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terça-feira, 10 de novembro de 2020

Sobre o absoluto, o sublime, e a verdade extática


Werner Herzog

Tradução para o inglês de Moira Weigel

Traduzido da versão em inglês por Yves São Paulo

 

[esse texto foi originalmente apresentado por Werner Herzog na forma de palestra em Milão, Itália, em sequência à exibição de seu filme Lições da Escuridão, sobre os incêndios no Kwait. Foi pedido para que o cineasta falasse sobre o Absoluto, mas ele espontaneamente mudou seu tema para o Sublime. Portanto, boa parte do que segue foi improvisada no momento.]

 



O colapso do universo estelar ocorrerá – como a criação – em um grandioso esplendor.

Blaise Pascal



 

As palavras atribuídas a Blaise Pascal que servem de prefácio ao meu filme Lições da Escuridão são, na verdade, minhas. Pascal não poderia ter dito melhor.

Esta citação falsificada, e como mais tarde demonstrarei, não falsificada citação serve como um primeiro indicativo sobre o que estou querendo lidar com este discurso. De todo modo, para reconhecer um falso como falso serve apenas como triunfo a quem conta.

Por que estou fazendo este percurso, você pode se perguntar? A razão é simples e provém de considerações práticas, e não teoréticas. Com esta citação como prefixo eu elevo [erheben[1]] o espectador, antes que ele tenha visto o primeiro frame, a um alto nível para adentrar no filme. E eu, o autor do filme, não o deixo descer desta altura até que a obra seja terminada. Apenas neste estado de sublimidade [Erhabenheit] algo de profundo pode se tornar possível, uma espécie de verdade que é inimiga do meramente factual. Eu chamo de verdade extática.

Depois da primeira guerra no Iraque, enquanto os campos de óleo queimavam no Kwait, a mídia – e aqui quero dizer a televisão, em particular – não estava em posição de dizer de que se tratava, para além de ser um crime de guerra, um evento de dimensões cósmicas, um crime contra a própria criação. Não há um único quadro em Lições da es­curidão em que você consiga reconhecer nosso planeta; por esta razão o filme é catego­rizado “ficção-científica”, como se somente pudesse ter sido filmado numa galáxia dis­tante, hostil à vida. Quando foi lançado no Festival de Berlin, o filme recebeu uma orgia de ódio. Dos gritos raivosos do público eu apenas podia entender “estetização do horror”. E quando me encontrei sendo ameaçado e cuspido no pódio, lancei apenas uma reposta simples e banal. “Seus cretinos”, eu disse, “isto é o que Dante fez em seu Inferno, o que Goya fez, como também fez Hieronymus Bosh”. Em meu momento de necessidade, sem falar a respeito, evoquei meus anjos da guarda que nos familiarizaram com o Absoluto e o Sublime.

O Absoluto, o Sublime, a Verdade... o que estas palavras significam? Esta é, devo confessar, a primeira vez em minha vida em que tive que assentar tais questões fora de minha obra, o que compreendo, primeiro e acima de tudo, em termos práticos.

A título de qualificação, devo adicionar já que não me aventurarei a definir o Ab­soluto, mesmo que este conceito lance uma sombra sobre tudo o que eu fale aqui. O Ab­soluto põe um dilema interminável para a filosofia, a religião, e a matemática. A mate­mática talvez chegue o mais próximo de resolver esta questão quando alguém finalmente provar a hipótese de Riemann. Esta questão envolve a distribuição de números primos, permanecendo sem resposta desde o século XIX, alcança as profundezas do pensamento matemático. Um prêmio de um milhão de dólares foi posto para quem resolvê-lo, e em um instituto matemático em Boston atribuíram pelo menos mil anos para que alguém apareça com a prova. O dinheiro está esperando por vocês, assim como sua imortalidade. Por dois mil anos e meio, desde Euclides, esta questão têm preocupado os matemáticos; descobrir que Riemann e sua hipótese brilhante não estão certos, lançaria tremores que balançariam a matemática e as ciências naturais. Somente posso vagamente começar a entender o Absoluto; não estou em posição para definir o conceito.

