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quinta-feira, 15 de julho de 2021

Centenário de O Garoto, de Charles Chaplin

 

originalmente publicado em A terra é redonda.

republicado em Rede Brasil Atual

            Esta será uma década para comemorar muitos centenários queridos ao cinema, pretexto para rever filmes que assistimos mesmo sem precisar de pretexto, mas os achamos para fazer das novas visitas aos clássicos uma obrigação. Ano passado foi a vez de Caligari, de Wiene, ano que vem será a vez de Nosferatu, de Murnau. Encurralado entre estas duas sinfonias do horror “um filme com um sorriso – e talvez uma lágrima” (o talvez é puramente retórico, porque a lágrima é certa). A década de 1920 foi definitiva para mostrar o potencial artístico desta mídia nascida das fábricas. Apesar disso, se havia alguém no universo cinematográfico que já lograva dos louros da glória do reconhecimento de seu gênio artístico, esse alguém era Charles Chaplin. Neste 2021 celebramos o centenário de O Garoto como desculpa para rever um filme que não deixamos de rever ao longo de nosso percurso pela cinefilia.

            Para um acadêmico como eu, os traços constituindo a genialidade de Chaplin já se encontravam por todos os cantos na literatura teórica e crítica anterior a O Garoto. Ainda assim, é interessante encontrar em The Photoplay um professor de psicologia da universidade de Harvard – portanto, um intelectual bem reconhecido entre seus pares – dando seus primeiros passos pelo cinema e já em 1915 – ou seja, no segundo ano de Chaplin como artista de cinema – reconhecer o diferencial e a superioridade deste criador de filmes. Como bem apontará André Bazin décadas depois de Munsterberg – autor de The Photoplay –, sem o ter lido, este é o período no cinema de Chaplin das grandes gags, mas de um Carlitos ainda pouco desenvolvido em sua psicologia.

            A psicologia de Carlitos se desenvolve em concomitância à segurança autoral de Chaplin, a cada vez que explore contradições sociais e políticas tendo como ator este dândi meio cavalheiro meio vagabundo. Por sinal, este traço de Chaplin realizador rendeu um belo filme revisitando a obra chapliniana no ano passado, Charlie Chaplin, le génie de la liberté, de Yves Jeuland.

Não só a política encorpava a persona das telas deste criador, também seus traços biográficos ajudavam a pintar cenários e situações, movendo um Carlitos inicialmente mais próximo dos hotéis de luxo para os bairros pobres e os centros comerciais das cidades, lugares onde um Vagabundo como ele cada vez mais incorporava seu papel de marginal pronto para tomar o centro da ação.

            Assim O Garoto costuma ser lembrado, como esta grande peça onde a crítica social e a biografia de seu realizador entram em conluio. Eis uma boa fórmula para a justificativa de Chaplin como um autor, como gerações mais tarde cravarão. Todos os títulos são perfeitamente justos. Os temas do filme são muitos, a luta de classes, a maternidade, o papel da segurança do Estado, mas também é interessante notar a maestria do tratamento dado a tantos assuntos pesados de modo breve e que em momento algum soa “pregatório”. Pelo contrário, o fluxo da história trazendo um evento seguido de outro cria uma comoção continuada que transforma seus temas em assunto universal. Compreendemos todos os choques não porque os entendemos, mas porque os sentimos, o entendimento fica para um momento posterior de debate em sites de internet, em cadeiras de bar, ou em debates de sala de aula.

            Ilustrativo de tudo isto é o princípio do filme, narrando a história que levará ao abandono da criança. A Mãe, numa performance tocante da parte de Edna Purviance, aparece primeiro com seu bebê nos braços atrás das grades. Ela não estava presa e não se trata de uma prisão, mas a maternidade voltada a mulheres pobres e solteiras como ela carrega a atmosfera de prisão para mulheres delinquentes cujo crime é a maternidade. Passando em frente a uma igreja numa peregrinação sem rumo, a Mãe vê uma festa celebrando um matrimônio. Ela se entristece com a cena, seu olhar é análogo ao de pinturas de santas, e isto não passa despercebido de Chaplin que monta uma composição mostrando por meio do vitral da igreja às costas da Mãe a sua santidade pelo milagre de ter trazido uma vida ao mundo. Soa demasiado cristã esta última sentença? De fato, contudo o uso de imagens cristãs será recorrente neste filme. Uma das mais famosas é o corte entre a Mãe e um Cristo carregando a cruz, sequência que poderíamos apontar como predecessora ao corte das ovelhas/trabalhadores em Tempos modernos, tão frequentemente vinculado aos métodos de montagem de Eisenstein.

            A história de um casal quebrado, cujo amor resultou na criança que a Mãe agora carrega nos braços, é sintetizada por alguns momentos breves que não dão motivos para o rompimento do casal, apenas demarcam sentimentos de uma paixão ainda existente mantida em silêncio, seguido por uma sensação melancólica. O pai é um pintor pobre, trabalhando em algum sótão em ruínas. Ainda mantém a foto da mulher sobre a lareira como uma lembrança de tempos melhores. Tentando acender um fumo, acidentalmente deixa a fotografia cair na brasa. O papel se queima, a lembrança da paixão foi maculada. Como se não houvesse mais precisão para o presente, como se a própria memória tivesse sido apagada a fogo, o jovem pintor lança o papel de volta às chamas para que desta vez seja de fato consumido, retornando para sua banalidade presente desprovido de presença feminina.

            Alongo a contemplação da história deste casal porque estes momentos marcam um Chaplin exercitando seu talento dramático, o que será levado ainda mais adiante dois anos depois, quando lançará A Woman of Paris (no Brasil lançado com o título Casamento ou luxo). Os motivos acerca da união destas personagens são quase nulos. Os entendemos, fora da tela, como uma espécie de extensão da representação dos pais de seu autor. Também pai e mãe de Chaplin eram artistas, também não viviam juntos. Mas em O Garoto, o abandono do bebê acarreta um sucesso de sabor amargo para ambos – e um prato farto para leituras psicanalíticas. Num encontro da alta sociedade, já num momento mais avançado do filme, Chaplin faz estas duas personagens se encontrarem. Não existem acusações aqui, apenas arrependimentos e saudades. As perguntas nascem em nossa mente de espectador: saberia ele que ela estava grávida? Teria ele a abandonado por saber que ela estava grávida? Teria ele se recusado a casar-se com ela? Todas as perguntas ficam para o campo da especulação. Durante a projeção do filme o que melhor nos serve é o diálogo de emoções travado entre duas personagens tão conflituosas.

            Então, a Mãe deixa o bebê dentro de um carro na frente de uma mansão na expectativa de que os ricos moradores do lugar tomem a criança como sua. Numa reviravolta, dois bandidos típicos dos filmes de Chaplin desde os anos de aprendizagem nos estúdios de Mack Sennett, aparecem. Roubam o carro sem se dar conta da presença da criança no banco traseiro. Param num bairro pobre para fumar, quando escutam o choro da criança vindo do carro. Este é um daqueles momentos que justificam a troca de terminologia de “cinema mudo” para “cinema silencioso”. Apesar do choro não ser escutado pela plateia, ele faz parte da imagem-som, como diria Luiz Manzano. Os cortes da imagem da criança chorando para a imagem dos bandidos reagindo ao choro adiciona uma faixa de áudio ao filme, mesmo na ausência de traquitana para gravar o choro da criança.

            A introdução do filme marca a força da montagem na criação desta história. A maquiagem pesada dos bandidos, tentando criar cavidades escuras em seus rostos, era um aspecto empregado pelos cômicos ao colocar tal tipo nos filmes. Acontece que a imagem dos bandidos abandonando a criança num beco qualquer, longe da mãe, em meio a latas de lixo, surge carregada de um senso angustiante quando seguindo as imagens da Mãe em desespero voltando para recuperar o filho deixado no carro e descobrindo que ele foi levado, que seu paradeiro não voltará a ser encontrado. Diferente do que acontecerá assim que for apresentada a personagem de Carlitos, que virá abolindo este uso mais direto da montagem, a introdução dramática de O Garoto se baseia principalmente no diálogo emocional entre dois polos. A chegada de Carlitos em cena é a passagem para o plano aberto, dando espaço para a composição de quadro e movimento dentro do cenário. Afinal, Carlitos é um bailarino.

