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quarta-feira, 1 de abril de 2015

Aerogrado de Aleksandr Dovzhenko (aerograd, 1935)


Aerogrado é um filme curioso. Exala uma aura de filme de propaganda, ao mesmo tempo que se funde com um drama trágico grego no modo como sua narrativa transcorre. Sendo mais uma peça de Aleksandr Dovzhenko, não seria de surpreender se assim o fosse. E fazer um comentário sobre um filme como este se apresenta como real dificuldade. Primeiro por esta primeira indecisão que surge sobre o que seria realmente a obra; num segundo momento a maior dificuldade: ser um filme de Dovzhenko. Isso porque escrever sobre os filmes dos grandes mestres do cinema é sempre uma dificuldade. Os juízos prévios que são feitos podem nos levar a caminhos enganosos e nos esconder as reais motivações do brilhantismo do cineasta. No caso do cinema soviético este juízo prévio leva a muitos espectadores contemporâneos nossos a enxergarem o filme como mera peça de propaganda, e não ver a real qualidade artística da obra. Esta visão de "filme de propaganda" por vezes está enganada: o que existia de fato uma efervescência intelectual na antiga União Soviética que levava os artistas a pensarem os rumos e/ou os caminhos que levaram à revolução.

Aerogrado se põe neste primeiro caso. É filme que pensa no futuro, no que deve ser feito, nos próximos passos a serem tomados. Faz movimento semelhante ao de Maiakówski ao escrever O percevejo, mas dessa vez com um sentimento diferente, próprio das obras cinematográficas que procuravam exaltar o sentimento de união dos bolcheviques em torno de sua revolução. Sem se afastar tanto de seu momento quanto o teatrólogo, Dovzhenko filma um grupo de guerrilheiros na costa soviética da Oceania, lugar no qual será construída a cidade de Aerogrado. Será neste ponto em que ocorrerá a união de todos os povos, de todos os cantos do mundo. Porque os aviões que abrem o filme podem voar de todos os lugares e chegar a qualquer lugar do globo e levar consigo sua mensagem de união dos povos em torno de um ideal: as palavras de Karl Marx.


Se Marx já dizia que os operários de todo mundo tinham que se unir para lutar por uma revolução do operariado, que destruiria a hierarquia de classes, o desfecho dado por Dovzhenko ao seu filme é bastante sensível neste sentido, ainda que não deixe as terras soviéticas. Os aviões que rumam em direção a Aerogrado, que levarão o progresso a este ponto específico da taiga russa, partem de algumas das grandes cidades do país demonstrando a união de todo um povo em torno de uma causa, e neste caso a cidade utópica de Aerogrado surge como uma alegoria ao próprio progresso científico industrial pelo qual estaria por passar a União Soviética - e que viria a culminar com o lançamento do primeiro satélite e do primeiro homem ao espaço.

Enfrentando este grupo de guerrilheiros que lutam na taiga estão alguns japoneses que intendem em tomar parte daquele território para si, juntamente com as riquezas e vantagens que aquele território tem a oferecer. Para isso tem o apoio de um grupo religioso que passa a lutar contra o novo estado soviético, para manter seus privilégios de outrora. Deste modo, eles em nada temem poder juntar-se aos estrangeiros para entregar a sua terra ao monopólio do capital. Quando alguns jovens se pronunciam que vão poder encontrar trabalho em Aerogrado, eles são prontamente silenciados pela violência do grupo que se sente acuado frente a revolução.


Em alguns momentos os personagens deixam de conversar entre si para poder voltar-se ao espectador e falar diretamente com este. Numa cena muito interessante dois personagens falam ao mesmo tempo voltados para a câmera, falando diretamente para quem assiste ao filme. Lembra o coro do drama grego, ainda que possua sua distância. Mas lá está ainda alguns resquícios de uma formulação semelhante. O líder dos guerrilheiros descobre que seu amigo de infância está ajudando os japoneses e que até escondeu um deles em sua casa. Põe-se aqui o embate naquele homem, mas a escolha que ele deve fazer não pode ser guiada somente por seu subjetivo. Por isso, qualquer embate subjetivo que ele tiver será externado para o espectador. O pensamento de um homem que dê suporte à revolução não é pensar somente em si, mas no bem de toda sua população. E assim, mesmo sentido com aquela situação, o líder dos guerrilheiros terá que matar o traidor - que um dia fora seu amigo. O que conta aqui não é uma vida, mas o mal que esta vida faria a toda uma população - a velha questão: se tivesse que salvar entre uma pessoa que conhece e um trem cheio de estranhos, quem você salvaria?

