terça-feira, 19 de maio de 2020

A decadência do cinema


Susan Sontag
Tradução: Yves São Paulo



[este ensaio foi publicado por Susan Sontag em fevereiro de 1996, por ocasião dos 100 anos do cinema, no The New York Times. O texto original pode ser encontrado em: https://archive.nytimes.com/www.nytimes.com/books/00/03/12/specials/sontag-cinema.html]

Os cem anos do cinema parece ter o movimento de um ciclo de vida: um nascimento inevitável, uma acumulação permanente de glórias, e o início na última década de um declínio ignominioso, irreversível. Não é que você não possa esperar mais por novos filmes que possa admirar, mas não somente tais filmes a ser admirados têm de ser exceções – o que é verdade para qualquer conquista em outras artes –, eles terão que ser verdadeiras violações das normas e práticas que hoje governam a feitura de filmes em todo o mundo capitalista e das partes do mundo à beira de se tornar capitalista – o que significa dizer todos os cantos do globo. E filmes ordinários, filmes feitos puramente para entretenimento (ou seja, comerciais), são extraordinariamente tolos; a maioria falha retumbantemente em ter apelo às suas plateias cínicas tidas como principal objetivo. Enquanto o ponto de um grande filme é hoje, mais do que nunca, ser uma realização verdadeiramente singular, o cinema comercial decidiu por adotar a política do inchaço, da feitura derivativa de filmes, uma desavergonhada combinação e recombinação de traços artísticos na esperança de conseguir reproduzir algum sucesso passado. Cinema, uma vez exaltada como sendo a arte do século 20, parece agora, que o século se fecha, uma arte em decadência.

Talvez não tenha sido somente o cinema que tenha terminado, mas apenas a cinefilia – o nome do amor específico que o cinema desperta. Cada arte nutre seus fanáticos. O amor que o cinema inspirava, contudo, era especial. Nasceu da convicção de que o cinema era uma arte sem outra igual: quintessencialmente moderna; poética e misteriosa e erótica e moral – tudo isto ao mesmo tempo. O cinema teve seus apóstolos (como uma religião). Cinema foi uma cruzada. Para cinéfilos, os filmes encapsulavam tudo. Cinema era tanto o livro da arte quanto o livro da vida.

Como muitas pessoas têm notado, o início da produção de filmes cem anos atrás teve, convenientemente, um início duplo. Grosseiramente, no ano de 1895 dois tipos de filmes eram feitos, dois modos de onde o cinema parecia emergir: o cinema enquanto a transcrição da vida real e não ensaiada (com os irmãos Lumière) e o cinema como invenção, artifício, ilusão, fantasia (Méliès). Mas esta oposição não é verdadeira. O ponto principal é de que para aquelas primeiras plateias a própria transcrição da realidade banal – como os irmãos Lumière filmando a chegada do trem à estação – era uma experiência fantástica. O cinema começou com o maravilhamento de que a realidade poderia ser transcrita com tamanho imediatismo. Todo o cinema é uma tentativa de perpetuar e reinventar esta sensação de maravilhamento.

Tudo no cinema começa com aquele momento, 100 anos atrás, quando o trem entrou na estação. As pessoas tomaram os filmes para si, tão logo o público gritava de animação e se abaixava enquanto o trem parecia se mover em sua direção. Até que o advento da televisão esvaziasse as salas de cinema, era com uma visita semanal ao cinema que você aprendia (ou tentava aprender) como andar, fumar, beijar, lutar, enlutar. Os filmes te davam dicas de como ser atraente. Exemplo: é bonito vestir um sobretudo mesmo quando não está chovendo. Mas o que quer que você levasse para casa era apenas parte de uma experiência maior de submergir em vidas diferentes da sua. O desejo de se perder na vida de outras pessoas... nos rostos de outras pessoas. Esta é uma forma mais profunda e mais inclusiva do desejo incorporado na experiência fílmica. Mais ainda do que a experiência que você apropriou para você mesmo era a experiência de se entregar, se transportar para o que estava acontecendo na tela; você queria ser sequestrado pelo filme – e ser sequestrado era como ser sobrecarregado pela presença física da imagem. A experiência de “ir ao cinema” fazia parte disso. Assistir um filme pela televisão não é realmente ter assistido àquele filme. Não é apenas uma questão da dimensão da imagem: a disparidade entre uma imagem maior do que você na tela de cinema e a pequena imagem em sua caixa televisiva; as condições de prestar atenção num filme do espaço doméstico são radicalmente desrespeitosas com um filme. Agora que um filme não tem um tamanho padronizado, as telas nas casas podem ser tão grandes quanto a sala de estar ou a parede do quarto. Mas você continua numa sala de estar ou no quarto. Para ser sequestrado você precisa estar numa sala de cinema, sentado no escuro em meio a estranhos anônimos.

