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segunda-feira, 3 de maio de 2021

10 filmes sobre cinefilia

 Em ocasião do lançamento de meu livro, A metafísica da cinefilia, onde busco compreender filosoficamente a cinefilia como uma emoção, trago aos leitores deste blog uma lista com 10 filmes sobre a cinefilia (para além de Cinema paradiso).

            O critério do que seria um filme sobre a cinefilia é apresentar personagens apaixonados pelo cinema em uma relação espectatorial contínua, ou seja, não encerrando em apenas uma cena de ida ao cinema. Descartamos igualmente os filmes sobre produção e filmagem, nosso interesse é particularmente por filmes focando a experiência do espectador (o que nos leva a não incluir alguns dos filmes dos cinéfilos da Nouvelle Vague).

            A lista procura ser o mais democrática possível, trazendo indicações que levantem a curiosidade do leitor, quiçá atiçando a assistir as obras desta lista. Convidamos também a abertura de sugestões nos comentários.

1.      Sherlock Jr., 1924, dir. Buster Keaton


Neste clássico de Buster Keaton, um jovem projecionista altamente sugestionável pelos filmes que assiste, tenta solucionar o mistério de quem haveria roubado o relógio de bolso do pai de sua namorada. Caindo no sono durante a projeção de um filme, o jovem se vê transportado para dentro da tela, transformando-se em personagem. Esta é uma das cenas mais fantásticas do cinema, utilizando diversos recursos técnicos para criar gags cômicas que levam a personagem de um cenário a outro num piscar de olhos, sem qualquer aviso prévio de mudança.

Filme de 1924, Sherlock Jr. (disponível no Youtube) apresenta como subtexto uma juventude que forma seu caráter assistindo a filmes, imitando os gestos das personagens da tela.


2.      Eu, você, e a garota que vai morrer, 2015, dir. Alfonso Gomes-Rejon

A cinefilia dos adolescentes de Eu, você e a garota que vai morrer reflete a de muita gente que vive em cidades do interior, sem acesso às salas de cinema. Ela se passa na sala de casa, assistindo filmes em DVD (ou Blu-ray, ou streaming, ou download) e vivendo no choque posterior que cada um desses filmes causa. Greg e seu amigo Earl assistem clássicos do cinema mundial, mais tarde fazendo vídeos parodiando estes mesmos filmes partindo apenas de um trocadilho engraçadinho.

São muitas as referências aos clássicos que todos cinéfilo já devem ter assistido ao menos uma vez ao longo da vida. O bonito desta obra é como ela demonstra o papel algo terapêutico do cinema em acomodar nossas crises pessoais, em mostrar também o papel agregador da cinefilia ao unir pessoas de inaptidão social.


3.      As poltronas do cine Alcazar, 1989, Luc Moullet

Feito por um cinéfilo profissional, ou seja, um crítico de cinema da mítica revista francesa Cahiers du cinema, este filme acompanha um crítico de cinema da mesma publicação assistindo sessões de filmes do cineasta italiano Vittorio Cottafavi. Um dia, ele nota a presença de uma mulher nas cadeiras do cinema, uma crítica para uma revista rival, a Positif.

Esta obra é como uma grande piada interna para um grupo seleto de cinéfilos conhecedores dos anos de ouro da cinefilia francesa dos anos 1950-60, quando autores como François Truffaut, Jean-Luc Godard, Claude Chabrol, André Bazin, Éric Rohmer, escreviam para os Cahiers tendo como preferidos autores que eram menosprezados pelos críticos da Positif. Para além disso, ainda são dados alguns detalhes de como estes cinéfilos acompanhavam os filmes, buscando as cadeiras da primeira fila do cinema (reservada para as crianças) para ser o primeiro a receber as imagens.


4.      A rosa púrpura do Cairo, 1985, dir. Woody Allen

Sem dúvida uma das maiores obras de Woody Allen, A rosa púrpura do Cairo apresenta uma dona de casa que sofre com os abusos de seu marido, buscando refúgio nas fantasias da sala de cinema. Inspirado em peça de Luigi Pirandello, o filme apresenta Cecilia, que de tanto assistir ao mesmo filme já chegou a decorar as falas, o que desperta a curiosidade... dos personagens do filme! Então Tom Baxter, personagem da obra, transpõe os limites entre os dois mundos e salta para o outro lado da tela, passando a fazer parte do mundo de Cecilia.