 

A verdade do oceano

Por enquanto, ficarei no confiável campo da práxis. Mesmo que não consigamos apreender, gostaria de falar para vocês sobre um encontro inesquecível que tive com a Verdade enquanto filmava Fitzcarraldo. Estávamos filmando nas selvas peruanas ao leste dos Andes, entre os rios Camisea e Urubamba, onde mais tarde eu içaria um enorme barco a vapor por cima da montanha. Os indígenas que viviam ali, os Machiguengas, eram a maioria dos extras da equipe e nos deram permissão para filmar em sua terra. Em adição ao pagamento, os Machiguengas queriam mais alguns benefícios: queriam treinamento para seu médico local e um barco, para que pudessem levar suas colheitas até o mercado alguns quilômetros rio abaixo, ao invés de vender para algum intermediário. Finalmente, eles quiseram ajuda na batalha legal pelo título da terra entre os dois rios. Uma companhia depois da outra tinha se aproveitado do local para pilhar seus estoques de madeira; recen­temente, também empresas de óleo tinham posto seus olhos gananciosos sobre o local.

Toda petição com a qual entramos desapareceu na labiríntica burocracia provin­cial. Nossas tentativas de suborno falharam também. Finalmente, tendo viajado até o mi­nistério responsável por tais assuntos, na capital Lima, me disseram que, mesmo que ar­gumentássemos a respeito do título legal com base em história e cultura, havia dois blocos que se chocavam. Primeiro, o título não se encontrava em nenhum documento legalmente verificável, tendo o suporte apenas do ouvir-falar, o que é irrelevante. Segundo, ninguém nunca tinha inspecionado a terra para traçar uma fronteira reconhecível.

No fim das contas, contratei alguém para fazer a inspeção, que entregou aos Ma­chiguengas um mapa preciso de sua terra natal. Esta foi minha parte em sua verdade: tomou a forma de uma delineação, uma definição. Admito, eu briguei com o inspetor. O mapa topográfico que ele forneceu estava, ele me disse, incorreto em certos pontos. Não correspondia à verdade porque não levava em consideração a curvatura da terra. Em um pedaço tão pequeno de terra? Eu perguntei, perdendo a paciência. É claro, ele disse rai­vosamente, atirando seu copo d’água em minha direção. Mesmo com um copo d’água você tem que ser claro, o que estamos lidando aqui não é nem mesmo a superfície. Você deveria ver a curvatura da terra como você a veria num oceano ou num lago. Se você fosse realmente capaz de perceber tal como realmente é – mas você é muito simplista – você veria a terra curvar. Nunca me esquecerei desta severa lição.

A questão do ouvir-falar tinha uma dimensão mais profunda e requeria uma pes­quisa de tipo completamente diferente. [Reclamando pelo título da terra], os indígenas podiam apenas reivindicar que eles sempre estiveram ali, o que eles souberam por meio dos avós. Quando, finalmente, o caso parecia sem esperança, consegui uma audiência com o presidente, Fernando Belaúnde. Os Machiguengas de Shivankoreni elegeram dois representantes para me acompanhar. Quando nossa conversação ameaçou chegar num impasse [no escritório do presidente, em Lima], apresentei a Belaúnde o seguinte argu­mento: na lei Anglo-Saxônica, ainda que ouvir-falar seja geralmente inadmissível como evidência, não é absolutamente inadmissível. Tão distante quanto em 1916, no caso Angu vs. Atta, uma corte colonial na Costa do Ouro (hoje Gana) declarou que ouvir-falar pode­ria servir como uma válida forma de evidência.

Aquele caso era completamente diferente. Tinha relação com o uso do palácio do governador local; no caso, também, não havia documentos, nada de oficial que pudesse ser relevante. Mas, a corte julgou, o enorme consenso dos boatos dos tribais sendo repe­tido e repetido passou a constituir uma manifestação da verdade que a corte pode aceitar sem maiores restrições. Com esta apresentação, Belaúnde, que viveu por muitos anos na selva, quedou quieto. Ele pediu por um copo de suco de laranja, então disse Bom Deus, e então soube que tínhamos o conquistado. Hoje, os Machiguengas têm o título de sua terra; mesmo os consórcios de firmas de óleo que descobriram uma das maiores reservas de gás natural [no mundo] nas proximidades teve de respeitar a decisão.

