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domingo, 1 de março de 2015

Anjo perverso de Henri-Georges Clouzot (Manon, 1949)


O filme abre com um navio. A tripulação parece esperar alguma coisa. Não tarda muito para que surja no horizonte algumas lanchas que se movem rapidamente em sua direção. São três. Uma breve olhada dentro de uma das lanchas nos mostra que elas estão cheias - basta olhar dentro de uma. Retornamos ao navio onde os preparativos são feitos. Uma escada logo é encontrada e posta ao lado da embarcação para fazer as pessoas das lanchas subirem a bordo do navio. Elas vão subindo e a tripulação os levando até o porão do navio para ficar junto dos produtos que são carregados. Não demora muito para que alguém nos conceda alguma explicação acerca de tudo aquilo: são judeus que não são quistos em nenhum lugar e que fogem em busca de um lugar em que sejam aceitos. Curiosa proposta. O filme é de 1949, poucos anos após a segunda gerra mundial e de alguns julgamentos dos derrotados na guerra. Os judeus são considerados por muitos as grandes vítimas do confronto internacional. Mas parece que não só os nazistas não gostavam deles, afinal de contas.

Contrariando as expectativas não será neste ponto em que se focará a obra de Henri-Georges Clouzot. Nem será no navio em que a história se passará (uma pena). Ao alocar os judeus no porão do navio um dos tripulantes encontrará um casal jovem que se escondia com o intuito de também fugir da Europa. Será neste casal pouco improvável que Clouzot buscará a história de seu filme. Quando postos em frente ao capitão do navio, ambos narram a ele sua história e a motivação que os leva a fugir. Neste momento se dá aquele que talvez seja o ponto alto do filme: o filme será contado por dois personagens o que justificará as cenas em que um ou outro personagem não aparece, justificando a apresentação mais completa do passado do casal.


No começo desta rememoração eles lembram logo de seu primeiro encontro ao final da guerra. Manon é arrastada por uma população enfurecida que quer cortar seu cabelo como sinal de repulsa por ter ela cooperado com o exército inimigo. Surge então seu futuro parceiro junto com um de seus colegas do exército de libertação francesa, Robert. São estes dois que impedem a população de ter seu momento de vingança. Robert e Manon são colocados dentro das ruínas de uma igreja. Ele supostamente deveria vigiá-la, mas num ato que demonstra a ingenuidade juvenil dos dois personagens ele se apaixonam, e por isso ele abandona a guerra e juntos fogem a Paris. Lá todo eco do passado recente da França e da Europa como um todo é deixado de lado. A trama foca-se na relação de Manon e Robert buscando alimento nos conflitos que surgem em meio à sua relação.

Mas o que faria Clouzot começar o filme com um posicionamento político - a situação dos judeus na Europa - para focar-se somente numa paixão juvenil? É uma pergunta que ele parece resistir em responder. Isso porque a relação de Manon e Robert cresce enquanto a história é narrada e algo sempre parece perturbar o espectador, um assassinato cometido por Robert e assumido por ele antes de começar a contar sua história ao capitão do navio. Isso se une ao ato de Clouzot de evitar filmar nas ruas o máximo possível, evitando mostrar os verdadeiros problemas que a guerra poderia ter trazido. Mas não, o interesse do diretor se centra na subjetividade destes dois jovens que muito pouco parecem se importar com o mundo que os cerca.


Terminando a narração de Manon e Robert ao capitão do navio - que toma a maior parte do filme - eles são liberados para poder se juntar ao grupo de judeus e poder fugir para a Palestina (veja só!). Assim que as lanchas chegam à praia algo nos deixa com a pulga atrás da orelha: porque precisam os homens que farão o transporte dos judeus pelo deserto estarem armados? Esta pergunta pode passar despercebida por ser simplesmente o caso de se tratar de um grupo que trabalha na ilegalidade, mas este é o primeiro aviso de que algo não dará certo. Em seguida terá não somente o pé torcido de Manon, como a carcaça de um animal morto no meio do deserto. E então surge um grupo de beduínos. Ao fim do filme eles trazem as más notícias: os judeus não são queridos nem na Europa nem na África. O grupo é atacado e todos morrem. Manon é a primeira a ser atingida e Robert a enterra no deserto em uma cena forte que demonstra o poder real da capacidade criadora do Clouzot cineasta.

