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domingo, 9 de junho de 2019

Notas sobre o sublime cinematográfico


Em julho de 1961, o cineasta, crítico e então editor dos Cahiers du cinéma, Éric Rohmer escreveu um dos artigos mais conhecidos de sua carreira como teórico de cinema para esta mesma publicação, intitulado O Gosto da Beleza, que mais tarde viria a figurar como título para a coleção de artigos e ensaios selecionados ao longo de sua carreira de pensador da arte em questão.
Eric Rohmer é conhecido nos meios cinematográficos como sendo um membro que politicamente se posicionaria mais à direita dentre os escritores da revista, e dentre os participantes do que ficou conhecida como a Nouvelle Vague. Em parte por isso o valor do ensaio O Gosto da Beleza foi sombreado pelo que costumeiramente foi interpretado como um lance conservador de Rohmer em buscar a retomada de vocabulário arcaico para tratar o cinema.
A proposta do crítico e cineasta em O Gosto da Beleza é o de encarar o cinema como uma arte madura, e portanto passando do ponto de os críticos e estudiosos se debruçarem unicamente nas formas de expressão das obras fílmicas para se focar na profundidade do conteúdo destes mesmos filmes - e aqui por conteúdo que seja entendido o filme em sua individualidade e singularidade, não sua temática ou roteiro. Se for para julgar os filmes como obra de arte, que os estudiosos de cinema se apropriem do vocabulário utilizado para se reportar a obras de arte.
Os esforços da crítica foram bem realizados ao longo das décadas anteriores, reconhece Rohmer, inclusive a de seus companheiros de Cahiers e de Nouvelle Vague – ocasionais críticos. Por meio dos artigos, críticas e ensaios de André Bazin, François Truffaut, André Labarthe, e alguns outros nomes muito caros à movimentação da cinefilia francesa, foi possível reconhecer algumas mudanças de perspectiva no tratamento interpretativo de uma obra fílmica. Em 1961, data da publicação do artigo de Rohmer, nem mesmo o crítico de um periódico provinciano – escreve ele – ousaria tratar os filmes somente a partir de seu roteiro, da história que conta. Um filme conta com todo um universo de possibilidades expressivas que permitem dar um tratamento ao roteiro, fazendo com que o trabalho de contar uma história em filme vá muito além do que se encontra escrito no texto entregue aos atores.
Chega então um ponto de contraposição. Se seus colegas estabeleceram estas mudanças de perspectiva de como interpretar um filme adotando o conceito de “mise-en-scène”, tomado de empréstimo do teatro e que passa a dizer respeito mais amplamente à encenação fílmica em todas as suas características (o jogo do ator com a câmera, o posicionamento da câmera, o movimento da câmera, a montagem, a colocação da trilha sonora...), Rohmer propõe uma nova mudança de perspectiva colocando sua preferência: o Belo. Para propor o uso da segunda noção em detrimento da primeira, Rohmer diz que no Belo já é possível abarcar a noção de “encenação fílmica”, mas deixa de lado o peso técnico que esta última carrega.
A incursão de Rohmer pelo trabalho que seus parceiros de crítica realizavam até então pode ser expandido para o trabalho feito pelos filósofos ao tomar o cinema como tema de investigação – num padrão que se manteve mesmo depois do artigo de Rohmer. Os comentários envolvendo o dispositivo cinematográfico por filósofos datam desde seus primeiros dias de existência, sendo que dentre os mais famosos estão aqueles de Henri Bergson, notavelmente em A Evolução Criadora. O foco exclusivo no cinema, porém, somente terá início alguns anos mais tarde desta que é a obra mais conhecida de Bergson, quando Hugo Munsterberg publica nos EUA o tratado The Photoplay: A Psychological Study, dedicando-se inteiramente ao estudo do cinema, em 1916. Contudo, o tratado de Munsterberg não ficou tão bem conhecido entre o público geral e os acadêmicos de filosofia e das artes, somente ganhando notoriedade décadas mais tarde.
Durante esta primeira fase da história da teoria de cinema, aqueles que mais tomaram a frente para pensar a arte e suas formas de expressão foram os próprios realizadores. Na União Soviética, os cineastas mais influentes não somente trabalhavam fazendo filmes, como também auxiliavam na formação de novos realizadores de cinema. Foi destas aulas que surgiram experimentos de ordem perceptiva, para notar padrões de comportamento do espectador com relação às imagens – o mais famoso dentre eles é aquele realizado por Lev Kulechov –, assim como para pensar em novos caminhos de utilizar a montagem para melhor desenvolver uma narrativa essencialmente cinematográfica – como é exemplo com os exercícios teóricos e práticos de Eisenstein com a montagem de atrações e a dialética fílmica.
Curiosamente, é na França que se pode encontrar – ainda na década de 1920, durante o período silencioso do cinema – alguns exercícios próximos à proposição de Rohmer em seu artigo. Se na Alemanha do mesmo período ficou famoso o movimento expressionista, na França semelhante movimento acontecia de cineastas desenvolverem obras vanguardistas buscando experimentar com as formas de expressão do cinema. O grupo central do cinema francês do período ficou conhecido como Impressionista, em aproximação com o movimento das artes plásticas do mesmo país. Os cineastas, assim como os soviéticos, trabalhavam também como teóricos, ainda que diferentemente dos soviéticos não tivessem uma escola de formação de novos realizadores. Logo a crítica de cinema francesa ganhou fôlego, e já no final da década de 1910 todo jornal do país carregava uma seção dedicada a crônicas sobre a nova arte. Por meio destes espaços os realizadores de cinema podiam desenvolver suas ideias a respeito do que pensavam. A ideia que mais se aproxima daquela de Rohmer envolve a noção de fotogenia.