Muito próximo do tema de Sherlock Jr., A rosa púrpura do Cairo imagina o aspecto escapista da fantasia, quando a espectadora imerge a tal ponto no mundo da ficção que já não consegue distinguir o real do não real. O processo de reconhecimento do real por parte de Cecilia é um dos momentos mais tocantes da filmografia de Woody Allen.


5.      Adeus, Dragon Inn, 2003, dir. Tsai Ming-Liang

Um gigantesco cinema de Taiwan está para fechar as portas. Como última sessão, exibem um filme de artes marciais antigo. São muitas as cadeiras vazias, preenchidas por personagens que parecem pouco se importar com o filme e mais uns com os outros. Adeus, Dragon Inn é um filme sobre a decadência do ir ao cinema, quando as salas fora de shoppings ou museus passam a ser frequentadas por figuras em busca de encontros sexuais.

Um filme silencioso, onde o olhar das personagens é o que mais fala, Dragon Inn tem apenas quatro falas ao final, quando o filme já encerrou, no devido respeito cinéfilo ao filme sendo exibido. Não surpreende que as falas sejam feitas por dois senhores acompanhando o filme com seus netos. Ao que parece, fizeram parte da produção daquele filme que vemos em partes quando a câmera se volta para a tela. É um filme de adeus, mas que pode também ser um novo começo – os avôs levando seus netos é a formação de novo público, renovando interesse pela arte do cinema.


6.      Close-up, 1990 / Shirin, 2008, dir. Abbas Kiarostami

Temos aqui dois filmes do mestre iraniano Abbas Kiarostami. O primeiro, Close-up, é um misto de documentário e ficção. Atraído pela história de um cinéfilo, Hossain Sabzian, que fingiu ser o cineasta Mohsen Makhmalbaf para convencer uma família de que eles iriam atuar em seu novo filme, Kiarostami vai até a prisão onde está o homem para entrevistá-lo e propor que façam um filme recontando a própria história. Para quem tem curiosidade de conhecer um cinema profundamente humanista, o primeiro passo é conhecer os filmes de Kiarostami e como ele filma suas personagens.

O segundo filme aqui apresentado é Shirin, uma obra bem diferente do tradicional. Kiarostami convida algumas das atrizes mais famosas do Irã para a sala de cinema que tem em sua casa. Elas assistirão a um filme contando uma antiga história persa a respeito de Shirin. Enquanto escutamos a história, tudo que Kiarostami nos oferece são as feições das atrizes, ou seja, das espectadoras assistindo a história daquela mulher numa tela que não vemos. O interesse volta-se da ação na tela para as emoções que surgem nos espectadores. Porque também nós construímos o nosso próprio filme a medida em que assistimos.


7.      Rebobine, por favor, 2008, dir. Michel Gondry

Filme de Michel Gondry (diretor de Brilho eterno de uma mente sem lembranças), guarda algumas semelhanças com Eu, você e a garota que vai morrer, ainda que não seja tão comovente quanto. Aqui, a cinefilia envolve o aluguel de filmes em VHS, e a sua eventual queda. De fato, o tempo de glória do VHS não foi duradouro. Quando a personagem de Jack Black inadvertidamente apaga todo o conteúdo dos filmes, ele e o atendente da locadora se veem obrigados a preencher o conteúdo das fitas. O que fazem é filmar ao seu próprio estilo, com os recursos disponíveis à mão, alguns dos filmes mais famosos dos anos 1980 – Robocop, Os Caça-fantasmas...


8.      Os sonhadores, 2003, dir. Bernardo Bertolucci

Bernardo Bertolucci relembra a cinefilia formada em torno da Cinemateca Francesa, responsável pela criação de muitos intelectuais. Iniciando com as manifestações contra a deposição de Henri Langlois de seu cargo de presidente da Cinemateca pelo governo De Gaulle, o filme mostra o papel do cinema no desenvolvimento intelectual da juventude, e a fomentação do sentimento de mudar os rumos da história. A obra acompanha não somente as manifestações em apoio a Langlois, como também o maior de 1968 na capital francesa.