Fica assim a questão: por quê Clouzot fez esta volta tão grande para poder falar sobre a situação dos judeus? Entrar como um mero acaso no filme não é um fato. E certamente foi por este motivo que ele foi premiado no Festival de Veneza. O cineasta demonstra certa vontade de contar uma história fictícia, ao mesmo tempo que surge a necessidade de fazer uma proposição política. Mas a política salta para um segundo plano em que ela surge como uma periferia da vida de todos. O mundo é político e não há para onde escapar, sempre com ela (a política) nos depararemos. Só que esta proposição se apresenta radicalmente diversa do que seria feita por obras que procuram maior sutileza no trato da sócio-política no cinema para demonstrar como estes casos afetam a vida de todos os indivíduos na sociedade - e escrevo tendo em mente A primeira noite de um homem. As comparações são sempre preocupantes e devem ser feitas com cuidado, mas certas obra trilham um padrã de qualidade que nos leva a julgar partindo deste padrão. Mesmo sendo anterior ao filme de Mike Nichols, Anjo perverso consegue nos demonstrar sua mensagem, mas já não tão bem quanto se é esperada de um cineasta tão criativo quanto Clouzot, sendo esta uma motivação de tratar uma obra de arte como "ultrapassada". Ainda assim o trato visual de Clouzot para as cenas do navio e do deserto fazem por merecer que assistamos a esta obra.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Sombra do pavor de Henri-Georges Clouzot (le corbeau, 1943)


Em um pequeno povoado da França, moradores começam a ser atormentados com o envio de cartas anônimas que relatam alguns segredos de cidadãos locais. O burburinho surge e cresce com o passar do tempo e com o aparecimento de novas cartas. A população, antes de se perguntar quem estaria escrevendo aqueles bilhetes, prefere acreditar na suposta verdade neles contida. E assim, pessoas que podem não ser culpadas passam a ser vistas com olhos julgadores por grande parte da população. O principal alvo das cartas é Germain, o médico local conhecido por todos. Mas ele parece ser a pessoa que menos se preocupa com as cartas. Trata de ignorar aquela situação e seguir em frente. Isso não dura muito tempo, uma vez que as cartas começam a afetar o andamento da vida do povoado. A situação chega a um ápice quando um paciente com câncer terminal lhe é avisado de tal condição por uma das cartas, e se mata. Em seu funeral, que comove toda a população da cidadela, surge mais uma carta e nela uma acusação: o homem não se matou, fora morto. Daí o problema deixa de ser se é verdade o que as cartas dizem, mas quem as escreve.

O filme começa com alguns planos do alto que mostram a cidade por completo. Localizando os espectadores, Henri-Georges Clouzot busca seu protagonista, e o encontra em uma casa em que realiza um parto mal-sucedido. Esta primeira cena será uma das chaves para o entendimento das cartas. O médico surge de dentro de uma porta escura e caminha em direção a um balde com água, onde lava as mãos com sangue. Ele responde a uma das senhoras que esperavam do lado de fora da casa que pôde salvar a mulher, mas não a criança. Esta cena que poderia passar despercebido do espectador ganha nova conotação quando surgem as cartas anônimas que acusam Germain de ser médico aborteiro. 


De início as cartas não demonstram a dimensão que ganharão. O médico recebe uma, lê, e a esquece no jaleco como se não tivesse importância. Lembra dela quando se desfaz do jaleco, e encontra uma enfermeira mal humorada que a lê. Ele rasga a carta e a guarda para jogar fora. Aos poucos, Clouzot nos mostra a dimensão daquele "joguinho". Não somente o médico Germain estava recebendo as tais cartas, como também outras figuras importantes da cidade. E todas elas contendo segredos das vidas particulares das outras pessoas - seus casos amorosos e suas corrupções políticas. É neste momento que as cartas ganham novo significado e passam a ser o centro do filme. 