            O plano mostra bem um beco sórdido, de terra batida e lixo pelo chão. Apresentando a dinâmica do perigo do fora de quadro, lixo cai do alto do prédio em direção à rua. Carlitos vê o acontecido e contorna o montinho de lixo recém-formado, continuando a caminhada com toda a sua graça. Inesperado para ele, outra janela mais a frente, também fora de quadro, se livrará do lixo diário atirando-o à rua, agora acertando em cheio nosso velho conhecido. Parado entre lixeiras, limpando o lixo com o qual foi atacado, o Vagabundo descobre um bebê abandonado. A dinâmica até aqui foi clara, o inesperado vem de cima. Assim, quando Carlitos toma o bebê nos braços não pode deixar de olhar para cima, como se alguém tivesse misturado a criança acidentalmente com o lixo.

            O que fazer com a criança? O novo Carlitos, de profundidade e complexidade psicológica, não é capaz de simplesmente deixá-la onde achou. Procura alguém com quem deixar, talvez alguém que já tenha um bebê. Talvez não. A força da lei na figura de um policial alto e sério que faz Carlitos dar passos para trás é curiosamente o que também o leva à resignação. Encontra em meio às roupas da criança o objeto que servirá de ligação entre passado e presente: um bilhete escrito pela Mãe dizendo que se trata de uma criança órfã. Entendendo bem de solidão, Carlitos acolhe o bebê, levando-o para casa. Quando questionado à porta do casebre, responde que o nome da criança é “John”.

            Os anos passam, vemos os tratos do Vagabundo ao bebê, sua afeição pela criança, que crescida se transforma em sua parceira de trabalho numa das cenas mais bem lembradas da história do cinema. O menino, agora com cinco anos, atira pedras contra vidraças residenciais. Sorte do acaso, Carlitos está passando em frente às residências, podendo consertá-las de imediato. Muito já se escreveu a respeito do brilhantismo do jovem Jackie Coogan interpretando a criança, assim como muito já foi reportado acerca do entrosamento em cena de pai e filho. Pulando etapas, chego ao momento do primeiro reencontro da Mãe com a criança abandonada.

            Já fora mostrado como a passagem dos anos fizeram bem ao status social da Mãe, agora uma artista de fama e fortuna. Mas algo lhe pesa na consciência, obrigando-a a voltar aos bairros pobres para fazer caridade. Ela dá brinquedos às crianças que se aglomeram ao seu redor, fazendo surgir enorme sorriso até então inédito em seu rosto. Para uma outra mãe com uma criança de colo, para além do brinquedo ela também dá uma moeda. Trata-se de uma parte muito sofrida da cidade, onde as pessoas precisam se desdobrar para conseguir comida. As gags de Carlitos e filho mostram bem o quanto de esforço criativo é necessário para conseguir a moeda garantidora do jantar do dia.

            Afastada das crianças, o sorriso da Mãe desaparece. Não é preciso um recurso de montagem para indicar o que se passa. Ela lembra de seu bebê abandonado, provavelmente inquerindo onde ele poderia estar. Numa bela composição de quadro, a Mãe se senta numa calçada à porta da casa 69. Como há um degrau a mais para entrar na casa, a porta aparece alta às costas da Mãe. Enquanto ela se perde em seus devaneios, a porta abre e o menino perdido senta-se logo atrás. Aquele quadro dentro do quadro serve como uma espécie de balão mostrando pensamentos. Numa imagem lírica digna do que Bergman fará décadas depois em suas experiências atravessando mundos de sonhos e lembranças, um rasgo é feito no tecido do tempo unindo Mãe e filho mais uma vez.

            O encontro entre os dois é comovente. A troca de olhares singelos, o carinho da mulher que parece enxergar algo a mais na criança presenteada com brinquedos, um indizível que permanece a incomodá-la. Enquanto ela se afasta do sítio do encontro, sua reação diferente da reação tida anteriormente quando em companhia das outras crianças, como se algo que conectasse os dois houvesse soado em seu interior, mas a falta de exercício da maternidade dificultasse a compreensão do que seria isso.

            Me ative por mais tempo para relembrar os momentos em que Carlitos não está em cena, mas que demonstra a sapiência de seu criador na construção da composição e narração fílmica. Era tamanha a sua facilidade em contar histórias em filme, mesmo quando ele não aparece em cena, que este filme certamente foi um marco para sua passagem a outra obra mais ousada dentro de sua filmografia, o já mencionado A Woman of Paris.

Como artista da pantomima, Chaplin domina o palco, alcança a perfeição do ritmo dos momentos e deslocamento ao longo do cenário – lembremos da icônica sequência da corrida pelos telhados, homenageada por Manoel de Oliveira em Aniki Bobó. Como diretor de cinema, Chaplin demonstra o domínio do corte, da sequência de planos em situações simultâneas em locais distintos, e da composição de quadro, reconhecendo a importância de portas e janelas como forma de reenquadrar certos personagens. Ainda, sabe da importância do som para o cinema, enxergando a sua presença mesmo nesse período silencioso, demonstrando por isso a completude do cinema, não uma falta – daí sua obstinação em se render ao cinema sonoro.

            Retornamos às cenas com descrições também alongadas para criar mais uma sensação de rever este clássico. Não era necessário, mas já que estamos aqui, vamos rever O Garoto?



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domingo, 17 de janeiro de 2016

Onde jaz o teu movimento?


1) No filme de Pedro Costa em que acompanhamos os realizadores Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, Onde jaz o teu sorriso?, uma cena chama muito atenção. Tudo o que temos no quadro é a tela onde passa o filme sendo montado pelos cineastas. Straub conversa bastante, já Huillet prefere ficar em silêncio pela maior parte do tempo, mexendo na mesa de montagem, avançando e voltando o filme, buscando o ponto certo em que possa fazer o corte. Na cena em questão temos a busca por um sorriso breve. O ator, ou não-ator, do filme dá um breve sorriso antes do começo da cena, entre a saída da claquete de quadro e a pronúncia de sua fala. Huillet vê da primeira vez que passa o filme. Depois volta em busca daquele momento, para que possa inseri-lo em sua obra. Por mais que volte o filme, encontrando até mesmos os quadros marcados para descarte, ela parece não encontrar aquele momento único. Seria a aura benajminiana se abatendo num filme?

O movimento é a característica principal de um filme de cinema. É graças ao movimento que o cinema é chamado de "cinema". E ao realizador o que mais deve ser buscado no momento de criação de seu filme é este movimento. Não qualquer movimento, como a maior parte das pessoas com acesso a uma câmera de filmar podem fazer. Um movimento dotado de algo a mais. Um movimento significativo. Unido de emoção e ideia. Straub, no filme de Pedro Costa, lembra de Chaplin - no meio das muitas histórias que ele conta. Diz ele que o movimento no cinema do cômico inglês, em seus primórdios, podia ser encontrado no olho. Ou melhor, que o movimento começava pelo olho. Curiosa proposição essa de Straub, mas que não deixa de provocar alguns pensamentos. Chaplin raramente fazia close-ups. O que significa que o movimento no quadro começava de modo quase imperceptível. Mas em se tratando de Chaplin, não seria tão imperceptível assim.


2) O movimento começando pelo olho significa que no quadro há um ponto significativo. Um movimento quase encoberto por outros. Como acontece ao início de filme de outro realizador, e que me fez escrever esse texto. A sufragista (Die Suffragette), de Urban Gad, data de 1913. Os letreiros nos deixam bem clara a intenção de construção de uma história de amor, mesmo por trás de seu conteúdo político. Temos um casal apaixonado, que sofre por diversos desencontros. Ela quer conhecer ele, pede aos amigos, que por algum motivo o negam. Numa das cenas, o casal está no mesmo clube, mas não conseguem se encontrar, impedidos pelas multidões de amigos que evitam o contato dos dois. Ela vê algo fora de quadro. Quer ir nessa direção. É impedida pelas mãos que a empurram para cima de uma carruagem. No mesmo plano, auxiliado por uma panorâmica, um homem surge montado num cavalo. A moça já não mais pode ser vista, mas ele, no cavalo, pode vê-la. Move seu animal na direção dela, mas é impedido pelos corpos de conhecidos ao lado. O movimento do cavalo em direção à carruagem não é chamativo, passa quase despercebido, mas está lá.

Em um só plano também é realizada a cena em que a moça protagonista diz a sua mentora que implantou a bomba na casa de seu rival. Ela caminha cabisbaixa por toda extensão do cômodo até chegar próximo à câmera. Todo esse seu caminhar é acompanhado por sua mentora, cada vez mais tensa com as expressões da mulher. No desenvolver da cena o movimento cria o sentimento do arrependimento das personagens em terem chegado a uma atitude tão radical. A mentora busca nos olhos da outra a resposta que o tempo todo esteve gravada em seu gestual, em seu caminhar, nas expressões de sua face.