A audiência com o presidente ainda concedeu outro estranho vislumbre da essên­cia da verdade. Os habitantes da vila de Shivakoreni não tinham certeza de que do outro lado do Andes houvesse uma enorme quantidade de água, um oceano. Em adição, ainda havia o fato de esta monstruosa quantidade de água, o Pacífico, ser supostamente salgada.

Dirigimos até um restaurante ao sul de Lima, à beira da praia, para comer. Mas nossos delegados indígenas não pediram nada para comer. Permaneceram em silêncio e ficaram observando por cima dos parapeitos. Não se aproximaram da água, apenas enca­raram. Então um deles pediu por uma garrafa. Dei a ele minha garrafa de cerveja vazia. Não, esta não era a certa, tinha que ser uma garrafa que pudesse ser selada. Então trouxe uma garrafa de vinho chileno barato, abri, e derramei o vinho na areia. Enviamos a garrafa para a cozinha para que fosse limpa o mais cuidadosamente possível. Então os homens pegaram a garrafa e foram, sem uma palavra, até a margem. Ainda usando as calças jeans, os tênis, e as camisetas que tínhamos comprados para eles no mercado, eles adentraram nas ondas. Adentraram, olhando por cima do oceano Pacífico, até que a água alcançasse suas axilas. Então, provaram da água, encheram a garrafa, e a fecharam cuidadosamente com a cortiça. Esta garrafa cheia de água era sua prova para a vila de que realmente existia um oceano. Perguntei cautelosamente se não seria apenas parte da verdade. Não, eles disseram, se há apenas uma garrafa de água do mar, então todo o oceano tem que ser verdade também.

 

O ataque da realidade virtual

Daquele momento em diante, o que constitui a verdade – ou, para colocar de uma maneira muito mais simples, o que constitui realidade – se tornou um mistério muito maior para mim do que já era. As duas décadas intermediárias colocaram desafios sem precedentes para nosso conceito de realidade.

Quando falo de assaltos ao nosso entendimento de realidade, me refiro às novas tecnologias que nos últimos vinte anos se tornaram artigos de uso geral cotidiano: os efeitos digitais que criam realidades novas e imaginárias no cinema. Não que eu queira demonizar estas novas tecnologias, elas permitiram à imaginação humana alcançar coisas grandes – por exemplo, convincentemente reanimar dinossauros nas telas de cinema. Mas, quando consideramos todas as formas de realidade virtual que se tornaram parte da vida cotidiana – na internet, nos videogames, e nos reality shows da tevê; às vezes tam­bém em algumas formas estranhas, misturadas – a questão do que é “realmente” a reali­dade se coloca novamente.

O que realmente está acontecendo no programa de TV Survivor? Podemos real­mente confiar numa fotografia, agora que sabemos quão fácil tudo pode ser falsificado com o Photoshop? Algum dia seremos completamente capazes de confiar num email, quando nosso filho de doze anos nos mostra que o que estamos vendo é provavelmente uma tentativa de roubar nossa identidade, ou talvez um vírus, ou um “cavalo de troia”, que tenha vagado até o nosso núcleo e adotado cada uma de nossas características? Será que já existo em algum lugar, clonado, como um Doppelganger, sem saber a respeito?

A história oferece uma analogia sobre a extensão da mudança trazida pelo virtual, outros mundos com os quais estamos sendo confrontados. Por séculos e séculos, as cam­panhas de guerra eram praticamente as mesmas, exércitos de cavaleiros lutadores, bri­gando com espadas e escudos. Então, um dia, estes guerreiros se encontraram encarando uns aos outros através de canhões e armas. As campanhas de guerra nunca mais foram as mesmas. Também sabemos que as inovações do desenvolvimento de tecnologia militar são irreversíveis. Apresento alguma evidência que pode ser de interesse: em partes do Japão no começo do século XVII, houve uma tentativa de extinguir as armas de fogo, para que os samurais pudessem lutar uns contra os outros com espadas novamente. Esta tentativa durou muito pouco tempo; era impossível de ser mantida.

