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sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

A mulher daquela noite, de Yasujiro Ozu (That night's wife, 1930)

por: David Bordwell


Para salvar Michiko, sua filha doente em estado crítico, Shuji Hashizume, um artista comercial, rouba um escritório. Enquanto a polícia o persegue, o médico diz à mãe Mayumi que, se Michiko conseguir sobreviver aquela noite, irá melhorar. Shuji pega um táxi e volta para casa. Promete se entregar no dia seguinte se Michiko melhorar. O motorista do táxi entra, agora revelado como o detetive Kagawa, e tenta prender Shuji, mas Mayumi usa a pistola de Shuji para parar o policial. Ela mantém Kagawa coberto durante a noite enquanto Shuji cuida da criança. Contudo, o casal cai no sono e Kagawa se sobrepõe. Ele concorda em esperar até a manhã para prender Shuji. Comovido com o compromisso da família e com o retorno da saúde de Michiko, Kagawa deixa Shuji escapar, mas o pai retorna, incapaz de encarar a vida em fuga. Kagawa conduz Shuji para a prisão.
            Em seu décimo sexto filme, Ozu continua a tratar de temas alheios como ocasião para experimentar padrões estilísticos. A fonte imediata é um conto, “From nine to nine”, publicado em março de 1930 numa edição de Shinseinen, uma revista especializada em ficção de mistério de estilo ocidental. Por trás desta fonte encontram-se dois gêneros hollywoodianos, o thriller de crime e o melodrama familiar. Como nas comédias escolares, e Walk Cheerfully, Ozu testa sua habilidade tomando muitas convenções de gênero seriamente. Ele filma a cena do roubo com suspense e espreme emoção prolongando o momento em que Shuji se põe ao lado da cama de Michiko. Ele cria incerteza a respeito do motorista de táxi, dividindo o conhecimento: um plano em movimento do táxi introduz Shuji; temos o ponto de vista do motorista por meio de seu espelho e assim vemos Shuji acender seu cigarro; depois que Shuji paga a corrida, o plano se mantém no táxi, que não sai do lugar. Ao mesmo tempo, Ozu põe os gêneros em mãos com as citações de pôsteres de Broadway Babies (1929) e Gentleman of the Press (1929) e de etiquetas em inglês como “Two is company, three is a crowd”. Togo Yamamoto, que interpreta o detetive Kagawa, interpretou vilões e gangsteres em filmes em Hollywood nos anos 1920, e os demais atores eram identificados como atores de faroestes. Fazendo de Shuji um artista comercial que pinta sinais e pôsteres, Ozu fundamenta a completa ausência do décor japonês. Não fosse pelo quimono de Mayumi, o filme não teria mise-en-scène reconhecidamente japonesa.


            A abertura oferece, em miniatura, as características formais de That night’s wife. A cena de roubo, com seu corte entra a polícia e o guarda do prédio e o abrupto close-up de um recepcionista de telefone e uma pistola, ecoa o conciso estilo de Underworld (1927) e o filme de Lang Spione (1928). Ainda assim, esta cena convencional é marcada exatamente como convencional pelo como Ozu permanece com a iconografia do thriller para seu próprio bem. A câmera que se move em direção a uma mão pintada na porta, mas esta não será uma pista, não levará a nada. Depois, Shuji liga para o médico para checar o progresso de sua filha, Ozu enquadra o recebedor do telefone em um close-up brilhante digno da Paramount; mas então não há um corte para o médico questionando a conversa interrompida. Algumas vezes, estes icônicos motivos que Ozu padronizará de maneira abstrata. Mãos irão retornar ao longo do filme, e o receptor pendurado do telefone ecoa um arrancado telefone do recebedor durante a entrada de Shuji.
            Ozu também usa o roubo como pretexto para se mover por espaços contíguos e cria padrões inesperados. Quando Shuji empurra o guarda para dentro do escritório, a câmera se move para a esquerda, passando pelo guarda, mostrando dois homens deitados no chão, amarrados e amordaçados, com as pernas de um terceiro homem pendurada no enquadramento da mesa. A principal regra de continuidade de Ozu poderia favorecer cortar para um plano médio do terceiro homem. Ao invés disso, Ozu corta de volta para o ponto inicial da “linha”, o guarda derrubado. Então, ele corta para o plano médio do terceiro homem. De tal forma, assim como do agora frequente plano através-da-linha/plano-reverso, Ozu reescreve Lang e Sternberg, anunciando a subordinação do thriller material a suas estratégias estilísticas brincalhonas.