3) Semelhante construção da cena de Caminhada noite adentro, o filme mais antigo de Murnau a que temos acesso hoje - os demais se perderam. Quando a ex-mulher do médico surge em seu consultório pedindo-lhe um favor para o novo marido, ele nega. Ela se encolhe, chorando. O movimento dele muda completamente em um plano: de seu gestual de homem de força, que demonstra irritação frente ao pedido, torna-se a figura de um homem sensível, que se solidariza pela dor daquela mulher. Sem necessitar de maiores artifícios, Murnau altera o movimento em um plano, alterando também o seu sentido inicial. Se aquele plano inicialmente era utilizado para mostrar a repelência do ex-marido, ele muda radicalmente para mostrar o homem ainda apaixonado.

4) Essa é a natureza do plano-sequência. Não jaz em sua longa duração, e sim em sua mostragem do movimento. Um filme com muitos cortes pode ser repleto de planos-sequência, como podemos notar pelo filme de Staub-Huillet/Pedro Costa. O que importa é o que acontece no interior do quadro. A aparição do sorriso e o seu consequente desaparecimento.

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Nosferatu de F. W. Murnau (1922)



Amigo Arthur: se tivesse se rendido àquele beijo, antes da morte de Lucy, ou se tivesse se entregado ao abraço dela, ontem à noite, também se tornaria uma vítima; e, no devido tempo, morreria e se transformaria em um nosferatu - o nome que recebem essas criaturas no Leste Europeu. E então você andaria pela noite, amigo Arthur, criando novos mortos-vivos e espalhando o horror para sempre.
passagem de Drácula, de Bram Stoker 

Nosferatu é um daqueles clássicos absolutos do cinema em que se falar alguma coisa contrária à afirmação de que é uma obra estupenda já soa feio ou muito pedante da parte de quem escreve. Infelizmente, um de meus maiores defeitos é o pedantismo - luto contra ele, mas aqui no blog ele aparece. E assim, para escrever sobre o mais famoso filmes de Murnau vou dividir este comentário em duas partes: o equívoco e o fascínio.

Drácula não foi um sucesso assim que lançado. Bram Stoker não viveu da fortuna que ganhou com a venda de seu livro. Na verdade, nas notas sobre o falecimento do autor, os jornais nem mesmo citaram esta que é uma de suas poucas obras conhecidas atualmente. Ainda assim, sua família foi resistente em vender os direitos da obra aos produtores alemães que queriam filmar a história. O resultado foi exatamente este Nosferatu, um filme livremente baseado no livro, mas que na verdade muda muito pouco - somente alguns dados bem pontuais.


O que se torna um dos equívocos do filme. A transformação da obra literária em cinematográfica deixa na narrativa contada em tela alguns buracos ou momentos e personagens aparentemente desnecessários. O personagem de Van Helsing, transformado em Professor Bulwer, é mantido no filme, mas sua aparição é quase desnecessária. Assim como os amigos de Ellen, a mocinha do filme por quem o vampiro se encanta. Outro destes personagens desencontrados é Knock, que inicia o filme sendo o patrão de Hutter, e que sem muita explicação vai parar internado num asilo.

Mas é o fascínio que transforma este filme tão especial. Isto porque estes personagens desencontrados, cujas histórias pouco importam para a narrativa que transcorre, são eclipsados pelo trio protagonista. Conde Orlok, o vampiro da Transilvânia, Hutter que vende ao conde a casa em frente à sua, e Ellen, esposa de Hutter. Se em Drácula, Bram Stoker constrói uma narrativa contada a partir da perspectiva de quatro diferentes personagens que se relacionam entre si de alguma forma, Murnau cria em seu filme um núcleo que por vezes é abandonado para mostrar o impacto daquele sujeito - o vampiro - nos ambientes em que aparece.


Um primeiro personagem que podemos enfatizar é Hutter. Corretor imobiliário, o jovem parece viver uma carreira profissional meteórica. É mandado por seu chefe para o exterior vender uma mansão a um conde. Murnau faz desta narrativa o processo de maturação deste personagem, que inicia como um garoto - e assim se distanciando a obra literária. Está sempre a rir, não enxerga que existe o mal ao redor, e que este mal pode afetá-lo. Aceita a viagem de bom grado imaginando o bem que fará para sua carreira e para seu casamento com Ellen. Chegando ao vilarejo da Transilvânia, Hutter já tem seu primeiro contato com um mundo bem diferente que o tira de seu conforto. Comenta que tem que ir ao castelo do conde num bar enquanto pede a comida. O bar imediatamente se silencia e todos os olhares são direcionados ao pobre coitado - a primeira menção de que algo de errado há naquele lugar.

Hutter sobe numa carruagem que não o leva por todo o caminho. O cocheiro lhe diz que Hutter poderia pagar o que quisesse, mas ele não dará mais nem um passo a frente. O jovem continua sua caminhada por aquele terreno inóspito até que aparece uma carruagem estranha, comandada por um sujeito que cobre o rosto com muitos panos. Hutter sobe e depois de uma rápida cavalgada, chegam ao castelo, onde é abandonado pelo cocheiro e recebido pelo conde - que parecem ser a mesma pessoa. As negociações se iniciam logo. Hutter e o conde permanecem toda a noite conversando. Quando Hutter acorda no dia seguinte tem, em seu pescoço, duas picadas.


Na estadia no castelo do conde Orlok, Hutter deixará para trás seu lado juvenil para poder, finalmente, amadurecer, deixar sua infância para trás. O sujeito sorridente que aparecera no filme até então será substituído por um que esboça um sorriso preocupado. A foto de Ellen cai de sua bolsa em meio a uma negociação com Orlok, que rapidamente pega a fotografia e diz: "ela tem um lindo pescoço" - um dos raros momentos cômicos dos filmes de Murnau. Tendo encontrado um livro sobre vampiros em sua hospedaria no vilarejo, Hutter percebe que seu hospedeiro não é uma pessoa comum. O tormento perante a morte não permite que o jovem permaneça com sua postura juvenil. Hutter cresce exatamente porque o meio lhe obriga a crescer - a morte espreita e ele tem que crescer para poder enfrentá-la, e proteger os seus amados - Orlok partiu para a casa em frente à sua.

A segunda protagonista deste filme é Ellen. Também uma jovem pouco crescida - enfatizada por Murnau na famosa cena em que ela brinca com um gato na janela de casa - mostra-se logo um pouco mais perspicaz que Hutter. Fica preocupada com a viagem de seu parceiro tão logo o escuta, mas não tem espaço para poder dizer-lhe o que quer que seja. Hutter parte e Ellen permanece somente com a saudade de seu amado. Senta em um banco de um cemitério a beira da praia e observa o mar, a espera do retorno de seu companheiro. Dele, recebe uma carta que a deixa preocupada: ele relata o aparecimento de duas picadas de mosquito no pescoço, para ela um sinal de que ele poderia não estar bem.


E eis que, do outro lado da rua, surge um estranho, habitando a casa em frente. Uma sombra que aparece nas janelas da casa. Ellen fica profundamente perturbada com aquela visão. Os tempos são caóticos. Um barco atracou no porto trazendo uma praga que infecta os homens trazendo a morte. E fora exatamente o sopro da morte que trouxe o tal barco. No continente, um rastro da praga havia sido deixada para trás, com uma fileira de mortos por onde havia passado. E a tal praga finalmente alcança o porto onde está Ellen, onde fica sua residência com Hutter. No barco, os homens da lei somente encontram caixotes com areia infestados com ratos.

Os moradores da região logo encontram em Knock o culpado necessário. O caçam como a um bicho. Ele foge do internato e é perseguido por multidões. Sobe no telhado de uma casa e lhe atiram pedras. Mas ele, servo do conde, aceita este trabalho para ser uma distração frente ao real sopro da morte, o vampiro, o novo morador da cidade. Orlok deseja Ellen desde a primeira vez que viu sua fotografia, e consegue por vezes controlá-la à distância, fazer com que ela abra as janelas, o convide a entrar em sua casa.


Um homem passa na rua desenhando cruzes nas portas das casas onde estão os mortos da praga. Ellen aceita a praga dentro de sua casa imaginando que, assim, poderá contê-lo em sua saga de extermínio. O vampiro, que é este terceiro personagem fascinante da obra de Murnau, perde-se em seus desejos animalescos mais profundos do desejo carnal, e bebe o sangue de Ellen por toda a noite, até que os primeiros raios de sol surgem no horizonte e o queimam, destruindo-o para sempre.

A presença do professor Bulwer se faz presente para ressaltar esta afirmação animalesca - ao invés de sobrenatural, como o livro faz - do vampiro. Orlok é um animal que necessita se alimentar. Que se alimenta de seres humanos, tal como nós de outros animais, ou como no experimento do professor, uma planta carnívora de uma mosca. Tal como a mosca é atraída para boca da planta por seus sucos doces, as pessoas são atraídas ao vampiro de aparência horripilante, para encontrar o seu fim.

