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terça-feira, 4 de agosto de 2015

M, o vampiro de Dusseldorf de Fritz Lang (M, 1931)


A década de 1920 se configurou como uma das mais criativas da história do cinema. Os cineastas se permitiam a experimentação, buscando a inovação. Tudo era permitido - mesmo que o orçamento não desse conta (Abel Gance). Tentavam se desprender das outras artes, tentavam superar as limitações que encontravam, e os vícios - muitos haviam migrado de outras artes (eram poetas, arquitetos de formação, artistas plásticos). Montavam, cortavam, sobrepunham umas imagens sobre aos outras em busca da emoção, da ideia, do retrato do subjetivo, do retrato de um mundo idealizado, da representação imagética de ideias.

Quando chega o cinema falado, boa parte desta inventividade da composição das imagens parece se perder. É mais difícil filmar com som. Há o problema da continuidade sonora. Alguns preferem filmar com várias câmeras - como as novelas da tevê brasileira ainda fazem. É mais rápido e mais simples, mas muito pouco artístico. A composição das imagens perde a prioridade, fazendo a inventividade migrar. Ecoando as inventividades da década passada, os pioneiros do som cinematográfico buscaram formas diferentes de introduzir o som em seus filmes. E Fritz Lang é uma destas figuras.


Em M, o vampiro de Dusseldorf, o cineasta põe o som como parte componente da imagem. O som alarga nosso campo de sentidos, e por meio dele "enxergamos" para além daquilo que é posto em cena. Se algo não está em quadro, sua presença será denunciada pelo som. O filme abre com a cena da menina Elsie saindo da escola. Em paralelo, Lang filma sua mãe preparando o almoço à sua espera. A menina vai atravessar a rua, quando um perigo que ela não vê - nem nós - é anunciado pelo som. Um carro buzina, a menina pula para trás. Só depois de salva que o carro surge em tela. O som funciona como anúncio de uma presença ainda não vista. Seguindo nesta mesma cena surge o assassino de crianças que encosta para conversar com Elsie. "Muito bonita esta sua bola", fala o homem fora de tela, cuja sombra vemos projetada num poste. Sabemos de sua presença pela sombra, mas sua ação nos chega por meio de sua fala. É ele o assassino procurado pela polícia - apenas um espectro, aqui.

Voltamos para a mãe. Ouvimos os passos nas escadas do lado de fora do apartamento. A mulher vai até lá e vê duas crianças subindo com a pasta nas costas. Ela pergunta se Elsie não voltou com elas. As crianças dizem que não. Sucede-se um conjunto de imagens que criam certo desconforto. A mãe grita o nome de sua filha, que rapidamente se torna um clamor. Mas não vemos a mulher gritando. Ouvimos sua voz enquanto espaços vazios nos são mostrados. O som que iniciara a cena sendo afirmação da presença converte-se na afirmação da ausência. Elsie não está mais lá para ouvir sua mãe chamar. A bola com que brincava rola por detrás do mato e o balão que o assassino comprou para a criança se enrosca na fiação dos postes.


Esta onda de crimes passa a ter cada vez mais clamor. A polícia procura o sujeito em todos os lugares. Mas onde ele está? O chefe de polícia fala ao telefone toda a ação que a polícia tomou, ainda que ineficaz. Enquanto fala, suas palavras são ilustradas pelas imagens. Fizeram buscas com cães farejadores nos matos, as rondas pelas ruas aumentaram. Os policiais trabalham sem parar e estão muito cansados. Nada disso vem ajudando, e a população sempre pede a participação deles, numa relação de amor e ódio com a polícia.

Para descobrir quem é o assassino, os policiais resolvem ir até um bar em que a marginalidade se encontra. Dezenas de policiais são postos para fazer a batida. A cena é filmada com maestria: vemos os policiais andando, mas não ouvimos seus passos. Vemos a ação no bar, que se encontra num porão (há apenas uma saída). O silêncio da chegada dos policiais nos põe em sintonia com os marginais. Como não escutam a chegada da polícia, também não há tempo de fugir. E quando finalmente percebem, já é tarde, os policiais cercaram a única saída do bar. Todos que lá estão possuem alguma irregularidade, e por isso vão todos para a cadeia. Mas ninguém ali é o assassino.