            De fato, com o desenrolar do filme, a abertura parece ser mero pretexto. Shuji rouba o dinheiro para o remédio de Michiko, mas ele nunca compra nada. Uma vez chegue em casa, o fato de que a noite é crucial para a doença da criança toma precedente, e assim ele se oferece a ir com Kagawa se o policial esperar até a manhã. Dramaturgicamente, o roubo não é mais que um álibi para colocar Shuji e Kagawa juntos no apartamento para uma noite de suspense com Mayumi. Esta função da abertura é anunciada na primeira cena, que é tão oblíqua e enganosa quanto aquela de I flunked, but... Um policial encontra um mendigo dormindo atrás de uma coluna de um prédio e o manda sair dali. Ainda que o episódio sirva como contraponto de longo alcance para a ação solidária de Kagawa no clímax, em termos de narração isto sinaliza  a distorcida função de toda a abertura.
            O estilo característico de Ozu é também evidente na manipulação de outra convenção do thriller. Corte paralelo é raro em qualquer filme de Ozu, mas aqui Ozu o usa para alternar a fuga de Shuji com a paciente vigília de Mayumi a Machiko. Mas ao invés dos rápidos e avançados cortes oferecidos por Lang, este cineasta emprega o corte paralelo como base para uma prolongada transição. Ele sai de um grupo de patrulheiros para chegar a uma série de planos mostrando várias áreas da casa de Hashizume, todas tardando a introdução do médico. A transição seguinte usa princípios não-causais para criar nuançada relação dominante/harmônico. Ao invés de cortar diretamente de Mayumi em casa para Shuji escondendo-se da polícia, Ozu corta de um plano dela para um plano de uma lâmpada pendurada. Este tácito corte em contiguidade é seguido por outro, um corte de um plano de um vaso de planta. Agora, a contiguidade é reforçada não apenas pelo pano de fundo, como também pelas sombras (presumidamente) feitas pela lâmpada. A imagem seguinte que Ozu comprime em duas prévias: uma luz da rua (dominante) brilhando na folhagem. O corte depende da inclusão categórica, assegurando a analogia entre duas luzes e duas plantas. Ozu faz a folhagem dominante do plano seguinte ao apresentar sombras de folhas em um muro baixo. A lógica do corte se assemelha aquela de relacionar a luz refletida em Walk Cheerfully. E o muro, fornece a relação a Shuji, agachado na escuridão. Este corte paralelo, de um modo que não é econômico em padrões clássicos. Mais tarde, Shuji está num táxi e inquieto amarra seus cadarços. Ao invés de cortas diretamente e simplesmente para sua esposa, Ozu insere um plano de um brinquedo da criança num balanço, cujas cordas se assemelham a cadarços, seguidos por um plano adjacente de revistas e então o plano segue pelo chão para encontrar os pés de Mayumi. Como em Walk Cheerfully e I Flunked, but..., Ozu está mais e mais preocupado em habitar o que é normalmente apenas tecido conectivo, para pegar desvios através de espaços contíguos antes de chegar à linha causal.