***

O tema deste filme parece ser realmente a morte. O vampiro de Murnau é esta criatura natural posta no mundo para sugar a vida dos passantes, de espalhar o medo contido em todos - admita-se ou não - de um dia morrer. E ele é filmado como se buscasse a morte em cada canto do quadro, em cada ponto do mundo, mesmo nos momentos em que a vida sobressai.


A cena da viagem de barco de Orlok até sua nova cidade é bastante característica. O vampiro é o algoz da humanidade. Filmado de baixo para cima, sua figura é ressaltada. Max Schreck, que interpreta o vampiro, é alto e esguio, sua figura parece tão imponente quanto os mastros do navio com relação aos minúsculos homens. Frente àquela potência destruidora da natureza, os pobres navegantes nada podem fazer. Ao comandante, chega o relato do desaparecimento de seus marujos. Um deles, vai até o porão para abrir os caixotes que transportam. Um deles se abre sozinho, e Orlok se levanta. É o erguimento do terror do homem, que desesperado, sem qualquer chance de sobrevivência, foge daquela aparição e se atira ao mar.

As ações do vampiro nunca são mostradas. A morte é silenciosa, e somente se aparece para quem morre. Nós temos acesso somente ao dado fatídico: o corpo sem vida. E este dado surge no já citado homem que bate de porta em porta na cidade contando os mortos. A impotência da humanidade frente a este fenômeno impossível de excluir do ciclo de vida. Nas ruas, as filas de homens carregando no ombro um caixão de mais um morto por aquela praga recém-chegada de terras estrangeiras depois de ter dizimado os componentes da tripulação que a trouxe.


A praga é a sombra do Nosferatu que paira sobre todos os homens. No livro de Stoker, Drácula é evocado por nome, é uma presença constante, apesar de raramente aparecer. No filme de Murnau, Orlok é constante, mas também em suas ações - não necessariamente em figura. A multidão persegue Knock, mas pelos atos promovidos por Orlok. E assim é quando Hutter, hospedado na Transilvânia no castelo do vampiro, tem a criatura em seu quarto, e por sobre ele é posta somente a aterrorizadora sombra das mãos de longos dedos capazes de dominar e envolver sua vítima num processo sem volta, sem que lhe seja dada a chance de se soltar.

O vampiro de Murnau é esta figura que causa repulsa como os ratos que transporta de uma terra para outra, acompanhando-o nesta saga de mortandade. E é também uma figura que consegue viver entre os homens sem que seja percebido pela multidão desatenta. O foco dos homens deixa de ser o vampiro para ser os ratos, para ser o morto na sala de estar ou na casa vizinha. E é assim que se faz a fama de expressionista deste filme: a sombra. Porque a morte é tão somente uma sombra que cobre a luz da vida dos homens, cessando este momento de brilho. Se assim é, o vampiro-sombra somente poderá ser derrotado com a chegada da luz do dia, da reafirmação da vida, da ação de Ellen em se doar ao vampiro, convidando-o para dentro de sua casa.

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

Tabu de F. W. Murnau (tabu: a story of the south seas, 1931)

por João Bénard da Costa

"Não, não tinha pensado começar esta série sobre “os mais belos dos filmes” com Tabu. Foi idéia de última hora, quando reparei, como contei na crônica do cão amarelo, que Godard o citou para explicar o que queria dizer com o superlativo absoluto de beleza. Acaso?

Mas foi acaso por acaso que, entre a sexta-feira passada e a sexta-feira de hoje, revi Tabu duas vezes? E foi acaso por acaso que o revi na mais bela das cópias que de Tabu me foi dado ver, essa da Cinemateca de Praga que agora passou na cinemateca? E foi acaso por acaso que, com dois dias de intervalo, pude comparar Tabu com Sunrise, o filme de Murnau que, até Janeiro de 1996, era incontestavelmente o meu favorito?

E foi acaso por acaso que reli uma velha critica (1953) de Maurice Scherer (= Eric Rohmer) onde se diz: “Os referendos estão na moda. Desculpem se me deixei apanhar. Fazer listas de preferência, à hora do chá, entre amigos, é um jogo de salão agradável e que só depende da nossa disposição no momento (…) Mas não quis perder a ocasião para dizer - como uma recente visão de Tabu mo confirmou - que este filme é, na verdade, a obra-prima do seu autor, o maior filme do maior autor de filmes”. Se acaso tudo são acasos, acaso sou eu também.



Foi relativamente por acaso que F. W. Murnau decidiu, em Abril de 1929, aos 40 anos, partir para Taiti e filmar à luz dos mares do sul. Tinha chegado à América cerca de três anos antes (Julho de 1926) aclamado como o “gênio alemão”. Tinha filmado - 1927 - Sunrise, Oscar para a melhor “produção de qualidade artística”, no primeiro ano em que houve prêmios da academia. Depois (The Four DevilsCity Girl) foi forçado a vergar-se às regras da Fox. Depois, “por acaso”, conheceu David Flaherty, irmão de Robert Flaherty, que estava a tentar convencer a mesma Fox a fazer um filme em Taiti. Depois, esse filme malogrou-se. E, depois, Murnau convidou David Flaherty para jantar, no solar em que vivia, sozinho com os criados, numa das colinas mais altas de Hollywood. Parece que se sentaram os dois sozinhos, numa mesa enorme, na enorme casa de jantar de Murnau. E, à hora em que o jovem Hutter se feriu com a faca e derramou algumas gotas de preciosíssimo sangue (estou a referir-me a Nosferatu, para quem não saiba), Murnau disse baixinho ao irmão de Flaherty: “Queres vir comigo para Taiti?” No dia seguinte, antes do nascer do dia, partiram para o México, onde estava Bob. Poucos dias depois, com o muito dinheiro ganho por Murnau, formaram uma sociedade - a Colorart - para produzir uma série de filmes nas ilhas dos mares do sul. O primeiro devia chamar-se Turia e contava a história de um pescador de pérolas. “Bali é a última Thule dos meus desejos” teria dito Murnau, antes de embarcar, no fabuloso iate que comprou (vê-se no filme) e a que também deu o nome dessa ilha: Bali.

Daí por diante e até a primeira versão do argumento de Tabu se concluir (Dezembro de 1929, depois de um longo périplo de Murnau pelo Arquipélago das Marquesas e pelas ilhas Paumotu), tudo separou os dois cineastas. Flaherty sonhava encontrar o paraíso na terra e o mundo antes do pecado original. Murnau já sabia que “nessa terra / também, também / o mal não cessa, não dura o bem”. O “terror antigo”, o terror de Nosferatu, foi o que encontrou em Bora-Bora ou em Tokapoto, as ilhas de rodagem. Flaherty assombrou-se: “Como são profundas as inibições destes alemães!... Como é terrível a sua vontade de domínio!... Como é imenso o seu fatalismo!...”. Como não se assombraria? Tabu, às vezes descrito como um documentário de Murnau e de Flaherty, nada (ou pouquíssimo) tem de Flaherty e é tudo menos um documentário. Murnau, que chegou a Taiti como Nosferatu, num barco a velas (e como é terrível e ameaçadora a primeira visão do iate, apenas ou por causa da imensa beleza dele e da imensa beleza do plano), é o filme do encontro de Murnau com a Morte, essa morte com que mil vezes foi ameaçado durante as rodagens (Janeiro a Outubro de 1930), essa morte que o apanhou, numa curva da estrada, a 11 de Março de 1931, aos 42 anos, uma semana antes da estréia mundial de Tabu.


Nosferatu. “Um nome que soa como a chamada noturna da Ave da Morte”, para citar o primeiro intertítulo do filme de Murnau de 1922, não é, em Tabu, explicitamente, um morto-vivo ou um vampiro? Talvez não seja. Mas se o não for, quem é então Hitu, o prodigioso velho, de olhar inexorável, que, no iate de Murnau, chega a Bora-Bora para lançar o seu tabu sobre Reri, a virgem sagrada?

Antes, víramos planos de ofuscante beleza em que os mais belos corpos masculinos - donde logo emerge Matahi, o protagonista - pescam como se dançassem ou dançam como se pescassem. É o mar e no mar. Uma simples panorâmica (simples?) e o mundo roda 180º para os planos subjetivos das mulheres em flor, sob as cascatas. Passagem tão misteriosa como a misteriosa passagem do mundo do lago para o do carro elétrico, em Sunrise, depois de George O’Brien ter tentado matar Janet Gaynor.

É um allegro prestíssimo esse início coral, a que se sucede o adágio, no plano inadjetivável em que Reri encosta a cabeça ao peito de Matahi e para sempre fica colada a ele.