Alguns anos atrás, vim entender o quão confuso o conceito de realidade se tornou, de um jeito estranho, por meio de um incidente acontecido em Venice Beach, em Los Angeles. Um amigo estava fazendo uma festinha em seu quintal – um churrasco – e já estava escurecendo, quando, não muito longe, escutamos alguns tiros que ninguém levou a sério até que helicópteros da polícia apareceram com luzes de busca e mandaram, atra­vés de seus alto-falantes, que entrássemos em casa. Compreendemos o caso apenas em retrospecto: um garoto, descrito por uma testemunha como tendo algo em torno de 13 ou 14 anos de idade, estava vadiando ao redor de um restaurante uma quadra adiante de onde estávamos. Quando um casal saiu, o garoto gritou, This is for real, e atirou nos dois com uma semiautomática, fugindo em seguida em seu skate. Ele nunca foi apanhado. Mas a mensagem do louco era clara: isto não é um videogame, estes tiros são reais, isto é reali­dade.

 

Axiomas de sentimentos

Devemos perguntar à realidade: quão realmente importante você é? E: quão im­portante, realmente, é o Factual? É claro, não podemos ignorar o factual, ele possui um poder normativo. Mas ele não pode nunca nos dar o tipo de iluminação, o flash extático, de onde a Verdade emerge. Se apenas o factual, sobre o qual o chamado cinema vérité [cinema verdade] é fixado, fosse de significância, então se poderia argumentar que a vé­rité – a verdade – quando muito concentrada deve residir na agenda telefônica – em suas milhares de entradas que são todas factualmente corretas e, então, correspondem à reali­dade. Caso fôssemos ligar para todo mundo listado na agenda sob o nome de “Schmidt”, centenas desses telefonemas confirmariam que se chamam Schmidt; sim, seu nome é Schmidt.

Em meu filme Fitzcarraldo, há uma troca que levanta a questão. Partindo para o desconhecido com sua embarcação, Fitzcarraldo para num dos postos mais distantes da civilização, uma estação missionária:


Fitzcarraldo: o que os índios mais velhos dizem?

Missionário: não podemos curá-los da ideia de que a vida comum é ape­nas uma ilusão, atrás da qual está a realidade dos sonhos.


O filme é sobre uma ópera sendo encenada numa floresta tropical; como vocês sabem, eu realmente parto para produzir uma ópera. Tal como fiz, uma máxima era cru­cial para mim: um mundo inteiro precisa sofrer uma transformação para música, deve se tornar música; apenas então teríamos produzido uma ópera. O que é bonito numa ópera é que a realidade não tem lugar nela de modo algum; e o que acontece numa ópera é a superação da natureza. Quando olhamos para um livreto das óperas (e aqui a Força do destino, de Verdi é um bom exemplo), vemos muito rapidamente que a história é tão implausível, tão removida de qualquer coisa que poderia ser uma experiência real que as leis matemáticas da probabilidade são suspensas. O que acontece na trama é impossível, mas o poder da música permite ao espectador experimentá-la como verdade.

É a mesma coisa com o mundo emocional [Gefühlswelt] da ópera. Os sentimentos são tão abstratos que não podem ser subordinados à natureza do cotidiano humano, por­que estiveram concentradas e elevadas ao grau mais extremo e aparecem em sua forma mais pura; e apesar de tudo isso as percebemos, na ópera, como natural. Sentimento na ópera é, no fim das contas, como axiomas em matemática, o que não pode ser mais con­centrado ou explicado para além daquilo que já é. Os axiomas de sentimento da ópera nos levam, contudo, dos modos mais secretos, numa linha direta para o sublime. Aqui pode­ríamos citar “Casta Diva”, na ópera Norma, de Bellini como um exemplo.

Você pode perguntar: por que você diz que o sublime se torna acessível para nós na ópera, de todas as formas, considerando que a ópera não inovou em nenhum modo essencial ao longo do século XX, como aconteceu com outras formas artísticas? Isto ape­nas parece ser um paradoxo: a direta experiência do sublime numa ópera não é depen­dente de qualquer desenvolvimento ulterior, ou de novos desenvolvimentos. Sua sublimi­dade permitiu à ópera a sobrevivência.