            De que ambas as transições para o apartamento da família se demore em detalhes do espaço não é fortuito. Depois que Shuji chega em casa, Ozu usa o resto do filme para colocar ele mesmo um problema técnico: como apresentar quarenta e cinco minutos de ação em um único cenário? “Eu realmente quebrei minha cabeça com relação à continuidade nesse”. Como Dreyer em Thou Shalt Honor Thy Wife (1925), e diferente de Hitchcock em Festim Diabólico (1948), Ozu vai evitar estabelecer planos e confiar, ao contrário, nos fósforos, nos planos de entradas e saídas, monumentos espaciais e planos médios de detalhes.
            Como Dreyer, Ozu usará estes artifícios para mostras muros e regiões da área central do apartamento, para que vejamos a ação por mais lados que a continuidade tradicional poderia permitir. Deste modo, o começo apresenta a ação de uma orientação que favoreça a cama da criança e a mesa de jantar. Quando o detetive entra e Mayumi o mantém do lado de fora, a ação desenvolve uma segunda zona, numa área próxima à mesa de pintura de Shuji. A câmera muda sua orientação em acordancia, filmando exatamente da direção oposta. (Ozu tentou esta estratégia em uma cena de Walk Cheerfully, que faz uma pesquisa em 360 graus do apartamento de Kenji). Apesar de o espaço poder ser mapeado, requer maior atenção. As poucas longas tomadas são astutamente desenhadas para excluir regiões cruciais, incitando o espectador a confiar em imensos monumentos tais como a cama, o balanço do brinquedo, a mesa, e mesmo a palha pendendo de uma viga. Em adição, o observador pode ser confundido pela propensão de Ozu em “fraudar” a posição de monumentos e a se recusar ângulos bem demarcados. É preciso comparar dois quase sucessivos planos para ver como a perspectiva muda quase drasticamente. O “mapa cognitivo” do espectador é muito mais acurada num nível plano-a-plano, desde que a maioria dos filmes deixam pistas para regiões contíguas que confiam em linhas de olhos e em entradas em enquadramentos, e estes (como Kuleshov sabia) não nos permite medir o espaço total. Como Dreyer, ou Pudovkin em Storm over Asia, Ozu deixa o espectador construir o espaço consistindo de nós dramáticos com uma área geral.


            Diferente de Dreyer, contudo, Ozu não faz uso de decoração dispensada que isole objetos e figuras que permaneçam de fora. O apartamento de That night’s wife engole o espectador num mar de sinais, ferramentas, trincheiras, e bricabraque. A desordem fornece um contínuo interesse, como Ozu revela aspectos sempre novos do cômodo, e também mantém a geografia do apartamento de alguma forma incerta. Somos introduzidos ao set por meio de uma série de movimentos laterais em close-up que eventualmente se afastam em direção a uma parede de pôsteres para revelar o médico com a criança. Como a loja de pôsteres em Made in USA (1966), de Godard, este apartamento é uma colagem de planos achatados que simplesmente fornecem uma superfície para as figuras, um espaço livre para pistas normais em escala e distância. Propaganda multilíngue, mapas, e grafite fazem deste apartamento uma montagem cubista de detritos da cultura ocidental.
            O confinamento no apartamento também permite a Ozu criar variações em estratégias e elementos exibidos anteriormente. Os rápidos movimento de aproximação e afastamento no episódio do roubo são justapostos abruptamente. Há um bater na porta, o correr do plano no mesmo ritmo, direto do fundo. Ainda mais surpreendente é o rápido mover-se da arma na mão de Kagawa; corte para a mão de Mayumi segurando seu avental, e move-se para trás no mesmo ritmo; corta para um plano longo que segue, tão rápido quanto, em direção a Kagawa. A chocante qualidade destas passagens aumenta a recusa de Ozu em se recusar em parar o movimento de câmera antes de dissolver ou cortas, para que então dois efeitos óticos diametralmente opostos são simplesmente unidos. Ainda assim, eles não são dispositivos isolados como os florescimentos retóricos dos contemporâneos de Ozu. As outras técnicas são exploradas como elementos de desenho perceptual, servindo como um fim para a narrativa (para criar surpresa ou suspense), mas organizados num grau que mostre o padrão de simetria.