9.      Pornográphico, 2008, dir. Paula Gomes, Haroldo Borges

Estava dividido entre Lisbela e o prisioneiro e Cine Holiúdi, quando a memória me trouxe esta pérola do curta-metragem brasileiro. Acompanhando um projecionista de cinema pornográfico, que noite após noite acompanha a chegada de homens em busca de sexo fácil e de prostitutas. Numa noite chuvosa, a única espectadora do cinema é uma deslumbrante prostituta num vestido vermelho, algo como uma aparição de algum filme que o projecionista teria assistido anos antes. Aproveitando a solidão da moça, ele aproveita e saca outra película que tem guardada em seu estoque: Cantando na chuva. A moça, surpresa, rasga um sorriso com a poesia do momento.


10.  Splendor, 1989, dir. Ettore Scola

Marcelo Mastroiani é dono de um cinema numa cidadezinha italiana, o Splendor. Como há muito tempo os espectadores dos filmes que traz para assistir não são suficientes para pagar as dívidas, ele se vê obrigado a vender o prédio para construção de uma loja de departamentos. Nesta obra, Ettore Scola passeia pela história do cinema na Itália, desde os tempos do cinema itinerante, montando uma tela em praça pública para exibir filmes silenciosos para comunidades de moradores em vilarejos, contando com a ajuda local para apagar os candeeiros das praças para diminuir a luz e ajudar na projeção. Vale ainda apontar para a presença da personagem Luigi, o ajudante do Splendor, cinéfilo que conhece tudo de cinema e tem nomes de filmes, estrelas e diretores na ponta da língua.


domingo, 22 de novembro de 2015

Fellini sobre o ator-palhaço


"'A propósito', disseram-me, 'em geral os palhaços são homens. Ao contrário, as maiores figuras de palhaço de seus filmes precedentes são Gelsomina e Cabíria, duas mulheres. Por quê?'"

Na realidade o único grande palhaço mulher que me lembro é miss Lulí. Gelsomina e Cabíria, em meus filmes, são dois augustos. Não são mulheres, são assexuados. São Fortunellos.

Os palhaços não têm sexo. Grock tem sexo? Carlitos tem sexo? Recentemente vi O circo, uma obra-prima absoluta. Mas Carlitos com certeza não era aquele homem patético de que tanto se falou. Era um gato feliz, que sacode os ombros e vai embora.

Voltando ao sexo dos palhaços, o gordo e o magro dormem juntos. São dois augustos cheios de inocência, com uma absoluta falta de caráter sexual. Fazem rir por isso.

Sempre me impressionou a visão destacada e imparcial com que Buster Keaton encara as coisas, os homens, a vida, e que não se parece em nada com aquela de Carlitos, sentimental, romântica, cheia de indignação e de críticas sociais. Buster Keaton não ameaça com o sentimento, suas lutas não procuram reparar erros, injustiças, não querem nos comover ou indignar. Ao contrário, parece que seu esforço obstinado seja no sentido de nos sugerir um ponto de vista, uma perspectiva completamente diferente, quase uma nova filosofia, uma religião que vire do avesso e torne ridícula e inútil todas as ideias, todas as interpretações, os significados, os postulados congelados num conceitualismo inalterável: um ser bufo que venha diretamente do zen-budismo. E, de fato, ele tem a imperturbabilidade, a ausência de reflexos dos orientais; toda sua comicidade está na comicidade dos sonhos nos quais a alegria, a leveza, o aspecto engraçado são vividos em um nível profundo, uma enorme risada silenciosa no imenso, inconciliável contraste entre nossos pontos de vista e o mistério das coisas.

Keaton é moderno, atual. Hoje, com ele nos vemos vivendo situações, acontecimentos, que nos deixam repletos de um estupor que paralisa, petrifica, nos deixa fixos, imóveis, sem reação, assim como ele era.

Em resumo, o tipo de ator que sempre me encantou e fascinou, e pelo qual tenho, a cada vez, um sentimento de obscura e excitante predileção, é o ator-palhaço. O talento de palhaço que os atores em geral, sabe-se lá por que obscuro complexo, continuam a ver com antipática desconfiança é, para mim, sua qualidade mais preciosa, talvez já o tenha dito, mas estou com vontade de repetir, considero-o a expressão mais aristocrática e autêntica de um temperamento."