 

A verdade extática

Todo nosso senso de realidade foi questionado. Mas não quero duelar com este fato por muito mais tempo, uma vez que o que me move nunca foi a realidade, e sim a questão que se encontra por trás dela: a questão da verdade. Às vezes, os fatos excedem nossas expectativas – tendo um poder incomum, bizarro – parecendo ser inacreditáveis.

Mas nas belas artes, na música, na literatura, e no cinema, é possível alcançar um extrato mais profundo da verdade – uma verdade poética, extática, que é misteriosa e pode apenas ser apreendida com esforço; é possível atê-la por meio da visão, estilo, cons­trução. Neste contexto, vejo a citação de Blaise Pascal sobre o colapso de um universo estelar não como falso, mas como um meio de fazer possível uma experiência extática de uma verdade interior e profunda. Assim como não é falsidade quando Michelangelo em sua Pietà retrata um Jesus de 33 anos e sua mãe com apenas 17.

Contudo, também ganhamos nossa habilidade de ter experiências extáticas de ver­dade através do Sublime, por meio das quais somos capazes de nos elevar sobre a natu­reza. Kant diz: A irresistibilidade do poder da natureza nos força a reconhecer nossa impotência física enquanto seres naturais, mas ao mesmo tempo revela nossa capacidade de nos julgarmos independentes da natureza, assim como superiores à natureza... estou deixando algumas coisas de lado aqui, em nome da simplicidade. Kant continua: Neste sentido, a natureza não é estimada em nosso julgamento estético como sublime porque ela excita medo, mas porque ela evoca nosso poder (que não é da natureza)...

Eu deveria tratar Kant com a necessária cautela, porque suas explanações com relação ao sublime são tão abstratas que sempre permaneceram estrangeiras às minhas práticas de trabalho. Contudo, Dionísio Longino, quem primeiro vim a descobrir ao ex­plorar estes temas, está muito mais próximo de meu coração, porque ele sempre fala em termos práticos e oferece exemplos. Não sabemos nada sobre Longino. Especialistas nem sequer sabem se este é realmente o seu nome, e apenas podemos especular que ele viveu no primeiro século depois de Cristo. Infelizmente, seu ensaio Sobre o sublime é também fragmentário. Nos mais antigos escritos que temos datando do século X, o Codex Parisi­nus 2036, existem algumas páginas faltando em todos os lugares, e às vezes grandes quan­tidades de páginas.

Longino procede sistematicamente: aqui, desta vez, não posso falar sobre a estru­tura de seu texto. Mas ele sempre cita exemplos muito vivazes da literatura. E aqui vou eu, novamente, sem seguir qualquer ordem esquemática, para apoderar-me do que me parece mais importante.

O que é fascinante é que, logo ao princípio de seu texto, [Longino] invoca o con­ceito de Êxtase, mesmo que ele faça num contexto diferente do que eu identifiquei como sendo “a verdade extática”. Em referência à retórica, Longino diz: O que quer que seja sublime não leva os ouvintes à persuasão, mas a um estado de êxtase; a todo o tempo e de toda forma possível impondo seu discurso com o feitiço que lança sobre nós, prevale­cendo sobre aqueles que buscam apenas a persuasão e a gratificação. Podemos controlar nossas persuasões normalmente, mas as influências do sublime trazem poder, reinando supremo sobre o ouvinte... Aqui ele usa o conceito de ekstasis, a pessoa saindo de si mesma em direção a um estado de elevação – onde podemos nos elevar sobre nossa pró­pria natureza – o que o sublime revela ser “como um raio”[2]. Ninguém antes de Longino havia tão claramente falado sobre a experiência de iluminação; aqui, estou falando da liberdade de aplicar esta noção a momentos raros e fugazes em filme.[3]

Ele cita Homero para demonstrar a sublimidade das imagens e de seu efeito ilu­minador[4]. Aqui um exemplo da batalha dos deuses:


Aidoneus, senhor das sombras, com medo saltou de seu trono e gritou alto para que acima dele a terra não fosse dividida por Poseidon, o Agitador da Terra, e sua morada fosse mostrada para ver os mortais e os importais – a morada terrível e úmida, a qual os próprios deuses odeiam: grande foi o barulho que surgiu quando os deuses entraram em confronto.