É um pouco mais tarde (precedido pelo grande, grande plano do mensageiro dos apelos) que surge o navio fantasma, com o velho Hitu.

Antes de o vermos, vemos uma grande onda preta. E Reri tapou os olhos ao ouvir o tabu. Flores para os mortos.

Matahi reaparece depois, ainda solto, ainda resplandecente. E sempre me pareceu que, logo que o viu, o velho soube tudo (se é que o não sabia antes). Há um plano - brevíssimo - em que quase podemos dizer que uma certa compaixão se apodera dele. Mas, como as nuvens, passou.

Se não é Nosferatu, quem é aquele velho sempre recortado contra o vulcão de Paia? Gauguin, que tantas vezes Murnau evocou em Tabu e expressamente no plano de Matahi, sentado na cabana, tão farto de esperar bem, contou-nos que o Deus Ora desceu do alto dessa montanha à procura de uma mulher transformada em coluna de fogo. E Reri - a mulher que vemos a chorar no lancinante ritual da despedida da mãe - como fogo se acende quando, na dança sagrada, Matahi, despertado pela música, subitamente se lhe vem juntar, afastando todos os corpos para dominar com a sombra dele a sombra da mulher. Se não é Nosferatu, quem é Hitu, o velho que retira a grinalda e corta o amor?


À luz de Hina, a lua, vem depois a noite em que Matahi arranca Reri ao barco da morte e a leva com ele para a ilha dos chineses e das pérolas.

Mas, senão é Nosferatu, quem é esse velho que um tempo, algum tempo, muito tempo depois, desembarca na ilha, em que os amantes se supunham a salvo, para cumprir a maldição?

Não o vemos chegar. Tudo o que vemos é, nessa noite, Reri acordar na cabana, como as crianças acordam dos pesadelos, soltar-se dos braços de Matahi e olhar para a porta, deixada aberta. Todo o terror do mundo nos olhos dela. Depois, tapa-os com as mãos. Contraplano e vemos, no portal, o velho, de branco e de pé. A câmera volta a Reri, que lentamente tira os braços dos olhos. Contraplano e não está lá ninguém. Visão? Sonho? Premonição? Quem souber decidir, sabe o segredo da arte de Murnau.

No dia seguinte, um dos pescadores da ilha é comido por um tubarão. As autoridades declaram essas águas tabu. A palavra TABU aparece no filme. O que aparece é sempre menos do que o que não aparece. Que é esse tabu, decretado pelos homens, face ao outro, que veio do fundo dos mares e dos tempos?


Nessa noite, há a luz sobre os amantes. Matahi dorme, de novo, dorme sempre quando Reri vela, como ela dormiu, depois, quando ele foi pescar a pérola negra. E se não é de Nosferatu, de quem é essa sombra esguia que, como uma seta, deixa a mensagem que anuncia a morte de Matahi se, passados três dias, ela não o seguir? Os corpos parecem agora as pietás de Antonello. A fuga de ainda, gora-se. Em montagem paralela, o desafio ao tubarão da pérola negra e a carta de Reri do imenso adeus.





E se não é Nosferatu, quem é o Caronte que conduz o barco que leva Reri de volta? E se não é Nosferatu, quem é o velho que corta a corda da vida no momento em que Matahi atinge o barco para lhe roubar Reri?


E o maior milagre que já vi no cinema é a perseguição final, quando Matahi se lança atrás do barco. A pé, numa embarcação e, depois, finalmente, a nado, a câmera voa em planos fixos, atravessando terras e mares, para figurar o impossível - possível: Matahi a atingir a velocidade do vento que sopra as velas e a tocar na barca, onde Nosferatu acabou de sepultar Reri. Mas, quando a corda é cortada, tudo se torna de uma lentidão imensa, enquanto o barco se afasta e Matahi se afunda nas águas, nadando, nadando sempre, como se esse movimento já sem razão fosse a última razão possível.


Numa carta à mãe, escrita no final da rodagem, Murnau disse: “Estou enfeitiçado por estes lugares (…) Às vezes, sonho que gostava de voltar a casa. Mas a minha casa não é em parte nenhuma (…) Em casa nenhuma, em terra nenhuma e com nenhuma pessoa.”

Cumpriu-se a maldição que uma lenda antiga atribui a um feiticeiro de Bora-Bora: “Quando o homem branco ouvir o grito da Ave da morte, o Diabo Oramatua-hiaro-rorua o levará.”


Se o cinema, como disse Henry Miller, é “a consciência visual da morte” nunca a vimos de tão perto como em Tabu de Murnau. Depois deste filme, nenhum outro pode ser “o mais belo dos filmes”.


Contraplano. E repito: nenhum outro."



disponível em: Foco Revista de Cinema.

segunda-feira, 20 de julho de 2015

Terra em chamas de F. W. Murnau (Der brennende Acker, 1922)


É muito curioso como o sucesso de Nosferatu imergiu a obra de Murnau sob a impressão de ser ele um cineasta de filmes fantásticos. Salvo exceção de um ou outro (como Fausto), este é um gênero que quase não se repete na filmografia do diretor. Ainda assim, a esperança em cada novo filme de sua fase alemã, a esperança ressurge. Em especial quando se trata de seus filmes do início da década de 1920. Mas a esperança não é cumprida. O que não significa que os filmes sejam ruins. Pelo contrário.

Neste Terra em chamas, o início parecia nos dirigir exatamente para este caminho. Mas a parceria de Murnau com Thea von Harbou mostra que não será este o percurso. A escritora e roteirista tem uma tendência muito grande de fazer de seus filmes-debate sobre economia, sobre negócios - e o problema do capitalismo. Não será difícil de imaginar a problemática deste filme caminhando por semelhante direção. O que parece diferente aqui é que o filme já não será submetido à interrupções de letreiros como aconteceu em O castelo Vogelod, ultima parceria entre von Harbou e Murnau antes de Terra em chamas.


Tudo começa com um grupo de mulheres num cômodo de uma casa rural. Elas se perturbam pelo vento vindo de uma das propriedades ao lado. Nada é plantado naquele chão, e nada nasce. A lenda diz que é um lugar amaldiçoado. Ninguém na região o quer, e o seu valor é, aparentemente, muito baixo. Uma das mulheres do grupo, uma senhora, torna-se o centro das atenções por ser a única capaz de contar a história do campo de fogo. Ao contrário do que poderia acontecer em O castelo Vogelod, aqui a história contada pela senhora já não será por meio - unicamente - dos letreiros. A câmera fará este trabalho de retorno ao passado para mostrar-nos um grupo de homens explorando a terra. Após terem aberto um buraco na propriedade, um dos homens desce com uma lanterna e o buraco explode. Desde então surgiu esta noção de que a propriedade é inútil - que é "o campo de fogo".

Com seu pai morrendo, Johannes retorna à casa da família na fazenda. São camponeses pobres, e o letreiro logo anuncia que ele é muito ambicioso. O pai morre, e Johannes consegue emprego como secretário de um fazendeiro rico da região. Contrariando o desejo do pai, Johannes não se casa com Maria - a típica camponesa de Murnau, a personagem que ganha todo nosso afeto - e vai trabalhar na casa de Rudenburgs. Escutando uma conversa entre o fazendeiro e alguns pesquisadores, descobre o que realmente se esconde por trás daquela terra ignorada pelas pessoas da região: petróleo. Esconde-se para que não percebam sua presença ali. Mais tarde lhe é dada a oportunidade de ser o redator do testamento do moribundo patrão - que não sabia que ele escutara sua conversa. Exatamente por isso ele irá até a esposa do fazendeiro dizer que está por ela apaixonado - e ela igualmente. Isso porque no testamento o fazendeiro deixa o campo de fogo para sua esposa.


A história, que parecia descambar para um terreno fértil à escrita de von Harbou, transforma-se numa obra essencialmente "murnauniana". É o problema do homem ambicioso que põe em sua frente a própria felicidade em busca do ganho financeiro. Ele se casa com uma mulher que não ama para poder fazer negócios. E mais uma vez esta a dualidade entre o homem da cidade e o camponês simples. O primeiro quer sempre mais, o segundo não possui grandes demandas e se contenta com o simples para ser feliz. Peter, irmão de Johannes, pede a mão de Maria em casamento somente para fazê-la feliz. Mas ela nega, está apaixonada por Johannes e não poderá ficar com mais ninguém - mesmo que seu amado esteja agora com outra mulher.