Com estas batidas policiais cada vez mais constantes, o trabalho dos mafiosos - que possuem uma organização - fica cada vez mais escasso, assim como o dinheiro que entra em seus bolsos. Para que possam retornar à sua regularidade comercial, decidem também eles agir e investigar quem é o assassino. Fazendo uma parceria com uma organização de mendigos, juntam-se para poder investigar tudo e todos. Mas será novamente pelo som que o mistério será desvendado. O mendigo vendedor de balões é cego. No dia em que Elsie morreu ele vendeu um balão a ela, que estava acompanhada por um homem que assoviava. Reconhecendo a canção, o vendedor de balões chama um conhecido - o sujeito que possibilitará a entrada do assassino do quadro. E lá está o assassino, desta vez sendo visto, e podendo ser caçado.

É interessante notarmos que, mesmo com personagem tão odioso quanto o assassino de crianças interpretado por Peter Lorre - impossível sentir simpatia por alguém que cometa tal crime - não existe oposição ao personagem durante a narrativa. Não existe o Bem no filme, senão na breve aparição das crianças, sempre inocentes, cantando musiquinhas que acham engraçada e cujo sentido não compreendem. Os homens que caçam o assassino são igualmente condenáveis, e desejam praticar o mesmo crime - o assassínio. O que surge de realmente curioso neste filme é a formulação do som nesta relação. Sempre desvelando algo escondido da imagem, o som anuncia que algo está escondido por detrás das máscaras - tal como o mafioso que se torna juiz num tribunal paralelo ao Estado, e acusa o personagem de Peter Lorre de ser assassino, já tendo ele mesmo três mortes no "currículo".


Este algo escondido é o Mal. Presente em todos, o Mal não pode ser visto isoladamente. Não há a imagem do Mal supremo que deve ser extinguido. O que existe é o mal em suas diferentes escalas nas ações cotidianas. O problema é que ninguém se acha o malvado da história: nem o personagem de Lorre, nem o mafioso que preside o julgamento. A multidão conclama pela morte do assassino de crianças como se aquela morte fosse extinguir o Mal da face da terra - o bode expiatório. Mas matar o sujeito é a solução? Certamente que não. A polícia por fim chega e interrompe o julgamento. O assassino é levado para responder por seus atos frente ao Estado, à lei. Lang tem o cuidado de encerrar o filme antes de dar-nos a condenação. Ele encerra o filme com a fala da mãe de Elsie: temos que cuidar melhor de nossas crianças. O que significa isso? Bom leitor, deixarei esta por sua conta.

[atualizado em 03 de novembro de 2020]

terça-feira, 26 de maio de 2015

A Rua de Karl Grune (Die Straße, 1923)


Costumeiramente, críticos e teóricos ao se referir ao expressionismo cinematográfico tendem a imaginar os filmes do movimento como possuidores de diversas inventividades estéticas no campo da montagem. Certamente era com este sentido que se referia ao expressionismo André Bazin ao repudiar a fragmentação do espaço cênico no cinema. O mesmo Bazin que observa que nem todos os cineastas do movimento o faziam: a exemplo de Murnau - e eu diria até mesmo, de Fritz Lang. Mas esta não é uma característica que se aplique a todo o cinema expressionista. Exemplo disso é este A rua que muito bem se vale das técnicas de montagem para poder representar o subjetivo de seus personagens. Lembremos que a característica primordial do expressionismo (e para isso recordemos de Munch) é a representação da percepção emocional subjetiva do mundo, não a sua visão objetiva: daí os cenários distorcidos em O gabinete do doutor Caligari.

Em A rua, filme de Karl Grune escrito por Carl Mayer, o expressionismo apresenta-se na montagem bem colocada em que as impressões da vida da cidade se põem sobre seus personagens. Mas talvez este não seja um filme expressionista, no fim das contas. Porque são momentos bem pontuais em que esta escolha estética surge na trama, e não durante todo o filme. Não podemos dizer que o filme é por inteiro expressionista devido a algumas poucas cenas. Talvez o filme se aproximasse mais do impressionismo francês - escola de Louis Delluc, Jean Epstein, Abel Gance - do que de seu semelhante alemão. Mas deixemos de lado este embate para que pensemos o filme.