(FELLINI, F. Fazer um filme. Tradução: Monica Braga. Ed.: Civilização Brasileira. p. 174, 175)

sexta-feira, 5 de junho de 2015

Por um cinema puro


A ideia de um cinema puro surge ainda na década de 1910. Alguns de seus principais pensadores eram figuras que se punham, inicialmente, contrárias ao dispositivo cinematográfico. Mas nesta década se dá uma reviravolta. Nos Estados Unidos, antes da criação de Hollywood, David Griffith filma alguns de seus filmes mais famosos, a exemplo de O nascimento de uma nação de 1914 e Intolerância de 1915. São filmes que mostram às plateias de cinema de todo o mundo o que pode ser feito com o cinema partido de seus recursos próprios. Durante esse período, os cineastas buscavam criar narrativas cinematográficas tão bem desenvolvidas e fluidas quanto aquelas que a literatura apresentava. Griffith foi um dos primeiros a mostrar toda essa potencialidade da representação por meio do cinema. Fez isso partindo da linguagem cinematográfica por ele estruturada nos filmes citados. As histórias podiam transcorrer em sucessão ou em simultaneidade. Os saltos históricos poderiam ocorrer num picar de olhos. Tudo isso possibilitado pelas ferramentas de criação fílmica.

Uma das figuras mais importantes do cinema para chegar neste momento em que Griffith promove esta revolução é o pouco conhecido Edwin Porter. O também estadunidense encontrou um cinema que engatinhava. Contratado pelos estúdios de Thomas Edison, Porter pôde fazer centenas de filmes em poucos anos, o que também lhe permitiu a fazer algumas experiência no decorrer do tempo. Dentre elas está a estruturação de uma narrativa especialmente cinematográfico. Se até então os filmes eram feitos com a câmera distante que filma todo o cenário e a narrativa se apresenta pela relação dos atores na cena - o chamado teatro filmado - com Porter o papel da câmera e da montagem da sequência de ação passa a ser especialmente estruturado para o cinema. Em A vida do bombeiro americano, o cineasta faz a montagem sequenciada dos fatos: 1°) a carruagem dos bombeiros passa pela rua; 2°) os bombeiros chegam à casa em chamas; 3°) a vítima dentro da casa em chamas se desespera; 4°) os bombeiros do lado de fora da casa desenrolam a mangueira e colocam as escadas nas janelas do primeiro andar, um dos bombeiros sobe; 5°) o bombeiro entra pela janela onde a vítima agora está desmaiada; 6°) o bombeiro desce a escada com a vítima desmaiado no ombro. Mesmo tendo feito esta organização da narrativa em 1903, ela somente seria vista seriamente e passaria a ser copiada com o grande sucesso artístico dos filmes de Griffith. Intolerância, por exemplo, trás um modelo diferenciado e ousado de narrativa. São diferentes períodos históricos que vão da antiguidade até a contemporaneidade mostrados em simultaneidade para demonstrar o sentimento de intolerância por meio das décadas.


Na Europa, alguns artistas assistem aos filmes de Griffith e enxergam as muitas possibilidades de experimentações estéticas que podem ser realizadas com aquele dispositivo ainda jovem e que, com muita resistência, não era visto como sendo arte. Neste mesmo período surgem duas ideias que permaneceram no imaginário cinematográfico por muito tempo. O primeiro e mais popular deles é a ideia de "sétima arte", que diz ser o cinema a arte capaz de fazer a junção de todas as demais. Em sentido contrário surge a ideia de "cinema puro". Para os pensadores deste, o cinema é uma arte por si só que deve ser pensada partido de suas especificidades. Griffith é uma das figuras responsáveis a mostrar este caminho a muitos dos pensadores do cinema puro, que encontrará no impressionismo francês seu berço mais confortável. Mas o que seriam as especificidades do cinema? Ora, podemos encontra três delas, num primeiro momento: a câmera, a montagem, a imagem.

Comecemos pela câmera. Esta está sempre presente na produção fílmica, desde os seus primeiros dias quando os Lumière a colocaram em frente a sua fábrica para captar a saída de seus operários. Por muitos tempo, o papel da câmera de cinema foi tomado como simplesmente sendo o dispositivo de captação de imagens, não se enxergando as suas capacidades além. Como exemplo disso se tem muito do acidentalismo das primeiras criações: o primeiro travelling, ou seja o movimento de câmera, somente foi criado porque um dos operadores dos Lumière resolveu filmar os casarões de Veneza colocando a máquina numa gôndola. Apesar de ter seu papel reconhecido pelos cineastas, que por vezes teorizavam sobre seu papel, a real relevância da câmera de cinema dentro do espetáculo fílmico surge quando é adaptado o termo mise-en-scène para o cinema. Mise-en-scène significa encenação, mas a encenação cinematográfica possui algumas particularidades, e a presença da câmera é uma delas. Se inicialmente ela era passiva e simplesmente observava os atores, ela passará a ser ativa dentro da construção das cenas, em muitos casos influenciando o sentido do que é criado.