Longino era um homem muito lido, que sabia citar com exatidão. O que é impres­sionante aqui é que ele toma a liberdade de soldar juntas duas passagens diferentes da Ilíada. É impossível que isso tenha sido um erro. Contudo, Longino não está falsificando, e sim, ao invés disso, concebendo uma nova verdade, mais profunda. Ele afirma que sem a verdade e a grandeza da alma, o sublime não pode vir a ser. E ele cita uma declaração que pesquisadores hoje dizem ser ou de Pitágoras ou de Demóstenes:


Pois verdadeiramente bela é a afirmação do homem que em resposta a uma pergunta sobre o que temos em comum com os deuses, respondeu: a capacidade de fazer o bem e a verdade.


Não deveríamos simplesmente traduzir euergesia como “caridade”, de tal forma que esta noção foi apropriada pela nossa cultura cristã. Nem mesmo a palavra grega para verdade, aletheia, é simples de apreender. Etimologicamente falando, provém do verbo lanthanein, “esconder”, e é relacionada à palavra lethos, “escondido”. A-letheia é, por­tanto, uma forma de negação, uma definição negativa: é o ‘não-escondido”, o revelado, a verdade. O que os gregos quiseram com o pensar através da linguagem foi, portanto, de­finir a verdade como um ato de divulgação – um gesto próximo do cinema, onde um objeto é lançado à luz, e então uma imagem latente, mas ainda não visível, é conjurada no celuloide, onde primeiro tem que ser processada, e então divulgada.

A alma do ouvinte ou do espectador completa este ato; a alma atualiza a verdade através da experiência da sublimidade: ou seja, completa um ato independente de criação. Longino diz: Nossa alma é elevada acima da natureza por meio da verdadeira sublimi­dade, movendo-se com os altos espíritos, sendo preenchida com prazer orgulhoso, como se criasse o que estivesse a escutar.[5]

Mas não quero me perder em Longino, a quem considero como um bom amigo. Me apresento perante vós como alguém que trabalha com filme. Gostaria de apontar al­gumas cenas de outro filme meu como evidência. Um bom exemplo seria O grande êxtase do entalhador Steiner (1974), onde o conceito de êxtase já aparece no título.

Walter Steiner, um escultor suíço e múltiplas vezes campeão de salto de ski, eleva a si mesmo como se em êxtase religioso no ar. Ele voa tão temerosamente alto, que pe­netra na região da morte: apenas um pouquinho mais longe e ele não poderia aterrissar, ao invés disso se acidentando. Steiner fala, ao final, de um jovem corvo do qual ele cuidou e que foi seu único amigo de infância. O corvo perdia cada vez mais penas, o que prova­velmente tinha relação com a alimentação proporcionada por Steiner. No final, outros corvos atacaram o seu, torturando-o tão temerosamente que o jovem Steiner não teve outra escolha: Infelizmente, eu tive que atirar nele, disse Steiner, porque era tortura ter que assistir como ele foi torturado por seus próprios irmãos porque ele não podia mais voar. E então, num corte rápido, vemos Steiner no lugar de seu corvo, voando, num en­quadramento terrivelmente estético, em extrema câmera lenta, lentamente entrando na eternidade. Este é o voo majestoso do homem cuja face está contorcida pelo medo da morte como se perturbado por um êxtase religioso. E então, pouco antes da zona da morte – para além do declive, no plano, onde ele poderia ser esmagado pelo impacto, como se ele tivesse pulado do Empire State Building em direção ao chão abaixo – ele pousa sua­vemente, salvo, e um texto impresso é superposto na imagem. O texto foi tirado do escri­tor suíço Robert Walser, e lê:


Eu deveria estar completamente sozinho neste mundo

Eu, Steiner e mais ninguém.