            A criação de padrão não é menos enfatizada nas duas transições que emergem durante as cenas no apartamento. Se a porção dos cortes paralelos mostravam disparidades espaciais e de simultaneidade, o propósito narrativo das transições tardias é enfatizada por elipses. Mayumi mantém Kagawa coberto com uma pistola, e Ozu deve pular por longos períodos de tempo. Kagawa olha seu relógio, que lhe mostra 1:30. Fade out. Fade in num relógio que mostra 3:07. Depois de um movimento lateral de uma lâmpada e numa panorâmica para baixo, e um corte para a boneca no balaço, temos um plano de Shuji enchendo o saco de gelo enquanto uma sonolenta Mayumi continua a olhar para Kagawa.
            A segunda transição é mais intricada, sendo um tipo de reprise deslocada da transição da lâmpada/planta na porção inicial do filme.
      1.      Mayumi.
2.      Movimento diagonal da esquerda pelo chão em direção a garrafas e uma mancha escura.
3.      Roupas penduradas. Movimento da esquerda em direção à janela. Luzes claras vindas de fora à medida que chega a aurora.
4.      Uma lâmpada da rua se apaga.
5.      Rua. O leiteiro chega e abre seu carrinho.
6.      O topo de uma cerca. Suas mãos trocam três garrafas vazias por três garrafas novas.
7.      Rua, às 5. O leiteiro coloca as garrafas vazias em seu carrinho e vai embora.
8.      Como fim de 3. Movimento da direita da janela para a roupa pendurada.
9.      Movimento da direita passando pela cortina em direção a uma prateleira com uma lata de tinta pendurada.
10.  Movimento diagonal pela direita, em direção ao chão passando por garrafas e latas.
11.  Movimento para a direita para Mayumi, dormindo. Ela acorda de repente.
A simetria total desta transição, juntamente com suas nuances menores e surpresas, deveria requerer apenas um pequeno comentário. A sequência gira em torno de seis planos, com os planos 5, 7 e 3 3 8 servindo como paralelos imediatos e planos 1 e 11 encaminhando toda a passagem. Ali permanecendo assimetrias também. Plano 2 é paralelo por planos 9 e 10, enquanto o plano 4 (a culminação de uma lâmpada de rua como tema) não tem um parceiro exato na segunda metade. A ambiguidade do corte de 2 para 3 é criada pela questão de se seria a mancha de 2 que viria a perturbar a garrafa sobre ela ou se seria a roupa pendurada revelada no plano 3. Similarmente, o movimento “extra”, número 9, cria seu próprio enigma (o que faz a lata balançar? Kagawa pegando a arma?). O propósito de “leitura” aqui (a luz de esperança, nutrimento interrompido) poderia perder a força da cena. Deixando de lados os dados recalcitrantes (há a roupa e a lata de tinta), estas interpretações desprevenidas negligenciam as transformações de Ozu dos clichês da sinfonia da cidade, o modo como a sequência alcança seu clímax, seus usos de espaços intermediários anteriormente, e acima de tudo o jogo de expectativa e correção, regra e revisão, rigor e de invenção formalmente aberta – um jogo que revela um padrão em progresso. Este padrão é completo apenas quando o plano final, a perspectiva diagonal da rua ensolarada que em sua composição ecoa a rua escura que abria o filme.