A montagem, recurso posterior à presença da câmera em cena, é aquela especificidade cinematográfica que primeiro salta aos olhos de espectadores, teóricos e cineastas. Por meio dela foram feitas a maior parte das invenções estéticas do cinema puro. Em grande parte, porque é sabido de que nenhuma outra arte, ao menos no período mudo do cinema (mais tarde a música gravada também se valeria de semelhante recurso), possuía tal ferramenta. Podemos dizer a montagem é a modeladora do espetáculo fílmico. É ela quem fragmenta o espaço e o tempo; por meio dela o cineasta cria um ritmo para sua obra - ritmo esse que Bergson já dizia ser própria à criação artística. No cinema puro, a montagem ganha mais espaço porque será por meio dela que foram feitas as tentativas de não se render à necessidade de colocar os letreiros explicativos que interrompiam a ação. A ação deve correr sem interrupção, o ritmo do filme deve ser respeitado para que o espectador possa ser envolvido na obra - daí a referência a Bergson. E para isso os cortes, as sobreposições, as divisões de tela serão fundamentais para primeiro criar o entendimento da obra que se apresenta, em segundo para envolver o espectador numa relação de afecção pelo filme.

Mas o que colocamos em terceiro aqui, é aquele que de mais importante existe no cinema, e pelo qual tanto a montagem quanto a câmera trabalham em prol de sua construção: a imagem. Mas dizermos que a imagem é uma especificidade do cinema poderia ser contraditório, uma vez que outras artes também possuem imagem como característica principal. Mais que isso, elas contam histórias. Vejamos o caso da pintura: um quadro, mesmo estático, mesmo sem apresentar-nos uma sucessão de situações, é capaz de contar-nos uma história. Heidegger bem nos diz isso em A origem da obra de arte. Ao nos colocarmos em frente a uma pintura, por mais simples que ela seja (como um par de botas), aquilo que ali nos é apresentado se abre. Tomemos o exemplo de Guernica, de Picasso. Ao pintar diferentes detalhes da cena de um bombardeio, Picasso nos possibilita a criação de uma cena mental. Cada detalhes da pintura é, em nossa mente, provido de um tempo, de uma sucessão, e a agonia daquele momento é, por nós, reconstruída.


Fica, assim, a questão: não é esse também o trabalho do cinema? Como poderia ele possuir uma especificidade, como poderia existir um cinema puro? Se a pintura é capaz de nos contar uma história, de fazer-nos criar o desenrolar de uma cena, o cinema possuirá um algo a mais que já se faz presente em seu nome. "Cinema" provém de "cinematógrafo", o aparelho criado pelos irmão Lumière que fotografava 16 quadros por segundo. Estas fotografias eram feitas por um sistema cinético, de movimento. Ao mesmo tempo que a película é puxada, uma paleta posta entre a lente e o filme a cobre brevemente para que ela receba a luz que vem de fora e permita a impressão da imagem. Ou seja, o cinema é a arte das imagens em movimento. Esta afirmação soa banal, sem qualquer novidade, mas passa despercebida tanto por cineastas quanto espectadores ao criar/assistir um filme. Se o cinema é a arte das imagens em movimento o que se espera é que tanto a história seja assim apresentada. Não é o que ocorre.

No período mudo do cinema é o momento mais forte do pensamento do cinema puro exatamente pela obviedade da intromissão de outra arte no campo do cinematógrafo. Os letreiros eram pouquíssimo naturais e deveriam aparecer o menos possível. Os cineastas de menor talento eram aqueles que mais deixavam sua história correr com a intromissão dos cartazes. Outros, mais preocupados em fazer uma arte séria, criavam pactos de fazer filmes com o mínimo de intromissão possível. Charles Chaplin e Buster Keaton eram dois dos que em Hollywood representavam este ideário - curiosamente dois cômicos que necessitavam somente de suas performances em tela para a criação de sua arte. Do outro lado do Atlântico, ao alemães contrariando a expectativa (uma vez que eram os franceses que mais teorizavam o assunto), se saíram bem sucedidos. Karl Grune, em 1923, já fazia de A rua um filme de uma hora e meia com apenas quatro letreiros. No ano seguinte é a vez de Murnau filmar A ultima gargalhada que também em uma hora e meia se vale de somente um letreiro para encerrar seu filme.