Os personagens dos japoneses são exagerados a um tal ponto que fica difícil ao espectador de sentir qualquer compaixão por ele, e sempre desejar que ele não consiga nada. Em determinada cena, Dovzhenko filma o japonês líder dos invasores treinando com sua espada numa ação esquizofrênica. Ele mata pessoas que lá não estão, quase como se simbolizasse a loucura daquele sujeito ao mesmo tempo que a ameça que ele representa à população soviética. Ele visa a sua própria preservação, e não a de sua sociedade. É este lado do ridículo que faz o filme de Dovzhenko se aproximar da já citada peça de Maiakówski. Mas lá o ridículo não está nos estrangeiro, mas na pequena burguesia e na burocracia da futura União Soviética. Aqui o ridículo fica por conta dos opositores, sempre numa atuação extremamente exagerada - ainda que caiba muito bem, lembrando o brilhantismo de Mifune em alguns filme de Kurosawa. Não há muito mais do que falar sobre o filme. Este é um texto que não faz jus ao cinema de Dovzhenko, mesmo se tratando de uma de suas fitas menores, como esta.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

O dinheiro de Robert Bresson (l'argent, 1983)


direção: Robert Bresson;
roteiro:Robert Bresson, Leo Tolstoi (baseado em seu conto);
direção de fotografia: Pasqualino de Santis, Emmanuel Machuel.

É impressionante como algumas cenas são tão bem pensadas que elas se destacam em nossa mente e o filme passa a se tornar referência em nossa memória exatamente por aquela cena específica. Em O dinheiro, filme de Robert Bresson, possui uma destas cenas. Na verdade o cinema de Bresson é inteiramente composto de filmes com cenas memoráveis. E isso tudo seguindo um modelo de mise-en-scène próprio, que mais nenhum cineasta viria a utilizar. Porque o cineasta conhecia o potencial da construção cinematográfica sem a necessidade de artifícios externos a sua própria concepção do que fosse o cinema.

O dinheiro, especificamente, é baseado num conto do escritor russo Lev Tolstói. A semelhança do cinema de Bresson com a literatura russa do século XIX chama atenção. A temática do sofrimento cristão que se abate sobre os personagens se faz como destaque de grande parte destas obras. Em Bresson esta questão aparece melhor resolvida em Batedor de carteiras onde a prisão material impede a ascensão do espírito. Mas mesmo neste O dinheiro podemos notar tal apontamento, e em especial nesta cena que ficou gravada em minha mente e que me move na escrita deste texto.

Um dos personagens do filme torna-se um bandido devido. Em certo ponto da obra ele encontra uma senhora que o acolhe. Esta senhora nos remete ao idiota título de uma das obras mais conhecidas de Dostoievski, e que fora levada ao cinema por Kurosawa em obra de mesmo título. Esta velha senhora de Bresson acolhe o jovem desconhecido, dando-lhe comida e abrigo. Cuida dele sem pedir qualquer coisa em troca. Seu marido não gosta, mas também não o expulsa.


As mãos possuem uma característica especial no cinema de Bresson. Nele elas seriam mais expressivas que o rosto impassível dos personagens. É por meio dela que se externam suas sensações externas. Sãos as mãos passando pela testa que demonstrará o cansaço do pároco em Diário de um pároco de aldeia, ou demonstrando o temor da garota sendo cortejada por um garoto em A grande testemunha. Se são raros os close-ups dos rostos de seus atores, os close-ups de suas mãos o mesmo não procede. São elas as tradutoras do turbilhão de emoções pelos quais passam os personagens de Bresson, até porque são as mãos que agem e nãos as expressões faciais. São as mãos que roubam, não o olhar. São as mãos que machucam um burro, não uma cara feia.

A velha senhora que abriga o bandido de O dinheiro coloca um pouco de café num copo e o leva para seu hóspede. No meio do caminho, do lado de fora da casa, seu marido a interrompe e exprime seu descontento com aquela situação. Neste momento surge uma explosão de raiva deste personagem que nos é ocultada pela imagem, mas cujo som ouvimos. O som de sua mão batendo em sua esposa é breve, mas objetivo. Esta ação é ocultada da imagem porque Bresson promove um corte neste momento para mostrar outro detalhe que será mais eficaz. Em quadro temos as duas mãos da senhora que segura o recipiente com o café. Seu corpo balança e um pouco do café escorre. Mas ela permanece segurando-o para que possa dar o café ao rapaz que hospeda.


Numa imagem como esta Bresson consegue resumir muita coisa. Está ali a agressividade do mundo contra uma figura que procura fazer o bem para os outros – e mais a frente no filme este problema será agravado. Ela procura extinguir o mal que poderia haver dentro de si, mas ainda assim o mal que a cerca insiste em castiga-la. Ela fala de perdoar a todos, independentemente do crime que tenha sido cometido. Novamente, é o idiota de Dostoievski que sempre apanha e nunca revida. E ainda assim levará o café ao necessitado. Nesta cena Bresson imprime a persistência de sua personagem em fazer aquilo que ela julgue ser o bem sem se importar com a opinião dos outros. Os outros facilmente condenariam aquele homem que ela hospeda, ela o perdoaria. E já que ela perdoa, porque não levar-lhe um pouco de café? O que resta é a imagem cristã da repartição do alimento.

Mesmo que não compartilhe com o ideário pregado por Bresson (como não compartilho), é inevitável não reconhecer a genialidade de sua construção fílmica. E numa única cena ele consegue traduzir muita coisa. Trata-se do ultimo filme do cineasta.