Em mais um conto moral de Murnau, a ambição será o próprio golpe de misericórdia. A filha do fazendeiro, também apaixonada por Johannes, descobre que ele somente se casou com sua madrasta pela terra de fogo e o petróleo dela. Quando começam a extrair petróleo ela invade a terra e ateia fogo ao petróleo. A desolação de Johannes se apresenta. Seu trabalho para finalmente ter conquistado tudo aquilo estava acabado. Sua chance de felicidade arruinada. Sai do quadro vermelho do fogo que queima o petróleo para o quadro azul do frio da neve que congelou as margens do rio. Acredita estar sozinho, mas Maria o segue de perto. Mal imagina ele que o calor da presença dela poderá acender-lhe algo mais profundo que o que o petróleo enterrado jamais poderia.


Os personagens de Murnau frequentemente demonstram este caráter: o desapego da posse para que se contente com a companhia uns dos outros. A felicidade está em viver com quem se ama, não com aquilo que deseja possuir (a coisa impessoal). E por vezes nesta construção surge o retorno à simplicidade da vida, sempre representada pelos camponeses que não desejam grandes fortunas, tão somente compartilhar a presença dos outros. E o trabalho como sendo um modo de permanecer sempre nesta presença. Também o trabalho deve ser pessoal. Estas ideias se perdem ao chegar à cidade, e os personagens urbanos de Murnau sempre o demonstram. É necessário, então, um retorno ao campo - aos valores de uma boa convivência. O homem não como produto (como a garçonete de Pão nosso de cada dia), mas como emotivo. Não enquanto meio, mas enquanto fim.

sábado, 20 de junho de 2015

O pão nosso de cada dia de F. W. Murnau (city girl, 1930)


Filme produzido logo após o desaparecido Os quatro diabos e o fabuloso Aurora, O pão nosso de cada dia demonstra a maturidade de um cineasta em acensão. As imagens deste filme de 1930 nos mostra toda a riqueza da construção fílmica de um diretor que aprendeu a fazer um cinema clássico e universal. Desde os primeiros momentos de O pão nosso de cada dia fica claro ao espectador a simplicidade da trama de Murnau, assim como a complexidade emocional que se desenvolve por trás dela. Mais uma vez o diretor alemão nos presenteia com um filme sobre amor, sobre a relação entre pessoas. O trato que devemos ter uns com os outros.

O filme abre com a imagem de um trem cortando uma paisagem rural. Dentro dele está um homem jovem que logo descobrimos ir para a cidade a pedido de seu pai para fazer um negócio. A moça sentada no banco ao lado vê o garoto tirar de dentro do paletó uma quantidade considerável de dinheiro e tenta flertar com ele, que não nota e deixa a moça de lado. Desde estes primeiros momentos, O pão nosso... fará o desenvolvimento da simplicidade do comportamento deste personagem vindo da e criado na fazenda e que não se ilude nem busca as maravilhas da cidade. Ao invés de ir ao vagão restaurante, ele prefere comer os sanduíches que sua mãe lhe preparou. O que irrita a mulher que tentava flertar com ele é, na verdade, a afirmação de que aquele personagem se contenta com a sua origem - o contrário do que o amontoado de dinheiro que ele carrega poderia sugerir.


Na cidade, o jovem vai almoçar num restaurante cheio. São sempre muito curiosas as composições de cenário na cidade. Os quadros são sempre cheios de pessoas fora de foco que passeiam de um lado para outro, ao fundo. Dentro do restaurante, elas ficam de pé atrás de quem está comendo junto ao balcão, à espera de seu momento para sentar e poder comer também. Estas composições de imagem concedem ao filme certa energia. A cidade é envolvente, é agitada, chama para si a alegria (é o que primeiro acreditamos). Mas todo este envolvimento se perde quando começamos a notar o comportamento daquelas pessoas que se sentam ao lado no balcão do restaurante. Os fregueses constantemente flertam com a garçonete, pegam em sua mão, fazem-lhe propostas. O cenário da cidade, aparentemente cheio de vida, torna-se impessoal. A garçonete, Kate, sente calor por toda aquela agitação e aquela aglomeração de pessoas ao seu redor. Mas o ventilador é para espantar as moscas da comida, não para ela.

Seduzida por um ideal do que seria a vida no interior, longe da agitação de Chicago, Kate se encanta por Lem, o jovem vindo da fazenda para fazer negócios em nome da família: vender a colheita de trigo. Ela é simpática a ele, e ele demonstra à ela tudo aquilo que ela sonha. Desenvolvem uma paixão imediata, que vira chacota dos demais que escutam a conversa no restaurante. A compreensão da humanidade individual perante à turba se esvai. O amor vira piada, e o apaixonar-se, uma infantilidade. Assim, esta movimentação logo ganhará seus reais contornos. As casas de valores, as bolsas, entrarão em crise e o valor do trigo despencará rapidamente. Lem vende a colheita muito abaixo do preço que seu pai havia estipulado com medo de perder mais dinheiro do que já havia perdido. - E esta é uma das cenas mais fabulosas do filme: Lem sai do restaurante em que Kate trabalha com um jornal em mãos. A notícia é filmada em primeiro plano por Murnau. Lem está devastado com as informações. A câmera recua. A movimentação das pessoas na rua deixa de ser o simples ir e vir urbano para se transformar no caos dos sentimentos do personagem, na confusão que é a vida em comunidade: o trabalho da colheita é reduzido a números que representam a miséria financeira.


Kate e Lem se casam ainda naquela mesma semana e se mudam para a fazenda dos pais dele. Se ela acreditava que o comportamento dos homens hostis em relação a uma mulher se dava somente pela cidade, ela passa a testemunhar a mesma atitude no campo. Não em relação a seu marido, mas em relação ao pai de Lem e aos seus empregados. Kate é um belo pedaço de carne cobiçado por uns e rejeitado por outros. Tudo o que ela quer é a vida em paz com Lem. Mas descobre da pior maneira possível que o problema do homem (ou da humanidade) não é a localização, mas o seu próprio comportamento. - seria uma indireta do cineasta alemão (homossexual) filmando em Hollywood?

Por fim, Murnau nos mostra que não é Kate quem deve se redimir e mostrar aos outros quem ela é e como deve ser e merece ser tratada, mas os outros perceberem que ela deve ser tratada com a dignidade devida. Se na primeira parte na cidade o protagonismo do filme ficava a cargo de Lem, neste segundo fica a cargo de Kate. Sempre a visão do estrangeiro, do estranho. Mas se na cidade Lem fora bem recebido, na fazenda Kate não é. Lem demonstra-se impotente frente ao autoritarismo de seu pai, e Kate não consegue de seu amado as promessas que lhe foram feitas.


Em mais um de seus filmes humanistas, Murnau nos mostra que o homem pode ser incivilizado em qualquer ambiente. O que o torna civilizado é seu comportamento, não sua localização. Se na cidade esta pessoalidade das relações humanas se esvai com as grandes quantidades de gente - os homens enquanto gado -, na zona rural ela se esvai por um senso de pertencimento. De objetificação do outro. Mas no fim, são todos humanos buscando sua cota de respeito e paz para suas vidas, e querem encontrá-la independente de onde estiverem.

quarta-feira, 10 de junho de 2015

As mãos de Orlac de Robert Wiene (Orlacs Hände, 1924)


O cinema expressionista é mais conhecido pelas distorções de seus cenários, em grande parte devido ao sucesso de O gabinete do doutor Caligari, em meio ao mundo da cinefilia. Mas não é somente desta característica que se compõe o movimento. Exemplo disso é este As mãos de Orlac, filme dirigido por Robert Wiene, também diretor de Caligari. Se dentro do cinema expressionista o sucesso artístico de seu filme manifesto foi diminuído por aquele que surgiria não muitos anos antes, Nosferatu, não surpreende que Wiene adote estética semelhante aos filmes de Murnau para criar o seu. Sendo Murnau um artista vindo do teatro para o cinema, é natural que prefira dar espaço para a linguagem corporal de seus atores, à expressão facial e gestual. Os planos são, em grande parte, planos de conjunto - ou seja, com mais de um ator em cena. É o mesmo que faz Wiene neste filme. Não que fosse algo que ele não tivesse experimentado antes, mesmo em Caligari, mas neste caso as distorções já não terão lugar tão amplo na tela como tinha em seu mais famoso filme.

Mas em As mãos de Orlac esta escolha por fazer uma representação "naturalista" é pedida pela própria trama. Se o conflito se dá entre o personagem e suas mãos, é necessário que se dê espaço para que aquele conflito se resolva do ator com ele mesmo. Em muitos momentos, quando a ameaça deixa de ser interna ao sujeito para ser externa, Wiene se volta ao uso de técnicas propriamente cinematográficas, tal como a fusão e a sobreposição de imagens. Estes momentos, mesmo não sendo aqueles de grande potência emocional no filme - que fica a cargo de Conrad Veidt, um verdadeiro ator de cinema - concedem à obra parte de seu brilhantismo.