(BORDWELL, David. Ozu and the poetics of cinema, p. 206-210)

sábado, 12 de dezembro de 2015

Eu nasci, mas... (meninos de Tóquio) de Yasujiro Ozu (Umarete wa mita keredo, 1932)


A infância, para muitos autores de cinema, se constitui de um período de anarquia em que o sujeito em formação adota em seu comportamento atitudes que não são cabíveis dentro da sociedade em que se encontra inserido. A rebelião de Zero de conduta, de Jean Vigo, serve de exemplo a esta afirmação. As crianças são enquadradas, com o tempo, nos moldes sociais construídos pelos adultos, como se isso fosse o meio mais correto de convivência uns com os outros - sabemos pelo cotidiano que não é, ainda assim insistimos nesta fórmula por agradar alguns. Crescendo, aceitamos tais ditames por um misto de conformismo e comodidade - lutar contra tudo isso não é fácil. Vigo, em seu filme, põe as crianças para gritarem contra estes moldes sociais que lhes tiram a imaginação e a capacidade de serem pensantes para que se tornem somente parte do gado humano. Mas este é um lado bem próprio do pensamento anarquista famoso de Jean Vigo.

Por outro lado temos um filme como Eu nasci, mas..., de Yasujiro Ozu. O cineasta japonês não é um famoso anarquista. Muito pelo contrário, seu posicionamento político nunca ficou muito claro. Será que Ozu defendia alguma bandeira ideológica? É possível que sim. O que sabemos é que seus filmes apresentam sempre a transição na vida das pessoas. Como bem captura Wim Wenders em Tokyo-Ga, a imagem recorrente dos trens nos filmes de Ozu é esta metáfora. O trem é o que nos leva de um espaço a outro, o filme de um momento a outro da vida de um personagem. Neste Eu nasci, mas... temos uma obra ainda do período mudo do cineasta.


Dois irmãos, acompanhando o movimento dos pais, se mudam para Tóquio e chegam a uma nova vizinhança. As crianças da vizinhança já estão bem dispostos em um grupo hierárquico que toma como figura central um garoto brigão, que nem todos querem encarar por ser maior do que todos eles. Um dos dois irmãos, comendo um pão e brincando com um aparelho, tem seu primeiro contato com este grupo. Ameaça entrar numa briga com o garoto mandão, mas sai chorando assim que leva o primeiro golpe. Dá-se aquilo que parece ser o modelo mais primitivo de vida em sociedade: a violência. O mais forte é quem comanda, e os outros, por medo, obedecem.

O garoto chama seu irmão, não muito mais velho, não muito maior que ele, mas um tanto mais corajoso. O menino enfrenta o manda-chuva local, mas não vai muito mais longe do que isso. No dia seguinte, os dois recuam e não entram na escola ao ver, no pátio, o garoto que os ameaçou. Este medo que as crianças sentem deste garoto mais forte que estuda na mesma turma que eles fomenta uma admiração tardia. Na sala de aula, em meio a um ditado do professor, o manda-chuva quebra um ovo de pardal na mesa e come o seu conteúdo ainda cru. Os meninos fazem a sua caça na mesma tarde imaginando ser aquele o segredo que deixa o brigão, forte.


Os meninos pensam em seguir os seus passos. Seu pai lhes diz para serem importantes, e quando criança para ser importante é ser forte. É ter a capacidade de brigar com aquele garoto que os chama para briga e derrotá-lo. Mas eles somente conseguem tirar este garoto de lado quando surge um menino mais velho e maior que desfaz este comportamento do garoto brigão.

Estudam para tirar boas notas, e até fingem as boas notas para agradar os pais. Principalmente o pai que os acompanha por boa parte do caminho falando o quão bom aluno era, de como tirava sempre boas notas, e de como é importante estudar para se tornar alguém importante. Frente a esta propaganda, as crianças veem em seu pai uma figura impressionante. Mas, assim como nos mostra Ladrões de bicicleta, chega o dia fatídico em que encaramos nosso pai como ele realmente é, não como o ser perfeito que idealizamos em nossos primeiros anos, e sim enquanto o ser falho que ele realmente é. Numa exibição de um filme da companhia em que o pai trabalha, os meninos têm a grande revelação de que a fala de seu pai não queria dizer a verdade. Nas imagens projetadas na tela, os meninos veem que o pai é um puxa-saco dos chefes.