Assim como a noção de “encenação fílmica”, a “mise-en-scène” – um conceito tão popular dentre os críticos que mesmo no Brasil é utilizado por acadêmicos sem tradução para guardar sua amplitude descritiva dentro da teoria de cinema – “fotogenia” não é um termo novo para as artes, antes sendo proveniente da fotografia, sendo apropriada pelos estudos de cinema e carregando forte peso técnico, como sua prima “mise-en-scène”. Mas Fotogenia começou a ser utilizada pelos cronistas, críticos e teóricos de cinema nos anos 1920 como um termo para poder abarcar tanto o aspecto técnico do dispositivo cinematográfico, quanto seu aspecto estético. Um exercício de cineastas para encontrar o meio termo entre a técnica e o poético que guarda esta nova arte. A poesia seria rendida no cinema através da Fotogenia. Dentre os realizadores que se dedicaram ao estudo da Fotogenia no cinema, destacam-se Louis Delluc e Jean Epstein.
Apesar das promessas da Fotogenia para o cinema, sua definição nunca foi muito bem precisada pelos realizadores, deixando-a a cargo da intuição de seus leitores e colegas realizadores para desvendar seu mistério. É o que nota, por exemplo, Jacques Aumont, ao citar um trecho de um dos ensaios de juventude de Jean Epstein, escrevendo, “a fotogenia é para o cinema o que a cor é para a pintura, o volume para a escultura: o elemento específico desta arte” – assim começa Epstein, ao que Aumont conclui, “A fotogenia é a virtus artística do cinema. não precisa portanto de nenhuma definição particular. Daí Epstein voltar ao termo dez anos depois exatamente, em 1934-1935, para anunciar uma ‘fotogenia do imponderável’. Simplesmente, a ênfase deslocou-se da fotogenia ao imponderável: o cinema tornou-se a arte do invisível” (AUMONT, p. 92).
Precisamente este invisível, ou imponderável, passou a ser levado em consideração por críticos e filósofos ao longo das décadas seguintes. O próprio Epstein, ao se ver afastado da produção fílmica depois do advento do cinema falado, passou a cada vez mais redigir ensaios sobre o cinema abordando o caráter metafísico do dispositivo cinematográfico, dando particular atenção à relação do cinema com o tempo. Durante este mesmo período, André Bazin, mentor de Eric Rohmer, escreve uma série de ensaios acerca do realismo cinematográfico em estudos de viés ontológico, também se dirigindo ao tempo, ou neste caso em seu débito com a filosofia de Bergson, duração. Assim continuam os estudos de cinema, com Edgar Morin na década de cinema com o livro O Cinema ou o Homem Invisível, Susan Sontag em suas Notas sobre Bresson.
Até que na década de 1970 uma corrente iniciada pelo cineasta estadunidense Paul Schrader, roteirista famoso pelo filme Taxi Driver, começou a chamar este invisível, o imponderável, sob a categorização de “cinema transcendental”. O ensaio de Schrader exerce grande influência sobre estudiosos, especialmente sobre a obra do filósofo francês Gilles Deleuze, ao escrever o segundo tomo de seu texto sobre cinema. Ancorado no título de Schrader que Deleuze cunha seu famoso conceito de imagem-tempo.
Apesar da importância de todas estas concepções, permanece válida a incursão de Eric Rohmer, mas desta vez com uma perspectiva filosófica. Os estudos que se preocuparam com pensar o cinema continuadamente mantiveram suas proposições voltadas para aspectos ora técnicos, ora ontológicos, recusando o vocabulário estético que a tudo isto poderia abarcar, e ainda levaria em consideração a condição do objeto de investigação: a arte cinematográfica.
Na separação dos dois tomos de seu estudo de cinema, Deleuze realiza também uma separação “histórica” – aqui figurando entre aspas porque não trata do autor nem como uma evolução (como o fazia Bazin), nem como uma progressão, ou como havendo um momento de ruptura na história desta arte. A “história” do cinema deleuzeana se divide (como fazia Bazin) entre clássico (imagem-movimento) e moderno (imagem-tempo), uma divisão que continua a causar confusões interpretativas da obra do filósofo. A imagem-tempo seria constitutiva de características muito próximas àquelas detalhadas por muitos outros teóricos de cinema antes dele: há o tempo, o espírito, o pensamento, o transcendente. Curiosamente, no entanto, é encontrar estas características na descrição de escritores clássicos ao considerar a emoção do sublime.
O sublime foi emoção considerada por muitos autores ao longo dos séculos, caída em desuso por acadêmicos próximos à arte cinematográfica antes mesmo de abordá-la. Há, assim, o perigo de tomar uma noção desenvolvida quando inserida em determinados contextos alheios àqueles da arte cinematográfica. Quando pensado por Longino, o sublime é pensado exclusivamente no contexto literário. Quando pensado por Kant, o sublime não se prende às fronteiras da experiência com as artes. Em fato, o sublime tal como tratado por Kant em sua Crítica da Faculdade de Julgar somente será mais diretamente vinculado às artes quando pensado por autores muito mais próximos à produção artística, como Schiller, mesmo assim, ainda antes da criação do cinema.
Próximo do que Rohmer já propunha a respeito do Belo, um estudo que atualize o sublime pensando-o em sua ligação com o cinema não poderá se furtar a levar em consideração as ponderações ontológico-metafísicas em torno desta arte. O objetivo desta pesquisa é o de buscar nas fontes clássicas os estudos sobre o sublime, para que assim seja possível realizar uma atualização da noção, aproximando-o de uma metafísica e de uma ontologia do dispositivo cinematográfico.