Grune consegue construir uma peça do mais legítimo trato cinematográfico, o que significa dizer que é um filme todo feito por meio das imagens. Os cinco ou seis letreiros de diálogo que surgem no decorrer do filme em nada impedem a compreensão da trama que se desenvolve. O filme abre com um homem deitado no sofá de casa enquanto sua esposa prepara o jantar. Por meio da janela ele observa o movimento das sombras das pessoas que caminham na rua. Ele se empolga com o frenesi da cidade, o seu barulho, sua vida. Vai até a janela e enxerga além da rua cheia de gente e automóveis: ele vê tudo aquilo que a cidade pode lhe proporcionar, toda o seu entretenimento. Já sua esposa, ao se pôr em frente à mesma janela, vê somente a rua, mas desta vez ganhando uma conotação diferente, um tanto melancólica.

Este embate surge com força neste cinema alemão dos anos 1920. O país passava por um momento, tal como grande parte do norte do ocidente, de urbanização. As pessoas cada vez mais deixavam sua vida no campo para viver no caos urbano, buscando todas as suas promessas. E claro que nem todas eram cumpridas. Este é um tema muito caro à obra de Carl Mayer que viria a roteirizar alguns filmes de Murnau, em especial Aurora, que tratam exatamente desde assunto. Em A rua não fica explícito de que um dia aquele casal morou no campo, ainda assim fica implícito por meio das ações ingênuas que o homem toma quando decide deixar o conforto do lar e viver os "benefícios" de uma vida na cidade.


O homem encontra uma mulher que combina com dois homens de dar um golpe em alguém para conseguir alguma coisa. O homem encantado pela beleza da mulher que dizia ter perdido seu dinheiro passa a segui-la quando ela diz que o encontrou. A relação entre eles evolui. Os homens que até então eram meros figurantes, tomam a cena e sentam-se à mesa. Logo em seguida surge um sujeito rico que também se encanta com a mulher e senta-se à mesa: a possibilidade de um golpe duplo é vislumbrada pelos bandidos. Terminada a noite numa jogatina mal planejada, a mulher leva os dois homens a quem dará um golpe até um apartamento, onde o sujeito rico é assassinado por seus comparsas. A trama é simples, sendo posta em simultaneidade com a história de um cego que vive com sua filha, uma criança de 3 ou 4 anos que é sua guia. 

Logo em sua saída de casa o homem vê uma bela moça que fica parada junto a uma parede. Ele se interessa pela moça tal como se interessará pela golpista, mais tarde. Mas algo de estranho acontece. O rosto belo da mulher dá lugar a uma caveira. O que poderia isso significar? O homem assusta-se, e atenção alguma dá àquele fenômeno e segue sua caminhada. Este é um primeiro aviso dos cineastas (Grune e Mayer) ao seu protagonista: algo de ruim irá acontecer, era melhor você ter ficado em casa e jantado com sua esposa. Daqui para frente estas proposições expressionistas serão deixadas de lado para que se dê espaço ao simples relato da aventura do homem na cidade.


A cidade engole o homem. É predatória. A rua parece ser o caminho em direção ao divertimento, mas leva somente ao desespero, a uma prisão desconfortável. Quando a inocência abre os olhos e mostra a verdade, o caminho a ser trilhado é o de retorno, o retorno ao lar, ao conforto seguro de quem já conhecemos e de quem esperamos somente o bem-estar. Assim, ao retornar para casa, o homem será recebido por sua esposa com um jarro com o jantar. Ela o esperara pacientemente e não se importa de que ele vá fazer coisa alguma lá fora: ele foi engolido pela rua, mas soube retornar para casa. E depois desta experiência terrível, dificilmente voltará a buscar tudo aquilo que imaginava existir lá fora. A diversidade da paisagem urbana é tentadora, e exemplo disso são suas vitrines, mas o que elas escondem por trás de si é o lado opressor da objetificação humana: em sua saída de casa ainda no início do filme, o homem se depara com uma vitrine que não estranhamente apresenta estátuas e pinturas de mulheres nuas. O desejo de fazer parte desta sociedade levará o homem a se tornar mais um dentro deste grupo. E quanto mais ele se envolve nesta sociedade, mais a inventividade do filme vai sendo deixada de lado quase como uma advertência: a sociedade é castradora da imaginação. A pergunta que permanece é: seria a sociedade ou o dinheiro? É devido ao dinheiro que o sujeito rico é morto ao fim do filme, é devido ao dinheiro que o homem é seduzido pela golpista.