No ponto alto da obra, em que a histeria gerada pelas informações das cartas se mostra em sua plenitude, os moradores do povoado buscam pela cidade a enfermeira mal humorada que lera a carta endereçada a Germain e que é acusada de ter enviado a carta ao paciente que se matou. Esta onda de revolta leva os moradores até o apartamento da enfermeira. Esgueirando-se pelas ruas ela chega em casa para encontrar tudo destruído. Mas isso não era o fim. Com ela lá dentro ainda seriam jogadas pedras nas janelas. Ao abrir a porta, alguns homens a pegam e a levam para a prisão. Para inocentar a enfermeira - que no fim das contas era somente mal humorada - as cartas não deixam de ser enviadas. 


A cena do funeral é das mais interessantes. Uma multidão se forma atrás da carruagem que leva o caixão. De cima dela cai uma carta, mais precisamente, da coroa de flores deixada pela enfermeira que será perseguida. Uma vez a carta no chão, toda a população a vê e fazem a volta para não passar por cima dela. Ninguém tem a coragem de pegá-la para ler. Até que as crianças que acompanham o cortejo a pegam e leem. E na ingenuidade infantil, passam para frente. Ela vai circulando. Torna-se a carta, neste momento, a principal figura da sequência. É ela que dita quem deve aparecer em cena.

Trata-se de um bom filme, mas não dos melhores de Clouzot. Porque o suspense não consegue crescer num filme que se baseia em diálogos. O suspense cinematográfico melhor se apresenta naquelas cenas bem construídas, tal como quando os caminhões têm que fazer a volta a beira de um precipício para subir um morro, carregando nitroglicerina em O salário do medo. Assim, Sombra do pavor torna-se um filme mais próximo às obras sobre histeria coletiva - tal como Fúria de Fritz Lang, apesar de não possuir a genialidade deste que faz da temática que faz menção ao momento passado na Alemanha abandonada pelo diretor - do que uma obra de suspense. 

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Clouzot não é o Hitchcock francês!


Tornou-se muito comum nos últimos tempos fazer a afirmação de que o cineasta Henri-Georges Clouzot é uma versão francesa de Alfred Hitchcock. Ambos os cineastas apresentam uma qualidade inegável em seus trabalhos, de assustar ou manter sob constante tensão quem assiste a seus filmes. Mas estes dois cineastas possuem características radicalmente diferentes. São tão diferentes que os críticos da Cahiers du Cinema (entre eles François Truffaut e Eric Rohmer) negavam Clouzot e louvavam Hitchcock. Esta diferença se apresenta na forma como seus filmes são feitos.

Hitchcock é um artesão. Seus filmes são sempre feitos visando um fim: a imagem. O cineastas inglês não poupava recursos, nem se preocupava com o que pensariam seus atores, quando se punha na jornada de contar uma história por meio das imagens - essência do cinema, como ele mesmo afirmou em entrevista dada ao já citado fã-crítico-cineasta François Truffaut. Hitchcock começou a fazer cinema quando Murnau o elevava (ele, o cinema) ao seu maior grau artístico. Murnau, autor de Fausto e Aurora, alcançara o nível poético do dispositivo cinematográfico como poucos; e Hitchcock, como fiel seguidor deste modelo, não se furtou de tentar o mesmo. Mas ao invés de encontrar uma poesia romantizada, como Murnau, Hitchcock tenta encontrá-la no suspense: o lado poético do medo.


Clouzot, por outro lado, é um cineasta que não preza tanto pelas imagens - e talvez por isso nunca tenha se tornado um cineasta tão aclamado quanto Hitchcock. Seu suspense é mais contido que o produzido pelo inglês. Em As diabólicas, o terror do espectador surge junto com o da protagonista. Seus olhos esbugalhados e sua fuga do desconhecido são apresentados para um espectador que desconhece o que está a acometer a personagem. Em Clouzot a tensão é criada tanto pela nossa ignorância quanto pela ignorância da personagem. Em Hitchcock é porque sabemos o que se abate sobre o personagem que sentimos medo. Em Psicose, quando Antony Perkins  entra em sua mansão, ele desconhece o posicionamento de Vera Miles - sua presa - no interior da casa. Mas nós sabemos que ela está debaixo da escada. É por sabermos que o perigo está próximo que tememos pela segurança de nosso herói.