Sem sol, sem cultura; eu, nu numa pedra alta

Sem tempestade, sem neve, sem bancos, sem dinheiro

Sem tempo e sem suspiro.

Então, finalmente, não teria mais medo de nada.

 

 

 Referências para a tradução:

Texto originalmente publicado na Revista Arion, vol. 17, n° 3 (Inverno de 2010), pp. 1-12. Disponível em: https://www.bu.edu/arion/on-the-absolute-the-sublime-and-ecstatic-truth/

Utilizamos também como fonte de consulta a tradução para português da mesma palestra publicada em Revista Carbono: http://revistacarbono.com/artigos/01sobre-o-absoluto_wernerherzog/



[1] Interessante pontuar que são três os termos mais comuns de ser trabalhados pela filosofia no âmbito do sublime, o grego hypsos, o alemão erhabene, e o de origem latina sublime. Neste caso, tanto hypsos quanto erhabene têm em comum sua direta indicação de elevação. [nota do tradutor]

[2] “...o sublime, produzido no momento certo, faz tudo em pedaços como um raio” (1.4). [aqui utilizamos a tradução de Marta Vázeas do tratado de Longino]

[3] A citação completa desta passagem, na tradução de Marta Várzeas: “1.4 O extraordinário não leva os ouvintes à persuasão mas ao êxtase; e o maravilhoso, quando acompanhado de assombro, prevalece sempre sobre o que se destina a persuadir e a agradar; pois se, em geral, a persuasão depende de nós, o sublime impõe-se com força irresistível e fica acima de qualquer ouvinte. E enquanto a mestria na invenção, a disposição e o arranjo do material não saltam à vista facilmente ao fim de um ou dois passos mas no conjunto da obra, o sublime, produzido no momento certo, faz tudo em pedaços como um raio e, num instante, mostra toda a força do orador.” Em: LONGINO. Do sublime. Tradução: Marta Isabel de Oliveira Várzeas. Coimbra (Portugal), São Paulo (Brasil): Imprensa da Universidade de Coimbra, Annablume Editora, 2015. [nota do tradutor]

[4] Aqui Herzog fala de iluminação em referência ao espírito sendo revelado a uma nova capacidade reflexiva, abrindo caminho para um sentimento complexo, i. e. o sublime. [nota do tradutor]

[5] Seguindo a tradução de Marta Várzeas: “De fato, o que está de acordo com a natureza é que, sob o efeito do verdadeiro sublime, a nossa alma se eleve e, adquirindo uma espécie de esplêndida altivez, se encha de prazer e de exaltação, como se ela mesma tivesse criado o que ouviu”. 7.2 Em: LONGINO. Do sublime. Tradução: Marta Isabel de Oliveira Várzeas. Coimbra (Portugal), São Paulo (Brasil): Imprensa da Universidade de Coimbra, Annablume Editora, 2015. [nota do tradutor]