ROHMER, Eric. Le gout de la beuté. Publicado originalmente em: Cahiers du Cinéma, Julho de 1961, Tomo XXI, nº 121, p. 18-25.

(texto originalmente apresentado no seminário da pós-graduação em Filosofia da Universidade Federal da Bahia)

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

O mensageiro do diabo ou A noite do caçador de Charles Laughton (the night of the hunter, 1955)

por: André S. Labarthe

LA PART DU FEU
Para se jogar o jogo da novidade, de concessão em concessão, o cinema tem recusado alguns dos mais belos fragmentos do duplo sentido do termo dia (jour) moderno que às vezes leva as garrafas mais antigas armazenadas no espírito humano. O dono delas é Charles Laughton que rompe o silêncio e nos convida a esta insólita descida ao inferno da memória. Sob o pretexto de uma “história de assassinato”, tão boa quanto qualquer outra, ele pincela sob nossos olhos um inquietante retrato da vida infantil, comparável em mais de um ponto aos cantos II e III da obra de Lautréamont.

Durante a estada na prisão, Harry Powell, um pastor que não está em sua primeira fraude, entra em contato com Ben Harper condenado a ser enforcado por ter roubado 10 mil dólares que jamais foram devolvidos. De volta à liberdade, seu primeiro cuidado é de casar a viúva, Willa, mãe de duas crianças, Pearl e John, na tentativa de colocar a mão no dinheiro. Mas Willa, ele logo percebe, ignora o esconderijo. Ele a mata e a atira ao rio ao volante de seu carro. Então começa a sarabanda infernal. Vez e outra com ameaças o pastor não chega a adivinhar onde se encontra o dinheiro, numa boneca que as duas crianças não deixam nem de dia nem de noite, que quando aterrorizadas, fogem e sobem o rio numa barca. Eles são recolhidos ao amanhecer por uma agricultora de grande coração que os guarda com um fuzil na mão. É ela que fere o pastor e o faz ir preso enquanto John, tendo uma crise nervosa, rasga furiosamente a boneca de onde escapam dos 10 mil dólares.