As crianças descobrem a grande injustiça da sociedade dividida em classes, e como é realmente estar por baixo. Viam-se por baixo do garoto mais forte, mas ainda assim alimentavam a ideia de poder estar por cima por meio dos estudos. O que escutam do pai lhes joga um balde de água fria. Mesmo que estudem, pode ser que não venham a ser alguém importante. Transformarem-se num simples funcionário como o pai é para o pai de um de seus amigos. É a primeira visão da criança do mundo em que vivem, e o viver um dia após o outro não é outra coisa senão o conformar.

O pai encontra no caminho da escola o chefe que também leva seu filho. Envergonhado, o pai para na estrada na tentativa de evitar o confronto com o homem. Os filhos, já tendo compreendido a situação do pai, insistem para que ele vá falar com o homem. As crianças pautam a sua relação com o menino filho do chefe. Com ele, tratam de manter a sua superioridade numa brincadeira que obriga seu parceiro a deitar no chão de terra. Mas enquanto criança, vai tudo bem, e assim eles se abraçam. A organização da vida em sociedade é injusta, pondo uns sobre os outros. A uma primeira visão o filme, Ozu pode nos parecer conformista, colocando os meninos filhos do empregado junto ao filho do patrão, quando na verdade ele foge daquele final de 1900, de Bertolucci. Ao invés de permanecer nesta luta eterna, por que não juntarem-se todos? Mais uma vez é por meio do olhar da criança que o cinema encontra a resposta para o mundo dos adultos. E teimamos em acreditar que é só coisa de criança.


Mas será que Ozu coloca este final em seu filme ou somos nós quem o inserimos no filme? Se analisarmo a mise-en-scène de Ozu, vemos um cineasta preocupado filmar determinadas personagens. A câmera fixa não invade o espaço de seus personagens, não insere naquela realidade uma visão bem perspectivista que nos provocaria a produção de uma conclusão fácil, como os filmes tese de Eisenstein. Ao manter sua câmera fixa, Ozu simplesmente diz à realidade para que ela se sobressaia de toda aquela encenação fictícia. Numa formulação mais filosófica, de que a duração do mundo seja desvelada pela câmera de filmar. Ao fim, o que podemos afirmar de seu filme é o retrato de uma passagem dentro da infância. Em Eu nasci, mas... não há o fim da infância, mas de uma fase da infância, um momento da infância em que o mundo é fantasiado. As crianças, assim como a câmera de Ozu, deixa de enxergar a fantasia para ver a realidade, mas com a esperança de que eles possam fazer diferente.

sábado, 11 de abril de 2015

Caminhada noite adentro de F. W. Murnau (der gang in die nacht, 1921)


O cinema de Murnau é fascinante. Alguns de seus filmes figuram com muita propriedade as listas dos melhores. Listas são sempre contraditórias, e que perdem sua competência ao deixar de citar uma obra de Murnau. Há muito que existe um culto envolvendo Aurora, sem dúvida o filme mais bem acabado do diretor e que demonstra o ápice de sua maturidade artística. Me pergunto se ele não tivesse morrido pouco tempo depois se teria sido capaz de fazer obra melhor. Aurora é um daqueles filmes incontestavelmente belos que só não é assim enxergado por quem não tem amor pelo cinema. O mesmo pode ser dito de Era uma vez em Tóquio de Yasujiro Ozu.

Murnau nas décadas de 1920 e 1930 conquistou o reconhecimento e admiração dos maiores cineastas do mundo, assim como dos críticos. Sua obra passou a ser tomada como o alcance da excelência do fazer fílmico; claro, muito devido ao sucesso artístico de Aurora. Mas se este é um grande filme, não devemos nos esquecer das demais obras do cineasta que são igualmente importantes para a história do cinema, e para a construção do mito Murnau: A ultima gargalhada é um filme fascinante que demonstra o que de fato o arsenal cinematográfico é capaz de compor; Fausto é a demonstração da sabedoria de composição de quadros de modo a tornar o cinema mais que uma arte do momento, do presente, mas uma arte feita para a universalidade: ela dialoga com espectadores de qualquer lugar do mundo, a qualquer momento da história; Nosferatu é aquele clássico do expressionismo que suplantou enquanto estética a obra fundadora do movimento. É a referência primordial de todo um gênero (terror) e o filme que desrespeita tal base merece nosso desprezo. Por fim o filme que comentaremos neste texto: Caminhada noite adentro.