Para resolver a trama, Grune e Mayer se voltam para o uso do letreiro para colocar a criança guia do pai cego dizendo quem é o real assassino. Isso porque todo o envolvimento dos personagens com o capital os leva a uma castração da imaginação. Esta castração resulta na também falta de recursos estéticos por parte do filme que se rende, enfim, ao letreiro. Se inicialmente poderia parecer uma falha frente ao seu começo tão promissor, posto nestes termos, A rua torna-se mais uma obra de crítica social envolta no pensamento formalista de construção de um cinema esteticamente ousado.

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

A música no cinema - Fred Astaire e Ginger Rogers


Quando surge a possibilidade de se fazer um cinema falado a linguagem cinematográfica já havia se ajustado muito bem a este detalhe faltante da composição fílmica. Alguns cineastas conseguiam se sair muito bem sem seu uso – característica que marcou a obra de alguns cineastas mesmo depois do advento do cinema falado. Mas quando esta se torna uma ideia de valor econômico, já que levaria mais gente aos cinemas – de início curiosos em descobrirem aquela engenhosa invenção – os estúdios estadunidenses iniciam uma corrida contra o tempo para se adaptarem a este salto dado na linguagem cinematográfica.

Este foi um passo dado primeiramente pela Warner Brothers que encontraram no cinema falado um meio de fugir de sua iminente falência. Forma bem sucedidos, pelo que podemos notar hoje separados quase 100 anos desde aqueles tempos. Notamos tanto pela manutenção do cinema falado quanto pela permanência dos estúdios em questão no cenário cinematográfico mundial.

Um dos primeiros desafios deste novo modo de se expressar seria encontrar um meio de justificar o uso da fala nos filmes. Como já colocado mais acima, alguns cineastas já conseguiam driblar o problema do não uso das palavras com uma boa dose de criatividade. Mas o cinema mudo impedia a existência da música ou da relação da música dentro dos filmes. Os cineastas ainda tentavam colocar alguns instrumentos, mas a representação imagética da música nunca será o mesmo que ouvir uma música. Abel Gance em seu magnífico A roda (la roue, 1923) chega a colocar alguns personagens tocando violino. Qual não seria a sensação de tais cenas se pudéssemos escutar os personagens a tocar?


É verdade que alguns cineastas, tais como Chaplin, compunham peças musicais que acompanhavam os rolos de películas que chegavam às salas de cinema para que a banda que fazia o acompanhamento dos filmes pudesse tocar aquilo que fora pensada especialmente para o filme. Mas é diferente. Primeiro que são bandas diferentes, com formações diferentes. O espetáculo terminava por não ser o mesmo para todos os espectadores ao redor do globo tal como o é hoje. (Isso se levarmos ainda em conta que nas pequenas salas somente um pianista sozinho fazia o acompanhamento do filme).

Assim quando a Warner Brothers lança O cantor de jazz seu sucesso se torna também uma questão estética não somente financeira ou tecnológica. E a escolha de fazer um musical como primeiro filme falado foi acertada. Porque nunca antes as plateias de cinema puderam ouvir as sombras dançantes na tela prateada. E pela primeira vez que as escutam, elas podem as ouvir cantar! O cantor de jazz ainda não era uma peça inteiramente falada, mas em seus momentos grandes quando surgia a cantoria se estabelecia ali seu impacto: a música finalmente faz parte do espetáculo cinematográfico.

Chegamos, assim, ao ponto que mais desejava quando comecei a escrever este texto: os filmes de Fred Astaire e Ginger Rogers. Sim, porque este foi o casal mais popular do cinema musical desta primeira década do cinema falado, e talvez de toda a história do cinema até aqui. É curioso este tenha sido o melhor gênero do cinema hollywoodiano a se encaixar neste novo formato de cinema. Era o modo de o cinema poder afirmar esta inovação técnica que era olhada com olhares tortos pelos grandes mestres e apreciadores da arte do filme mudo.