Hitchcock desenvolve uma base teórica para os seus filmes e o reproduz na maior parte deles como se estivesse a seguir uma cartilha escrita por ele mesmo. Já Clouzot não possui uma visão de seu cinema tão bem determinada quanto a de Hitchcock,  preferindo adequar-se ao formato que acreditasse ser o melhor para seu filme - Hitchcock adequa a história ao seu olhar. A afirmação feita no título deste texto diz respeito a desmistificar a generalização do suspense hitchcockiano em todo e qualquer suspense, ou em todo e qualquer autor que filme suspense. Grande parte daquilo que Clouzot faz em As diabólicas e O salário do medo não seriam considerados como suspense pelo mestre inglês do gênero. Mas por não coadunar com Hitchcock não quer dizer que Clouzot não fizesse filmes de suspense. Eles simplesmente não são filmes hitchcockianos. Porque Clouzot não é o Hitchcock francês!

terça-feira, 22 de abril de 2014

As Diabólicas de Henri-Georges Clouzot (les diaboliques, 1955)


direção: Henri-Georges Clouzot;
roteiro: Pierre Boileau (baseado em se livro), Thomas Narcejac (baseado em seu livro), Henri-Georges Clouzot, Jérôme Géronimi, René Masson, Frédéric Grendel;
fotografia: Armand Thirard;
estrelando: Vera Clouzot, Paul Meurisse, Simone Signoret.

Quando assisti As diabólicas pela primeira vez, fui ao filme despreparado. Henri-Georges Clouzot, diretor de quem já tinha ouvido falar algumas vezes devido a outro filme seu, O salário do medo, (e foi o nome do diretor que me levou a assistir ao filme) me deixou desarmado. Desarmado e encantado. A técnica de Clouzot é refinadíssima. Naquela primeira ocasião preferi não escrever nada acerca do filme, mas desta vez não posso me impedir de fazê-lo. O cineasta, mais um dos que foram renegados pela nova onda de críticos de cinema refinados e que buscavam um cinema refinado, sabe como conquistar sua plateia e deixá-la às suas mãos como poucos. 

Não é simplesmente pelo roteiro que Clouzot se guia. Ele faz questão de nos guiar por meio de suas imagens em uma fotografia em preto e branco interessantíssima de Armand Thirard que nos apresenta uma história de suspense envolvendo uma escola somente de meninos em Paris. Christina Delassalle (Vera Clouzot) é a dona da escola em que grande parte da ação do filme se passa. Seu marido, Michel Delassalle (Paul Meurisse) fez-se diretor da escola e manda em tudo e em todos. Ele tem um caso, que não é segredo para ninguém - nem para sua esposa ou para as crianças que estudam na escola - com Nicole Horner (Simone Signoret) que é professora na mesma escola. Certo dia, Nicole aparece com o rosto machucado, ficando claro para todos de que Michel a havia agredido (o diretor da escola não é nenhum santo e isso será demonstrado algumas vezes ao longo do filme).


Nicole convence Christina a viajar em um feriado junto com ela, deixando Michel para trás. Neste meio elas planejam o assassinato do diretor da escola. Chamam-no, então, para a casa em que estão no interior da França onde cometem o ato. A culpa corrói o interior de Christina que nunca esteve segura de cometer o assassínio. Elas retornam para a escola antes do fim do feriado e jogam o corpo do morto na piscina. Esperam o corpo boiar na água e dar a impressão de que acreditassem que ele estava bêbado e se afogou. Passam alguns dias e o corpo de Michel continua sem aparecer na superfície. Ainda mais atormentada, Christina pede para o zelador da escola para esvaziar a piscina. Quando o faz, descobre-se que o corpo desapareceu. 