Certamente um filme menos conhecido de Murnau. Muito curioso se deparar hoje com uma obra inicial de um cineasta mítico. Isso porque Murnau aparentemente foi crescendo de acordo com os filmes que ia fazendo. Sua capacidade e seu vocabulário iam se ampliando de filme para filme, ganhando os contornos de classicismo. E é esta, a meu ver, a grande qualidade da obra de Murnau, e aquilo que faria dela uma cinematografia tão ímpar: a universalidade. Suas obras dialogam com as pessoas independente de lugar ou tempo, tal como dito no comentário sobre Fausto. Mas, e o que dizer daqueles filmes menores, aqueles filmes que aparentemente foram esquecidos? Seriam eles erros neste meio do caminho necessários para que o cineasta alçasse a este pódio dos grandes mestres do cinema? Certamente que não. Porque uma cinematografia que se faz de altos e baixos diminui a obra do autor. O citado Ozu possui uma constância na qualidade de suas obras. O mesmo acontece com Hitchcock. Ou Chaplin. Estes quatro cineastas - contando com Murnau - possuem uma característica em comum: a estética de seus filmes é aprimorada de obra para obra. Em todos estes cineastas há certa quebra no momento de passar do cinema mudo ao cinema falado, o que foi um grande choque. Em especial em Murnau e Hitchcock que continuaram a filmar tão logo o cinema ficou falado, ou seja, eles foram alguns dos desbravadores desta terra desconhecida, enquanto Chaplin e Ozu se arriscaram no cinema falado um tanto tardiamente (e no caso de Chaplin resultará numa das experiências mais fascinantes do uso de som em Tempos modernos).

Caminhada noite adentro é um filme do início da carreira de Murnau, feito ainda antes do arrebatador sucesso de Nosferatu. Antes de Caminhada ele já tinha filmado alguns, daí a surgir nesta obra um desenvolvimento maduro para um cineastas que havia se profissionalizado há tão pouco tempo. Fazendo um caminho que era um tanto natural em sua época, Murnau migra do teatro - que começara a trabalhar ainda nos tempos de estudante - para o cinema. Este detalhe é valioso no momento de enxergar sua obra uma vez que será partindo de planos abertos que os filmes de Murnau são compostos. Remando em caminho inverso de seus contemporâneos da vanguarda, o cinema do diretor não se rende facilmente ao corte excessivo-estilístico. Neste filme, em especial, o uso do close-up, popularizado por Griffith após seus grandes sucessos, surgem em Caminhada com raridade. São sempre pontuados, partindo muitas vezes dos próprios personagens. É o caso de Lily, uma artista de teatro que, dando uma espiada para a plateia pela cortina do palco enxerga um homem num dos camarotes: um médico, lhe é dito. Sua curiosidade cresce e ela coloca o olho no buraco da cortina. O rosto do médico cresce e se torna um close-up na tela. É a perspectiva dela que tomamos e por isso o espaço é modificado. É a percepção dela de mundo, que neste momento passa a ser ocupada somente por aquele médico que assiste seu espetáculo.


Em seguida, quando ela vai se apresentar, finge torcer o pé enquanto dança. A cortina rapidamente se fecha e o médico no camarote, que inicialmente não gostara da performance da jovem, fica atordoado. Logo surge alguém da produção em busca de um médico na plateia para poder ajudar, e será Eigil (o médico) quem irá. O plano de Lily mostra-se, assim, bem sucedido. O homem que ela queria conhecer vai até seu encontro. Ele a examina e não consegue encontrar nada de errado. Preocupado com sua capacidade de diagnóstico - Eigil tem grandes pretensões com sua carreira - ele vai visitar a moça em sua casa. Não tarda para que esta relação de médico e paciente se torne algo mais e os dois se casem. 