A montagem acelerada, típica das vanguardas do cinema mudo, dá o tom inicial ao filme. Alguns planos fechados do protagonista nos indicam que ele é um pianista. Em seguida, também num golpe de vista promovido por uma técnica de montagem, o trem em que o pianista se encontra choca-se contra outro. Na estação onde sua mulher o espera, cria-se um alvoroço. Angustiada com aquela movimentação, ela procura saber o que houve. Quando lhe dizem, ela vai até o local do acidente. O tom da cena é dado pela pouca iluminação e pela fumaça. O escuro e a fumaça velam algo. Em alguns momentos, personagens surgirão saídos de trás da fumaça, assim como Orlac - o pianista - vira de dentro do trem acidentado.

A ideia desta abertura já deixa um pouco do clima que pairará pelo resto do filme. Há algo escondido nos cantos, no escuro, na falta de conhecimento, e que se tornará uma angústia aos personagens. Isso levado até mesmo pelas cenas seguintes, em que Orlac aparece com cabeça e mãos enfaixadas. O que teria acontecido a nosso protagonista? O médico diz à sua esposa que há algo errado com suas mãos, mas não nos é dada a chance de continuar presenciando aquela conversa. A mulher, mesmo depois que o marido está recuperado, surge em cena um tanto titubeante, ainda que muito feliz com a recuperação do homem. Mas então surge um bilhete que desmoronará a alegria do pianista: as mãos que estão em seu corpo não são dele, mas de um assassino executado.


Daí o conflito do filme se dar com o personagem, e somente um ator como Conrad Veidt poderia segurar uma obra como esta. O expressionismo será dado pelo ator, em grande medida, fora em seus momentos de alucinação. Mas as explosões de nojo e medo do personagem para com ele mesmo são dadas, todas, pela atuação de Veidt e a relação entre Orlac com suas mãos recém-adquiridas. Ao receber o bilhete, ele levanta e tenta arrancar as próprias mãos, num ato de repulsa aos próprios membros que, certa vez, participaram de um crime. Mais tarde, descobrirá ele que as digitais do assassino estavam em toda a cena do crime. Digitais que agora são dele.

Se dizem que há uma representação naturalista neste filme, como apontamos logo no início deste texto, muito se enganam. Não é porque existe a clara preferência por dar espaço ao trabalho de Veidt que transforme a representação em As mãos de Orlac mais realista. O que existe é um filme em que os atores devem exagerar para que as emoções de seus personagens possam ultrapassar as fronteiras de seus subjetivo e alcançar suas expressões físicas, e se transformarem em imagem. Orlac acredita que suas mãos possuem algo de ruim que o levarão a cometer algum ato que ele não deveria - bobagem, diz o médico. Mas este é um caso que não pode ser visto como bobagem pelo pianista quando surge presa numa porta de madeira de sua casa a faca que o assassino utilizara para matar sua vítima. Seriam as mãos amaldiçoadas? Seriam elas que teriam levado seu dono original a cometer um crime?


Nos pesadelos e alucinações de Orlac, são as mãos que surgem como opressoras. Numa sobreposição de imagens, está deitado e uma mão surge por sobre ele fechada, como se fosse esmagá-lo. Ele teme suas mãos, e teme ser esmagado por elas. Mas o mais impressionante do filme fica a cargo da atuação de Veidt e sua contribuição à imagem. Todo seu gestuário excessivo cria as imagens e os sentimentos do filme. É por meio dele que o tom nervoso do filme que abre com o acidente de trem em seus primeiros dez minutos, será mantido.

Por vezes achamos tolo o conflito que marca o filme. Como diz o médico, quem controla as mãos é a mente (ou a alma, como ele diz) não o contrário. Mas o conflito consegue ser bem digerido pelo filme que nos faz ter simpatia por aquele personagem que teme fazer algo de errado em algum momento, que teme acariciar sua esposa com aquelas mãos que ele acredita estarem manchadas de sangue. Não é um filme perfeito, e algumas falhas em sua narrativa o deixam bem claro (como o caso da servente dos Orlac). Ainda assim, a estética expressionista sendo cada vez mais refinada por seu criador (no cinema) faz com que todas as falhas sejam perdoadas. E de Veidt não preciso mais comentar.

sexta-feira, 5 de junho de 2015

Por um cinema puro


A ideia de um cinema puro surge ainda na década de 1910. Alguns de seus principais pensadores eram figuras que se punham, inicialmente, contrárias ao dispositivo cinematográfico. Mas nesta década se dá uma reviravolta. Nos Estados Unidos, antes da criação de Hollywood, David Griffith filma alguns de seus filmes mais famosos, a exemplo de O nascimento de uma nação de 1914 e Intolerância de 1915. São filmes que mostram às plateias de cinema de todo o mundo o que pode ser feito com o cinema partido de seus recursos próprios. Durante esse período, os cineastas buscavam criar narrativas cinematográficas tão bem desenvolvidas e fluidas quanto aquelas que a literatura apresentava. Griffith foi um dos primeiros a mostrar toda essa potencialidade da representação por meio do cinema. Fez isso partindo da linguagem cinematográfica por ele estruturada nos filmes citados. As histórias podiam transcorrer em sucessão ou em simultaneidade. Os saltos históricos poderiam ocorrer num picar de olhos. Tudo isso possibilitado pelas ferramentas de criação fílmica.

Uma das figuras mais importantes do cinema para chegar neste momento em que Griffith promove esta revolução é o pouco conhecido Edwin Porter. O também estadunidense encontrou um cinema que engatinhava. Contratado pelos estúdios de Thomas Edison, Porter pôde fazer centenas de filmes em poucos anos, o que também lhe permitiu a fazer algumas experiência no decorrer do tempo. Dentre elas está a estruturação de uma narrativa especialmente cinematográfico. Se até então os filmes eram feitos com a câmera distante que filma todo o cenário e a narrativa se apresenta pela relação dos atores na cena - o chamado teatro filmado - com Porter o papel da câmera e da montagem da sequência de ação passa a ser especialmente estruturado para o cinema. Em A vida do bombeiro americano, o cineasta faz a montagem sequenciada dos fatos: 1°) a carruagem dos bombeiros passa pela rua; 2°) os bombeiros chegam à casa em chamas; 3°) a vítima dentro da casa em chamas se desespera; 4°) os bombeiros do lado de fora da casa desenrolam a mangueira e colocam as escadas nas janelas do primeiro andar, um dos bombeiros sobe; 5°) o bombeiro entra pela janela onde a vítima agora está desmaiada; 6°) o bombeiro desce a escada com a vítima desmaiado no ombro. Mesmo tendo feito esta organização da narrativa em 1903, ela somente seria vista seriamente e passaria a ser copiada com o grande sucesso artístico dos filmes de Griffith. Intolerância, por exemplo, trás um modelo diferenciado e ousado de narrativa. São diferentes períodos históricos que vão da antiguidade até a contemporaneidade mostrados em simultaneidade para demonstrar o sentimento de intolerância por meio das décadas.


Na Europa, alguns artistas assistem aos filmes de Griffith e enxergam as muitas possibilidades de experimentações estéticas que podem ser realizadas com aquele dispositivo ainda jovem e que, com muita resistência, não era visto como sendo arte. Neste mesmo período surgem duas ideias que permaneceram no imaginário cinematográfico por muito tempo. O primeiro e mais popular deles é a ideia de "sétima arte", que diz ser o cinema a arte capaz de fazer a junção de todas as demais. Em sentido contrário surge a ideia de "cinema puro". Para os pensadores deste, o cinema é uma arte por si só que deve ser pensada partido de suas especificidades. Griffith é uma das figuras responsáveis a mostrar este caminho a muitos dos pensadores do cinema puro, que encontrará no impressionismo francês seu berço mais confortável. Mas o que seriam as especificidades do cinema? Ora, podemos encontra três delas, num primeiro momento: a câmera, a montagem, a imagem.

Comecemos pela câmera. Esta está sempre presente na produção fílmica, desde os seus primeiros dias quando os Lumière a colocaram em frente a sua fábrica para captar a saída de seus operários. Por muitos tempo, o papel da câmera de cinema foi tomado como simplesmente sendo o dispositivo de captação de imagens, não se enxergando as suas capacidades além. Como exemplo disso se tem muito do acidentalismo das primeiras criações: o primeiro travelling, ou seja o movimento de câmera, somente foi criado porque um dos operadores dos Lumière resolveu filmar os casarões de Veneza colocando a máquina numa gôndola. Apesar de ter seu papel reconhecido pelos cineastas, que por vezes teorizavam sobre seu papel, a real relevância da câmera de cinema dentro do espetáculo fílmico surge quando é adaptado o termo mise-en-scène para o cinema. Mise-en-scène significa encenação, mas a encenação cinematográfica possui algumas particularidades, e a presença da câmera é uma delas. Se inicialmente ela era passiva e simplesmente observava os atores, ela passará a ser ativa dentro da construção das cenas, em muitos casos influenciando o sentido do que é criado.