Quão ridículo não seria se tivessem escalado Fred Astaire para estrelar um filme mudo em que ele tivesse que apresentar sua habilidade de dançarino? Não teríamos os sons de seu sapateado ou das músicas que canta – e que acompanham seu bailado. E é aí que entre a genialidade da dupla Astaire-Rogers nesta primeira década. Porque sua dança não possui a mesma efetividade sem a música. E sem o cinema falado não há música. E sem a música não há momentos inesquecíveis da história do cinema como Fred Astaire cantando para Ginger Rogers Cheek to cheek no alto momento de O picolino (top hat, 1935).

Um de seus filmes que mais admiro por deixar mais explícita esta relação música-cinema é Vamos dançar? (shall we dance, 1937) dirigido pelo velho parceiro da dupla, Mark Sandrich. Logo no início da película, Fred Astaire coloca uma música num gramofone e começa a sapatear seguindo o ritmo da composição que toca. Mas o disco está arranhado e permanece numa repetição, forçando-o a continuar um mesmo passo. Ele interrompe seu alegre dançar para retornar à máquina e adiantar a agulha do disco, que tem mais arranhões que produzem o mesmo efeito. É uma cena que não existiria sem a capacidade sonora do cinema.

Tal como em Ritmo louco (swing time, 1936) em que Fred Astaire surge no apartamento de Ginger Rogers enquanto esta se prepara para sair. Estão em diferentes cômodos da casa, e ainda assim são capazes de conversarem. Ele finge deixar a sala fazendo seus passos se distanciarem, ainda que permaneça parado no mesmo lugar. Aproveita que ela acredita que ele não está mais em seu apartamento para sentar-se ao piano e cantar The way you look tonight. Ela para sua arrumação e passa a escutá-lo. Estão em cômodos diferentes, mas a música ecoa pelas paredes.


Seguindo o pensamento do trio de postagens Apalavra no cinema temos algumas cenas que podem ser compreendidas sem a necessidade da fala. Mas algo falta à cena se lhe suprimimos o som: a emoção. O cinema não é uma produção científica, mas artística. O som, mesmo não sendo das mais importantes, é uma das suas características e isto significa que não deve ser abandonada de imediato. Compreendemos o que Fred Astaire faz ao fingir que deixa o apartamento de Ginger Rogers sem a música? Sim. Compreendemos que ela se emociona com o seu canto? Sim. Mas a compreensão não assegura a emoção do espectador frente à cena apresentada.

Assim, quando em A alegre divorciada (the gay divorcee, 1934) Fred Astaire começa a cantar Night and day a comoção que surge na expressão de Ginger Rogers somente pode ser interpretada uma vez compreendamos a música que é cantada. Tal como depois que começam a dançar, ela tenta lhe escapar, mas ele continua sua insistência até que se inicia o número de dança. Este é efetuado também partindo da compreensão da canção: ele está apaixonado por ela e não consegue imaginar sua vida sem ela. A todo momento pensa nela. E assim a envolve na dança – esta que nunca é gratuita nos filmes de Astaire-Rogers, sempre sendo o ponto alto da expressão emocional de seus personagens.


É o cinema musical que finalmente liga a imagem ao som, sendo o melhor exemplo da capacidade inventiva dos cineastas do período sonoro. Porque a música justifica o uso do som. A música trás um algo a mais para a película. A música complementa – fazendo parte (d) – a imagem. Os personagens dos musicais necessitam da música. Esta é a sua grande expressão. E os números musicais saltam seu lado subjetivo, seus desejos e angústias, suas hesitações e alegrias para fora de seus corpos sendo expressa por meio de seu canto e de suas danças. É esta a significação que tem muitos dos números de Fred Astaire e Ginger Rogers enquanto parceiros. Ele tenta conquista-la, guia-la. Ela se entrega à paixão e o segue. Eles bailam. Hesitam e se separam. Voltam a ficar juntos e se envolvem. E parecem encontrar a felicidade que procuram quando dançam juntos. Este é o tipo de construção que somente poderia ser feita por um cinema falado.