O filme de Murnau será tomado como base de modelo de como se fazer um filme de cineastas como Alfred Hitchcock. Este que começou a filmar já no final do período mundo do cinema e que teve que se adaptar ao cinema falado. Junto com a fala, todas as expectativas do cinema puro, de criação de filmes somente visando a construção das imagens, desmorona. As obras passam a ser criadas cada vez mais visando as palavras, os diálogos. Nos anos 1930 - hábito que dura ainda hoje - filmes inteiros passam a ser construídos partindo somente dos diálogos de personagens que nada fazem em tela. Volta-se àquele problema que o cinema de Griffith buscava combater: o teatro filmado. Se os atores entram em cena é para que sirvam à imagem. Tudo que surgem dentro do quadro deve ser em serventia à imagem. E os diálogos não são parte componente da imagem. Ainda falando de Hitchcock, chegamos a lançamento de Psicose, em 1960. O filme foi acusado pela crítica estadunidense de não ter conteúdo e poder ser transformado em curta-metragem. Isso porque a maior parte do filme transcorre sem falas, sempre com as imagens - coisa que foi entendida pela crítica francesa que transformou Hitchcock no maior cineasta hollywoodiano de sua geração. Psicose é um filme falado que surge em imagens, o temor da ladra em fuga, o assassino perturbado, a mulher em busca de sua irmã desaparecida, tudo isso surgindo pelas imagens. Se há diálogos no filme não é para explicar a história, como muitos fazem, mas para pautar a relação entre os personagens - muitos filmes mudos colocavam os atores falando em quadro sem seguir de letreiros.

Outro exemplo que podemos trazer é de Antes do amanhecer, filme de Richard Linklater de 1995. Mesmo não sendo Linklater vinculado a um pensamento cinematográfico semelhante ao do cinema puro, seu filme pode ser pensado dessa forma. Isso porque, mesmo sendo construído de longos diálogos, a relação entre o casal que se conhece num trem com escala em Viena e lá resolvem descer se faz por completo por meio das imagens. O medo de dar o passo seguinte e o desejo do casal é registrado pelas imagens enquanto que suas falas em nada deixam clara esta relação. Quando ao fim do filme eles afirmam seu desejo e paixão pelo outro, nós, espectadores, já o sabemos. O que fica claro neste filme é que o cinema puro não impede a colocação de diálogos no filme, contanto que seja respeitada o princípio do cinema: a construção das imagens em movimento.


Mas ao dar este espaço aos atores, não estaria o cinema fazendo uma coligação com o teatro? Não significa que por ter atores seja teatro. Sim, o primeiro cinema se assemelhava bastante ao teatro pelo modo como era filmado, mas isso deixou de ser verdade. Porque não é a presença do ator em cena que faz disso teatro. Se André Kertèsz contrata atores para pousar para uma fotografia, isso não significa que seja teatro, porque seria no caso do cinema? Pela movimentação? Não, mas por aquilo que já foi aqui dito: a imagem. Os atores surgem em cena para se apresentar como parte constituinte de uma imagem. Como o cinema de Robert Bresson vai mostrar, a presença dos atores em cena deve se voltar somente para a construção imagética do filme. Nos filmes de Bresson os atores não demonstram qualquer emoção, ficando sempre por parte da composição das imagens a passagem desta compreensão. Os atores agem em seus filmes como manequins ambulantes, capazes de recitar textos.

Por fim, qual seria, então, o papel do som no cinema? Também o som pode surgir em relação com as imagens, mas de uma maneira muito mais avançada para a criação de cinema. Ainda na década de 1930, Robert Mamoulian dirige alguns filmes sonoros em que a inventividade na construção do som que com relação a imagem é digno de nota. Se na imagem aparecem três senhoras burguesas, o som de seus sorriso infantil será substituído pelo latido agudo de poodles - uma construção semelhante àquela de Eisenstein ao afirmar que duas imagens confrontadas provocariam uma conclusão. Ou, em Apocalipse now, o sargento a espera de voltar para a guerra, ouve o som de um helicóptero vindo do ventilador de teto. O som, em ambos os casos, provoca uma imagem mental no espectador que dá uma significação para a cena.

O cinema é a arte das imagens em movimento e deve ser pensado e feito como tal.