É uma história muito bem conduzida por Clouzot que sabe controlar o tempo e espaço de seu filme para deixá-los a seu favor. E como o tempo e o espaço jogam a favor do diretor neste filme! A construção da temporalidade das cenas, a duração dos planos, o conteúdo dos quadros, são todos muito bem pensados para que o espectador fique submerso na atmosfera de suspense desenvolvida por Clouzot. Em muitos momentos são sutis as construções do filme feito pelo diretor. Logo no início do filme, para introduzir-nos a escola em que a história transcorrerá, Clouzot abaixa a câmera quando um carro atravessa os portões da propriedade para mostrar uma poça de água da chuva (também uma referência à primeira cena de O salário do medo, seu filme anterior) em que flutua um barquinho de papel que é destruído pelo pneu do carro que passa por cima da poça.


A câmera de Clouzot é sensorial, ela sente e necessita mostrar aquilo que sente. Não basta escutarmos os sons, necessita-se mostrar de onde eles vêm. Quando Michel é assassinado, seu corpo é deixado dentro da banheira onde fora afogado. As gotas da água caindo e batendo no plástico utilizado para cobrir o corpo é primeiro mostrado para o espectador, para depois mostrar o efeito colossal que o simples gotejar da torneira faz em Christina, que fica acordada, enquanto Nicole dorme ao seu lado. O simples gotejar de uma torneira ganha toda uma nova força por meio do olhar de Clouzot a esta cena, em que os temores de Christina passam a assombra-la na escuridão da noite, enquanto no banheiro ao seu lado jaz o corpo de seu marido morto.

Estes detalhes não podem passar sem serem mostrados para o espectador. Clouzot nos mostra todos, tentando nos deixar a parte de tudo. Quando Michel chega a casa em que será morto, uma garrafa de whisky é deixada em cima da mesa do quarto de Christina. A interação entre a câmera e os atores é toda construída em torno desta garrafa em que está um líquido que fará Michel dormir para que possa ser posto na banheira e morto por afogamento. Sua esposa está receosa e teme prosseguir com o plano, enquanto seu marido desavisado quer beber o conteúdo da garrafa. Cria-se uma batalha silenciosa entre os dois. Uma batalha entre o que quer contra quem não quer tem início. O diálogo não faz qualquer menção a esta batalha, mas nós a sentimos porque sabemos que o que se encontra no interior da garrafa não é simplesmente whisky. 

É um filme com uma condução belíssima por parte de seu diretor, uma verdadeira obra de suspense.  

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

O Salário do Medo de Henri-Georges Clouzot (le salaire de la peur, 1953)


direção: Henri-Georges Clouzot;
escrito por: Georges Arnaud (baseado em seu livro), Henri-Georges Clouzot, Jérôme Géronimi;
direção de fotografia: Armand Thirard;
estrelando: Yves Montand, Charles Vanel, Folco Lulli, Peter van Eyck, Vera Clouzot.

Henri-Georges Clouzot, cineasta de mão cheia, que sabe criar atmosfera de suspense como poucos, fazia parte de uma geração condenada ao esquecimento devido ao surgimento da nouvelle vague, movimento cinematográfico que nasceu com requerimento pronto e assinado para que todos os holofotes fossem direcionados para eles, e consequentemente fazendo-se esquecer de quem não fazia parte daquele grupo ou de quem não os havia influenciado. Clouzot antes mesmo disso já era um condenado. Tendo filmado dois filmes durante o período em que a França se encontrava sob ocupação nazista, ele foi visto por olhos tortos durante muito tempo. A condenação dura até os dias atuais. Seus filmes permanecem obscuros atrás das sombras dos filmes da nouvelle vague. Mas não só de nouvelle vague é feito o cinema francês.

Este que é um dos grandes sucessos do diretor, angariando críticas favoráveis, prêmios, e uma boa quantidade de público nos cinemas e é este sucesso reflete o poder da obra criada por Clouzot. O salário do medo se passa em uma cidade perdida no meio do nada na América do Sul onde uma grande empresa petrolífera estadunidense explora a população pobre e os estrangeiros que lá chegam em busca de oportunidades de trabalho. É um retrato cruel, mas o filme não possui a pretensão de fazer uma crítica social propriamente dita - ela está lá, mas não é o ponto principal a ser abordado.