A montagem, recurso posterior à presença da câmera em cena, é aquela especificidade cinematográfica que primeiro salta aos olhos de espectadores, teóricos e cineastas. Por meio dela foram feitas a maior parte das invenções estéticas do cinema puro. Em grande parte, porque é sabido de que nenhuma outra arte, ao menos no período mudo do cinema (mais tarde a música gravada também se valeria de semelhante recurso), possuía tal ferramenta. Podemos dizer a montagem é a modeladora do espetáculo fílmico. É ela quem fragmenta o espaço e o tempo; por meio dela o cineasta cria um ritmo para sua obra - ritmo esse que Bergson já dizia ser própria à criação artística. No cinema puro, a montagem ganha mais espaço porque será por meio dela que foram feitas as tentativas de não se render à necessidade de colocar os letreiros explicativos que interrompiam a ação. A ação deve correr sem interrupção, o ritmo do filme deve ser respeitado para que o espectador possa ser envolvido na obra - daí a referência a Bergson. E para isso os cortes, as sobreposições, as divisões de tela serão fundamentais para primeiro criar o entendimento da obra que se apresenta, em segundo para envolver o espectador numa relação de afecção pelo filme.

Mas o que colocamos em terceiro aqui, é aquele que de mais importante existe no cinema, e pelo qual tanto a montagem quanto a câmera trabalham em prol de sua construção: a imagem. Mas dizermos que a imagem é uma especificidade do cinema poderia ser contraditório, uma vez que outras artes também possuem imagem como característica principal. Mais que isso, elas contam histórias. Vejamos o caso da pintura: um quadro, mesmo estático, mesmo sem apresentar-nos uma sucessão de situações, é capaz de contar-nos uma história. Heidegger bem nos diz isso em A origem da obra de arte. Ao nos colocarmos em frente a uma pintura, por mais simples que ela seja (como um par de botas), aquilo que ali nos é apresentado se abre. Tomemos o exemplo de Guernica, de Picasso. Ao pintar diferentes detalhes da cena de um bombardeio, Picasso nos possibilita a criação de uma cena mental. Cada detalhes da pintura é, em nossa mente, provido de um tempo, de uma sucessão, e a agonia daquele momento é, por nós, reconstruída.


Fica, assim, a questão: não é esse também o trabalho do cinema? Como poderia ele possuir uma especificidade, como poderia existir um cinema puro? Se a pintura é capaz de nos contar uma história, de fazer-nos criar o desenrolar de uma cena, o cinema possuirá um algo a mais que já se faz presente em seu nome. "Cinema" provém de "cinematógrafo", o aparelho criado pelos irmão Lumière que fotografava 16 quadros por segundo. Estas fotografias eram feitas por um sistema cinético, de movimento. Ao mesmo tempo que a película é puxada, uma paleta posta entre a lente e o filme a cobre brevemente para que ela receba a luz que vem de fora e permita a impressão da imagem. Ou seja, o cinema é a arte das imagens em movimento. Esta afirmação soa banal, sem qualquer novidade, mas passa despercebida tanto por cineastas quanto espectadores ao criar/assistir um filme. Se o cinema é a arte das imagens em movimento o que se espera é que tanto a história seja assim apresentada. Não é o que ocorre.

No período mudo do cinema é o momento mais forte do pensamento do cinema puro exatamente pela obviedade da intromissão de outra arte no campo do cinematógrafo. Os letreiros eram pouquíssimo naturais e deveriam aparecer o menos possível. Os cineastas de menor talento eram aqueles que mais deixavam sua história correr com a intromissão dos cartazes. Outros, mais preocupados em fazer uma arte séria, criavam pactos de fazer filmes com o mínimo de intromissão possível. Charles Chaplin e Buster Keaton eram dois dos que em Hollywood representavam este ideário - curiosamente dois cômicos que necessitavam somente de suas performances em tela para a criação de sua arte. Do outro lado do Atlântico, ao alemães contrariando a expectativa (uma vez que eram os franceses que mais teorizavam o assunto), se saíram bem sucedidos. Karl Grune, em 1923, já fazia de A rua um filme de uma hora e meia com apenas quatro letreiros. No ano seguinte é a vez de Murnau filmar A ultima gargalhada que também em uma hora e meia se vale de somente um letreiro para encerrar seu filme.


O filme de Murnau será tomado como base de modelo de como se fazer um filme de cineastas como Alfred Hitchcock. Este que começou a filmar já no final do período mundo do cinema e que teve que se adaptar ao cinema falado. Junto com a fala, todas as expectativas do cinema puro, de criação de filmes somente visando a construção das imagens, desmorona. As obras passam a ser criadas cada vez mais visando as palavras, os diálogos. Nos anos 1930 - hábito que dura ainda hoje - filmes inteiros passam a ser construídos partindo somente dos diálogos de personagens que nada fazem em tela. Volta-se àquele problema que o cinema de Griffith buscava combater: o teatro filmado. Se os atores entram em cena é para que sirvam à imagem. Tudo que surgem dentro do quadro deve ser em serventia à imagem. E os diálogos não são parte componente da imagem. Ainda falando de Hitchcock, chegamos a lançamento de Psicose, em 1960. O filme foi acusado pela crítica estadunidense de não ter conteúdo e poder ser transformado em curta-metragem. Isso porque a maior parte do filme transcorre sem falas, sempre com as imagens - coisa que foi entendida pela crítica francesa que transformou Hitchcock no maior cineasta hollywoodiano de sua geração. Psicose é um filme falado que surge em imagens, o temor da ladra em fuga, o assassino perturbado, a mulher em busca de sua irmã desaparecida, tudo isso surgindo pelas imagens. Se há diálogos no filme não é para explicar a história, como muitos fazem, mas para pautar a relação entre os personagens - muitos filmes mudos colocavam os atores falando em quadro sem seguir de letreiros.

Outro exemplo que podemos trazer é de Antes do amanhecer, filme de Richard Linklater de 1995. Mesmo não sendo Linklater vinculado a um pensamento cinematográfico semelhante ao do cinema puro, seu filme pode ser pensado dessa forma. Isso porque, mesmo sendo construído de longos diálogos, a relação entre o casal que se conhece num trem com escala em Viena e lá resolvem descer se faz por completo por meio das imagens. O medo de dar o passo seguinte e o desejo do casal é registrado pelas imagens enquanto que suas falas em nada deixam clara esta relação. Quando ao fim do filme eles afirmam seu desejo e paixão pelo outro, nós, espectadores, já o sabemos. O que fica claro neste filme é que o cinema puro não impede a colocação de diálogos no filme, contanto que seja respeitada o princípio do cinema: a construção das imagens em movimento.


Mas ao dar este espaço aos atores, não estaria o cinema fazendo uma coligação com o teatro? Não significa que por ter atores seja teatro. Sim, o primeiro cinema se assemelhava bastante ao teatro pelo modo como era filmado, mas isso deixou de ser verdade. Porque não é a presença do ator em cena que faz disso teatro. Se André Kertèsz contrata atores para pousar para uma fotografia, isso não significa que seja teatro, porque seria no caso do cinema? Pela movimentação? Não, mas por aquilo que já foi aqui dito: a imagem. Os atores surgem em cena para se apresentar como parte constituinte de uma imagem. Como o cinema de Robert Bresson vai mostrar, a presença dos atores em cena deve se voltar somente para a construção imagética do filme. Nos filmes de Bresson os atores não demonstram qualquer emoção, ficando sempre por parte da composição das imagens a passagem desta compreensão. Os atores agem em seus filmes como manequins ambulantes, capazes de recitar textos.

Por fim, qual seria, então, o papel do som no cinema? Também o som pode surgir em relação com as imagens, mas de uma maneira muito mais avançada para a criação de cinema. Ainda na década de 1930, Robert Mamoulian dirige alguns filmes sonoros em que a inventividade na construção do som que com relação a imagem é digno de nota. Se na imagem aparecem três senhoras burguesas, o som de seus sorriso infantil será substituído pelo latido agudo de poodles - uma construção semelhante àquela de Eisenstein ao afirmar que duas imagens confrontadas provocariam uma conclusão. Ou, em Apocalipse now, o sargento a espera de voltar para a guerra, ouve o som de um helicóptero vindo do ventilador de teto. O som, em ambos os casos, provoca uma imagem mental no espectador que dá uma significação para a cena.

O cinema é a arte das imagens em movimento e deve ser pensado e feito como tal.