Tal é a trama geral de O mensageiro do diabo (ou A noite do caçador), o seu conteúdo manifesto. Mas se nos interrogamos acerca da significação desta noite de terror, como evocamos o aspecto onírico do conjunto que vem reforçar a identidade plástica da prisão de Ben Harper e a do pastor, é a seu conteúdo latente que devemos nos referir.

Tudo se ilumina, com efeito, se considerarmos este filme como a história de uma regressão que conduz justamente à extrema origem da vida de duas crianças vindas recentemente da vida aquática (intra-ulterina) à vida pulmonar. O filme começa pela exposição detalhada de um duplo complexo de Édipo positivo. O pastor Harry Powell, o ogro dos contos infantis, (que nos aparece um instante antes numa mesa abundantemente servida, como o próprio Laughton mais tarde em seus filmes) é o Paiusando seus instrumentos de tortura” (Chant de Maldoror). Em sua companhia a pequena Pearl abandona facilmente a boneca, símbolo maternal, manifestando assim uma fixação a seu lugar. Já John ao contrário, a fixação à mãe, simbolizado por seu apego à boneca, se traduz numa contrariedade ao Pai por uma atitude hostil que conduz a perpetração (falha) do assassinato (assassinato de Laoïs), atitude determinada pela ameaça do Pai com sua inseparável faca, símbolo dissimulado da castração.


A segunda parte do filme surge sob o signo da regressão. Assistido pela castração, John leva sua irmã e as duas crianças fogem remontando ao rio. Fazem lembrar que entre tempos o pastor, para se livrar da mãe, a jogou na água e por este ato realizando o homônimo mãe-mar (mer-mère, no original). É então, depois da ansiedade da perseguição, o inconsciente ultra-uterino de sua origem a que retornam as duas crianças. Como a boneca, a água é o símbolo da mãe e não é inútil sinalizar que remontar ao rio, é ao princípio a que remontam John e Pearl. Porque, o amanhecer, ao amanhecer de suas vidas, eles adormecem enfim, eles retornam à segurança do primeiro sono: “e como nos tempos antigos eles podem dormir no mar” (Eluard). O auge da regressão é evidentemente o “ventre maternal” simbolizado aqui pela velha fazendeira que vela sua segurança e que assume a figura abstrata da Mãe. A prisão do pastor, por sua identidade como de seu pai, desperta subitamente em John a dolorosa consciência de seu ato: ele é o assassino de seu pai.

Se agora nós nos apegarmos a investigar o clima religioso que banha o filme, uma segunda interpretação vem a sobrepor a anterior.


Em “Moisés e o monoteísmo”, Freud fez derivar o conceito de pecado original do “sentimento de culpabilidade devido a um sentimento reprimido de hostilidade contra Deus”. Harry Powell, este estranho pastor que porta as palavras AMOR e ÓDIO tatuadas na primeira falange de cada mão, é o Deus do Antigo Testamento, o “bandido celeste” dos Cantos de Maldoror, o mais forte cuja cólera é terrível. Antes dele, John e Pearl, como as pessoas de Moisés, estão cheios de medo e de respeito. Pouco a pouco, “o sentimento reprimido de sua hospitalidade contra ele” se materializa nos 10 mil dólares que eles escondem na boneca e que torna-se assim o símbolo de um ato que eles não cometeram (a morte de Ben Harper). O parricídio final, o povo judeu linchando (como no filme) seu próprio Deus, dá um sentido a sua culpabilidade até então sem objeto real, a marca real. O símbolo dos 10 mil dólares, doravante inúteis, é destruído.

Tal como se apresenta, com suas imagens que vem do Expressionismo sem ter o álibi cronológico (devido a Stanley Cortez, o operador de The magnificente Ambersons (Soberba)), O mensageiro do diabo (ou Noite do caçador) é o filme da infância. Outro Lautréamont, vejo apenas Bellmer, com seus “Jeux de la poupée” ou Michaux porque ele começa a falar da borracha, por render uma atmosfera semelhante de sexualidade perturbada.

O mensageiro do diabo (ou Noite do caçador), belo “como a lei de para o desenvolvimento de mama nos adultos nos quais a propensão de crescimento não é relatada com a quantidade de moléculas que seu organismo assimila” (Cantos de Maldoror).

(LABARTHE, André. em Cahiers du Cinéma, n° 60, junho de 1956, p. 41-42)