Não existe quantidade certa de luto que faça reviver os rituais desaparecidos – eróticos e ruminantes – da sala escura de cinema. A redução do cinema a imagens agressivas, e a manipulação sem princípios das imagens (cortes cada vez mais acelerados) para apreender a atenção com mais força, têm produzido um tipo de cinema desencarnado e leve que não demanda a atenção completa de ninguém. As imagens agora podem aparecer em qualquer tamanho numa variedade de superfícies: numa tela de cinema, nas paredes de uma discoteca e nas mega telas de uma arena de esportes. A onipresença das imagens em movimento tem diminuído o critério que as pessoas chegaram a ter tanto a respeito do cinema como arte quanto a respeito do cinema como entretenimento popular.

Durante os primeiros anos, essencialmente, não havia diferenças entre estas duas formas. E todos os filmes do período silencioso – desde as obras primas de Feuillade, D. W. Griffith, Dziga Vertov, Pabst, Murnau, King Vidor, até os melodramas de comédias baseados em fórmulas secretas – eram arte de alto nível, especialmente quando comparados com a maioria das obras que viriam em seguida. Com o advento do som, a criação de imagens perdeu muito de seu brilhantismo e poesia, e os padrões comerciais foram se apertando. Este modelo de fazer filmes – o sistema hollywoodiano – dominou a produção de filmes por pelo menos 25 anos (aproximadamente entre 1930 a 1955). Os diretores mais originais, como Erich von Stroheim, e Orson Welles, eram derrotados pelo sistema e eventualmente entravam num exílio artístico na Europa – onde um sistema semelhante derrubador de qualidades estava ganhando espaço, com orçamentos menores; somente na França houve uma quantidade de filmes soberbos produzidos ao longo deste mesmo período. Então, no meio dos anos 1950, ideias vanguardistas tomaram espaço, enraizadas pela ideia de que o cinema é um ofício astucioso, tendo como pioneiros os filmes italianos do período imediato do pós-guerra. Um número deslumbrante de filmes originais, apaixonados, da mais alta seriedade foram feitos.

Foi durante este específico período durante os 100 anos da história do cinema que ir ao cinema, pensar sobre filmes, conversar sobre filmes se tornou uma paixão entre estudantes universitários e outros jovens. Você se apaixonava não somente pelos atores, mas pelo próprio cinema. A cinefilia havia se tornado visível primeiro na França dos anos 1950: seu fórum era a lendária revista Cahiers du Cinéma (seguida por revistas fervilhantes na Alemanha, Itália, Grã-Bretanha, Suécia, Estados Unidos e Canadá). Os templos, a medida em que se espalhavam pela Europa e pelas Américas, eram as muitas cinematecas e clubes especializados em filmes do passado ou retrospectivas de diretores que brotaram durante o período. Os anos 1960 e 1970 foram um período fervoroso para ir ao cinema, com o cinéfilo de tempo integral sempre esperando encontrar um lugar o mais próximo possível da tela, idealmente a terceira fila, no meio. “Não se pode viver sem Rossellini”, declara uma personagem de Bertolucci em Antes da revolução (1964) – o que significa tudo isto.

