por: Jacques Doniol-Valcroze
A história da pastora que casa com o
filho do rei, ou do pastor que casa com a princesa é um velho mito que o écran
não se privou de explorar longitudinalmente, amplamente e transversalmente. Em
Hollywood, é mais comum um rei se tornar um bilionário e o pastor um serviçal
de bar, mas que um “romance” qualquer exploda a costa da cabeça das coronárias
autênticas e os roteiristas dizendo que fariam muito errado em se privar de
álibis desprovidos de realidade. Assim a abdicação de Édouard VIII inspira
alguns filmes, como Food for Scandal
com Fernand Gravey e a muito arrependida Carole Lombard. Mas que o monarca do
mito fosse ele de carne enlatada, da Molvadia ou da atualidade, a essência do
sistema seria o irrealismo, diga-se, a convenção de que os reis se casam com
pastoras e que pastores se casam com princesas.
A originalidade e a habilidade de Roman Holliday é de rejeitar o postulado
e de substituir por este: a princesa Anne não pode de modo algum casar com o
jornalista americano Joe Bradley. Tal pensamento jamais aflora de uma pessoa
durante todo o desenrolar do recital. E poderia se surpreender; depois de tudo,
ao ver nossos dias de príncipes e princesas renunciando a todos os direitos
para desposar o objeto amado e incluir este incidente num roteiro poderia
reclamar precedentes reais, mas a habilidade aqui consiste justamente em ser
mais realista que o rei, em forçar a credibilidade na princesa Anna definida
não por seu acidente possível, mas pela tradição intangível; e a habilidade é
dupla porque, ao fazer da princesa um tabu absoluto, o espectador é invariavelmente
atirado a buscar seu modelo, não mais na costa da Moldavia ou mesmo de
Luxemburgo, mas na costa da Inglaterra porque é lá onde reside a única realeza,
tal qual seja seu poder, que não é de modo algum a de uma opereta, a única que
na opinião pública encarna ainda uma forma de majestade, de grandeza e de
característica sagrada que não seja relativa a ela mesma. Os autores do filme
são dados como álibis contra esta confusão que primeiro começa com a visita da
princesa Anne, em viagem pelas capitais europeias, ao palácio de Buckingham;
porque ela é recebida pela rainha Elizabeth, a confusão não é oficialmente
possível, ela não pode ser a Princesa Margaret; e portanto esta confusão, que é
a astúcia n° 1 do roteiro, se impõe. O filme debute das “Atualidades Paramout”
e no fundo moradia eterna “destas” atualidades, nenhum plano indica jamais que
estas atualidades estejam terminadas, e durante estas atualidades vemos a
passagem da princesa Anne por Paris, por Londres, depois por Roma. Cada
jovenzinha dirá que a Princesa Margaret fez uma estadia em Paris e na Itália e
a visita ao palácio de Buckingham é um modo hábil de anexar os dois nomes.
Quaisquer que sejam os álibis, e eles são indiscutíveis, nada o fará: a
princesa Anne não pode ser a princesa Margaret.
Assim posto, o filme torna-se fácil
de fazer. Fácil... entendamos: para roteiristas da inteligência e sensibilidade
de Ian MacLellan Hunter e John Dighton, e para um realizador da envergadura de
William Wyler, para intérpretes com o talento de Audrey Hepburn e de Gregory
Peck.
Filmado em Roma, o filme sofreu –
certamente voluntariamente – as influências dos métodos dos “neorrealistas”:
nada de decoração artificial, nada de “transparência”, nada de um processo
estilístico que nos remeta ao mito da pastora. Porque a princesa é
“verdadeira”, não seria estrago mergulhas na “verdadeira”. Quando me disseram
que este filme é o equivalente de uma comédia de Capra, não acreditei. Não
tenho espaço para fazer a demonstração, mas é manifesto que em Capra o recital,
mesmo quando ele começa do cotidiano, se eleva progressivamente ao conto de
fadas, ao seu modo “moderno”. Aqui é um pouco ao contrário. Não se pode
acreditar um só instante no conto de fadas, mais rapidamente o postulado
realista de base remonta os heróis à razão. Mesmo o modo de explorar as gags é
diferente. Toda a sequência do começo (a viagem da princesa) é em estilo de
“atualidades”, e já há algum tempo que “acreditamos” na princesa quando surge o
primeiro incidente cômico: aquele do
sapato sob o vestido da princesa. Em Capra o incidente teria uma repercussão
pública, os convidados na recepção perceberiam o incidente; aqui, tudo retorna
à ordem do modo privado: não são mais que a dama de companhia e o embaixador
(aliás direi: da Inglaterra) na Itália, as testemunhas. A partir deste momento
compreendi que o filme, apesar de certas aparências, não será uma comédia
americana, mas simplesmente uma charmosa e nostálgica história que o burguês
Wyler entendeu contar deste modo.
Wyler, que Jezabel, The best years of
four lives e The little foxes o
estabeleceram como mestre, nos desapontou a partir do décimo terço de Héritière. Esta decepção se confirma com
Detective story e Carrie estragados por seus roteiros
lamentáveis e pouco fizeram por ele. Com Roman
Holliday ele retorna à cena de nossa admiração com uma elegância discreta e
sensível. Realizando um filme de aparência fácil, ele demonstra que no gênero
dito fácil ainda restam alguns buracos a preencher e que ainda não forma porque
a “minoria” do gênero postulado geralmente faz um esforço menor. Ele, fez uma
varredura limpa. Sobre este terreno estreito ele trabalhou como fez em The best years: em profundidade. Seu
sujeito era o mais movente dos sujeitos do amor: seu nascimento e sua
condenação ao instante mesmo onde ele nasce. E será exprimido no filme com
grande delicadeza: jamais será a questão do amor. Não lembro de ter já visto um
filme de amor ou jamais qualquer pessoa a ter dito a outra: “eu te amo”. Esta
reserva insana surge, de modo mudo, à cena final da conferência de imprensa.
Mas lá Wyler pode insistir porque o laço foi laçado, e o fosso do novamente
alargado e porque esta cena é que é a verdadeira cena de amor do filme, mais
que quaisquer beijos furtivos trocados às escondidas, porque são lá que são
dadas as “evidências de amor” (a doação das fotos) e as promessas de
fidelidade... de qualquer tipo metafísico.
Frente a Gregory Peck, excelente
como de costume, há, portando um nome terrível para o cinema, mas digno de
portar, inominável em todos os pontos, Audrey Hepburn. Nem me darei ao ridículo
de descobrir. Gigi, muito aplaudido,
aclamado em Nova York em Ondine – e
Giraudoux era o amado – “Oscar” 1954 – e quando farão eles mérito maior? –
honrando as coberturas de Life, Time e Look, Audrey Hepburn é talvez hoje, aos
vinte e quatro anos, a mais célebre das jovens iniciantes. Todos os adjetivos
que faltam utilizar com precaução à convém: requintada, adorável, comovente,
brincalhona como o vento, secreta como a noite, pequena lua, pequeno sol,
jovem, princesa...
(publicado originalmente em Cahiers du cinéma, n° 34, em abril de 1954)
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