O grupo de estrangeiros que está preso naquela cidade, cada um de um país diferente - existem os estadunidenses, um holandês, um italiano, franceses... -, não consegue sair dali, e estão sempre a desejar fazê-lo porque nada têm a fazer a não ser sentar no bar e olhar a vida passar. Por isso quando surge uma proposta arriscada feita pela empresa petrolífera de carregar por estradas irregulares centenas de litros de nitroglicerina (ou seja, o perigo de explosão é constante) todos se arriscam. Além do dinheiro, veem uma oportunidade de fugir daquele marasmo. Quatro destes estrangeiros são escolhidos: um italiano, um holandês e dois franceses. 

E assim começa a jornada que será, tanto para os personagens quanto para nós espectadores, extremamente tensa. A construção dos personagens é muito bem feita. Coloco isso tendo em mente o personagem de Jo (Charles Vanel) que começa impondo sua figura de valentão, fazendo outras pessoas o temerem, mas tão logo começada a jornada e os perigos que ela acompanhavam, seu comportamento frente ao que surge já não é mais o de coragem, mas de temor - e Jo demonstra ser, na verdade, um grande covarde. Já Mario (Yves Montand) que não sabe muito bem o que é - a exemplo da cena em que dividido entre passar o dia com seu amigo Jo e sua amante Linda (Vera Clouzot) - se define durante a viajem como sendo um personagem de personalidade forte, mandando em Jo, dizendo-lhe o que ele deve ou não fazer.


Mas vamos para o caráter cinematográfico do filme. O controle do tempo é feito com maestria por Clouzot. A cena em que melhor se nota este controle do tempo por parte do cineasta é a cena em que Bimba (Peter van Eyck) acende um pavio para explodir uma pedra que está no meio da estrada e que bloqueia o caminho dos caminhões. Bimba acende o pavio, fica tempo suficiente ao lado deste para ter certeza de que não irá apagar e começa a correr. Em um primeiro momento a montagem mostra Bimba correndo para se proteger, onde estão os outros e logo em seguida o pavio queimando. Em seguida nos é mostrado o grupo se protegendo atrás das pedras da montanha e Jo ficando dentro de um dos caminhões. A tensão que é criada vai além da cena da explosão, algumas das pedras que foram arremessadas pela explosão ameaçam os caminhões, e ficamos na expectativa de que um deles exploda.

A expectativa pelo que pode vir, por aquele perigo que está sempre à espreita, é uma constante nos filmes de suspense, mas que pobremente elaborados. Daí o motivo de ter afirmado no início deste texto que Clouzot é um dos poucos cineastas que sabem filmar suspense. Este é um gênero em que o filme se faz, em grande parte, por um pensamento do tempo, a noção da temporalidade dos planos, para que vá imprimir no espectador esta sensação de perigo constante de que, ou os personagens estão vivendo, ou acham que estão vivendo. É por meio do controle do tempo do filme que diferencia a percepção do espectador entre o saber que o personagem está em perigo (como os personagens de Clouzot estão) e o sentir o perigo a que eles correm (como Clouzot nos faz sentir). Com a dose errada poderíamos estar no cinema imaginando que este é um filme de comédia, e riríamos com as conversas dos motoristas e de seus caronas - é o tempo que nos define este filme enquanto um filme de suspense.


Pode ser contestada esta minha tese pela mesma cena da explosão uma vez que, ao fim da explosão uma pedra ameaça um galão de nitroglicerina que fora utilizada para explodir a pedra e que se encontra em frente de Jo. A pedra rola morro abaixo em direção ao galão ameaçando explodi-lo. Por ter optado mostrar esta pedra que rola morro abaixo, Clouzot teria feito uma cena que se baseia em uma representação espacial para criar o suspense e não temporal. Mas quando ele prefere mostrar esta cena intercalando a pedra caindo e o rosto de Jo encarando-a ele faz uma cena de suspense baseada em um "molde temporal". Ele alonga, assim, o deslizar da pedra, e o espectador fica mais nervoso - desta vez até porque tem um personagem que corre o risco de morrer devido à ela.

Obra belíssima, constantemente vista como sendo inferior à sua obra seguinte As diabólicas, mas que pode ser vista em um mesmo patamar. Clouzot é um grande cineasta e sua obra deve ser visualizada por quem gosta de bom cinema.