presença, excluído de um mundo ao mesmo tempo que
milhões de outros seres.
Somos todos personagens. Os heróis
criam complexos de inferioridade nos espectadores. É chegado o momento de dizer
aos espectadores que eles são os verdadeiros protagonistas da vida. O resultado
será uma constante recordação da responsabilidade e da dignidade de cada ser
humano. Tal é a ambição do neorrealismo: fortalecer todo o mundo, dar a cada um
a consciência que ele é humano.
O
termo neorrealismo, em seu sentido mais amplo, implica na eliminação da
colaboração técnico-profissional, cumprindo a do roteirista.
Nos
manuais, nas gramáticas, a sintaxe não possui um sentido, não mais que os
conceitos primeiro-plano, contracampo, etc...
Cada
um de nós faz roteiro a seu modo. O neorrealismo rompe os esquemas, rejeita
todos os dogmas. Ele não pode possuir primeiro-plano ou contracampo a priori.
O
tema, a adaptação, a realização não devem ser três fases distintas de um mesmo
trabalho: são hoje, mas é uma anomalia.
O
roteirista e o adaptador devem desaparecer: chegará um autor único, o
realizador, que terminará por não ter nada de comum com o diretor de cena do
teatro.
Tudo
torna-se móvel, qualquer fato em seu filme, tudo é continuamente possível, tudo
é pleno de possibilidades infinitas, não somente durante a filmagem, mas mais
ainda durante a montagem, a mixagem, etc...
Depois
de 1934 passei a trabalhar para o cinema italiano, e sei que ajudei a destruir
alguns esquemas habituais. Se me coloco entre alguns que creem no neorrealismo
como um chamado poderoso que podemos endereçar às coisas, não é uma falha de
imaginação, porque, ao contrário, me retenho a duas mãos para não ser arrastado
pela minha imaginação. A imaginação no sentido tradicional, vendo: o
neorrealismo exige de nós que nossa imaginação se exerça in loco, sobre o atual,
porque os fatos não revelam sua força imaginativa natural quando eles são
estudados e aprofundados. Eis porque eles devem ser espetáculo, porque são
revelação.
E
sei bem que se pode fazer filmes maravilhosos como aqueles de Charles Chaplin,
e que estas não são obras neorrealistas. Sei bem que existem americanos,
russos, franceses, e assim em diante, que fazem obras-primas honrando a
humanidade: eles certamente não estão estragando a película. E Deus sabe bem
que obras magistrais ainda nos serão dadas, seguindo seu gênio, e com estrelas,
filmadas em estúdios, a partir de romances. Mas os homens do cinema italiano,
por conservar e buscar seu estilo e inspiração, depois de ter entreaberto
corajosamente as portas da realidade, devem agora, creio, trabalhar grande.
(originalmente publicado em Cahiers du Cinéma, março de 1954, n° 33, p. 24 - 31)
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