O filme assim ganha contornos românticos. A paisagem urbana que tomava o cenário anteriormente, desaparece dando lugar a presença agradável do campo. Ao invés das construções, apresenta-se a folhagem, o vento, o mar. As casas são poucas, e o que resta é o sossego. Neste sentido o cenário de Caminhada assemelha-se muito àquele de Aurora. Em ambos os casos Murnau se vale deles para poder desenvolver o romantismo de seus personagens, o aparente "felizes para sempre". E como num presságio para sua obra-prima, a paz do casal alegre será interrompida pela chegada de um estranho. Mas neste caso o estranho não é um simples turista que surge para interromper a paz dos habitantes locais. O pintor Maler já mora no vilarejo, apesar de não sair muito. Está perdendo sua visão, naquela que seja talvez a melhor ideia do roteiro do filme: o pintor cego.


Quando Lily vê o estranho homem chegando pela embarcação, uma figura muito semelhante ao Nosferatu que Murnau filmaria no ano seguinte, ela fica atordoada. Não quer encontrá-lo. Sente uma angústia que não consegue explicar, e suplica ao marido que não faça deste encontro um fato. Então o sopro de genialidade do cineasta: uma tempestade se abate por sobre o local. Os relâmpagos, o mar revolto, o vento forte que balança as cortinas da casa. Lily mistura suas emoções ao desenrolar da tempestade. Aquela ação natural torna-se uma alegoria de seu estado interior. Suas emoções são como o mar revolto iluminado pelos clarões da tempestade. Eigil cura a cegueira do pintor e o leva para jantar em sua casa junto com sua esposa. Depois de uma viagem faz a ingrata constatação: o pintor e sua esposa passaram a ter um caso.

Como toda tempestade, algo de ruim ficará em seguida, seja uma enchente, um barco virado. Neste caso, a tempestade serviu para fazer a angústia e o medo que Lily sentia pelo misterioso pintor se tornasse uma paixão arrebatadora. Ela deixa seu marido, que vira um sujeito rancoroso. Já não aceita os agradecimentos de seus pacientes, como quem espera receber novamente a punhalada que levara certa vez. Não tarda para a melhora da visão do pintor Maler se mostrar passageira, e ele passa a ter dificuldade de enxergar as coisas, ou de reconhecer o que se encontra ao redor. Lily vai pedir ajuda a seu antigo marido, que lhe nega. Aquele plano conjunto em que os dois atores são fotografados da cintura para cima demonstra aquele poder humano que o cinema de Murnau sempre demonstrou. Ele tenta se fazer difícil, rancoroso, negar, fazê-la miserável tal como ele se sente. Mas na face chorosa dela ele ainda enxerga a paixão, ainda que tente manter a severidade. Aquela boca entreaberta enquanto as sobrancelhas permanecem enrugadas em sinal de raiva e os braços cruzados como quem demonstra que não está aberto para discussão, dão espaço para a dubiedade de sua performance. Ele ainda a ama, mas não quer amá-la. Ele se arrepende de dizer que não se importa de que ela se mate, mas ela já havia dado as costas.

Diferente de Aurora, Caminhada noite adentro não dá espaço para um final feliz. Ainda assim constitui-se uma obra bela. Demonstra a permanência da qualidade das obras de Murnau, desde o seu início. Esta competência de ser capaz de mostrar o humano, suas falhas e virtudes, na tela de cinema é o que fazem um grande cineasta. Se o tema do amor aparece em Fausto, Aurora, e aqui em Caminhada noite adentro, é porque é um tema universal que não se esgota. Que merece ser visto e revisado por todos os ângulos, que neste caso são todas as situações e com todos os personagens.