Ao longo de 15 anos havia uma nova obra prima a cada mês. O quão distante aquela era nos parece agora. De fato, sempre houve conflito entre o cinema enquanto indústria e o cinema enquanto arte, cinema enquanto rotina e cinema enquanto experimento. Mas o conflito não era tal que impossibilitava a construção de grandes filmes, às vezes até mesmo dentro e às vezes fora do cinema mainstream. O grande cinema dos anos 1960 e 1970 têm sido constantemente repudiados. Mesmo nos anos 1970, Hollywood estava a plagiar e transformar em banalidades as inovações em métodos narrativos e os métodos de edição dos filmes bem sucedidos independentes americanos que aspiravam aos filmes europeus. Então veio o catastrófico aumento do custo para produção de filmes durante os anos 1980, o que assegurou a reimposição global dos padrões industriais de fazer e distribuir filmes de maneira mais coerciva. O aumento do custo dos filmes significou que os filmes tinham que render muito dinheiro de imediato, logo no primeiro mês de lançamento, para que ele fosse rentável – uma tendência que favoreceu os blockbusters acima dos filmes de baixo orçamento, mesmo que a maioria dos blockbusters fossem fracassos e sempre houvessem alguns filmes “pequenos” a surpreender todo mundo baseado em seu apelo. O lançamento dos filmes nos cinemas foi ficando cada vez mais curto (assim como a vida de livros nas prateleiras das livrarias); muitos filmes passaram a ser lançados diretamente em vídeo. Salas de cinema continuaram a fechar – muitas cidades nem sequer tem uma – enquanto os filmes se tornaram, principalmente, mais uma dentre uma variedade de entretenimentos caseiros.

Aqui nos EUA, a queda das expectativas pela qualidade e o aumento das expectativas por lucro fizeram com que fosse virtualmente impossível diretores americanos como Francis Ford Coppola e Paul Schrader serem artisticamente ambiciosos, a trabalhar em seu mais alto nível. No exterior, o resultado pode ser visto no destino melancólico que tiveram alguns diretores nas últimas décadas. Qual o espaço que há hoje para um dissidente como Hans-Jurgen Syberberg, que parou de fazer filmes, ou o grande Godard, que agora apenas faz filmes sobre a história dos filmes, em vídeo? Considere alguns outros casos. A internacionalização das finanças e subsequentemente de equipes foi desastrosa para Andrei Tarkovski em seus dois últimos filmes de uma carreira (tragicamente abreviada) estupenda. E como continuará Aleksandr Sokurov a encontrar financiamento para fazer seus filmes sublimes, sob os rudes ditames das condições do capitalismo russo?

Como era previsível, o amor pelo cinema minguou. As pessoas ainda gostam de ir aos cinemas, e algumas pessoas ainda se importam e esperam algo de especial dos filmes. E alguns filmes maravilhosos continuam a ser feitos: Nu, de Mike Leigh (1993), América, de Gianni Amelio (1994), Fate, de Fred Kelemen (1994). Mas você dificilmente encontra mais, entre os jovens, esta distinta paixão cinéfila pelos filmes que não seja somente uma paixão por um certo tipo de filmes (baseado em um vasto apetite por ver e rever o máximo possível do glorioso passado do cinema). A própria cinefilia está sob ataque, como algo exótico, fora de moda, esnobe. Porque cinefilia implica que filmes sejam únicos, irrepetíveis, experiências mágicas. Cinefilia nos diz que o remake hollywoodiano de Acossado, de Godard, não pode ser tão bom quanto o original. Cinefilia não tem espaço na era hiper industrial dos filmes. Porque a cinefilia não pode deixar de defender, pelo seu próprio vasto alcance e pelo ecletismo de suas paixões, a ideia de que os filmes são acima de tudo um objeto de poesia; e não pode se deixar de incitar aqueles de fora da indústria do cinema, como escritores e pintores, a entrar para o mundo do cinema e fazer filmes também. É exatamente esta a noção que foi derrotada.

Se a cinefilia está morta, então os filmes também morreram... não importa a quantidade de filmes, até mesmo os bons filmes, que continuem a ser feitos. Se o cinema pode ser renascido, somente será por uma nova forma de cine-amor.