segunda-feira, 10 de junho de 2019

Introdução à metafísica da cinefilia


Apresentação para o III efiba

A cinefilia é costumeiramente tratada nos estudos de cinema como um movimento cultural. Sendo um movimento cultural, alguns destes estudos realizam recortes muito específicos de períodos e localidades que abraçaram a “cultura cinéfila”. Curiosamente, a cinefilia assim tratada é fruto das grandes metrópoles dos países mais bem desenvolvidos economicamente, estando ligada à intelectualidade nova iorquina ou parisiense.
Soa inquietante para quem não se encontra nestes centros e se identifica com a cinefilia – mesmo em alguns detalhes da noção de cinefilia descritos por estes mesmos estudos. O caso mais particular destes estudos é o de vincular a cinefilia a um saudosismo de movimentos populares que não mais existem – a exemplo dos cineclubes parisienses dos anos 1940 e 1950 – a um maquinário econômico existente apenas em alguns grandes centros – somente em grandes metrópoles como Nova York ou Paris que é possível pensar salas de cinema de bairro.
Este é o caso da análise de autores como o historiador e crítico de cinema francês Antoine de Baecque e da filósofa estadunidense Susan Sontag. Ambos prontamente escrevem sobre a cinefilia apontando para uma suposta morte da cinefilia vinculada ao fechamento das salas de cinema dos grandes centros urbanos depois da popularização da televisão nos anos 1970. Em ambos os casos, a noção de cinefilia vem diretamente vinculada a uma historiografia do espectador de cinema que prioriza as experiências posteriores à criação da Cinemateca Francesa nos anos 1930.
Se até os anos 1930 existia uma grande dificuldade de criar uma unidade da narrativa histórica do cinema, isto se dava particularmente pelo esquecimento parcial em que caíam os filmes. Até meados de 1935, um filme que saía de cartaz dos cinemas estava fadado a ser esquecido porque não havia outro lugar onde ser exibido, sendo-lhe dedicada a prateleira para aguardar os incêndios comuns dos armazéns de filmes ou o estrago do filme em película.
O trabalho da Cinemateca Francesa é notável, especialmente para estudiosos da arte cinematográfica. Mesmo depois de sua criação, os estudiosos de cinema somente podiam contar com relatos de outros espectadores para comentar filmes influentes desta arte – é o caso de Walter Benajmin, por exemplo, ao escrever seu A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica, vasto conhecedor da arte cinematográfica, mas que em muitos casos somente podia ter acesso a certos filmes com o auxílio de descrição de críticos e outros espectadores.
Mas por outro lado o trabalho da Cinemateca Francesa serviu para que o pensamento centralizador de pesquisadores franceses começasse a apontar a história do espectador de cinema como nascendo junto ao empreendimento de Henri Langlois, fundador da casa. É o caso específico de Antoine de Bacque, que escreve um livro muito detalhado sobre a cinefilia francesa abarcando o período de 1940 a 1960 – período prolífico para a cinefilia francesa, quando se podia ter um cineclube onde se encontravam operários de fábricas e intelectuais do nível de Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir numa mesma plateia. Logo nas primeiras páginas de seu estudo, Baecque deixa muito clara o que considera como sendo cinefilia ao dizer que ele próprio se identificou com a cinefilia em seu momento de declínio, nos anos 1970, quando muitas das salas de Paris estavam a fechar por falta de público, público este atraído pelos aparelhos de televisão, muito mais cômodos em ofertar uma experiência audiovisual.
A leitura de uma cinefilia passível de entrar em declínio e vinculada a grandes centros urbanos é redutora. Não somente porque compreende que o cinéfilo é somente aquele que visita com frequência as salas de cinema de determinado circuito exibidor, como também compreende que a cinefilia nasce junto com o surgimento de uma instituição específica, a Cinemateca Francesa. Diferente do que pode ser encontrada nestas incursões historiografias, a cinefilia pode ser encontrada em relatos anteriores à criação da Cinemateca Francesa e em sociedades marginais aos grandes centros urbanos. É o caso do filósofo e psicólogo Hugo Munsterberg, que ainda em 1916 publica, no ano de seu falecimento, o primeiro tratado inteiramente dedicado ao estudo da arte cinematográfica – no qual ele prontamente se posiciona como defensor de que sim, o cinema é uma arte. Neste tratado, Hugo Munsterberg se mostra como um cinéfilo prolífico, conhecendo a produção de anos anteriores como os lançamentos mais recentes – apenas dois anos após o surgimento de Charles Chaplin nas telas de cinema, Munsterberg já era capaz de notar ali um gênio desta arte.
Portanto, existe algo na cinefilia que antecede os estudos sociais – que mesmo em seu reducionismo, na forma dos recortes dos autores aqui listados, mostra sua importância na análise de parte importante da arte cinematográfica, o espectador – que estaria a delinear as características do que é a cinefilia de modo mais amplo. Porque o que move o cinéfilo a retornar às salas de cinema, ou a se voltar aos periódicos dedicados a esta arte, é algo de mais profundo que se encontra inerentemente ao espectador de cinema. Daí a interpretação de que a cinefilia é, antes de qualquer coisa, uma emoção, necessitando, portanto, de um estudo estético para ampliar o entendimento a seu respeito.
Como já apontava George Dickie em ensaio clássico dos estudos de estética do século XX, é preciso tomar certo cuidado ao realizar um estudo estético. Os estetas do século XX, em especial aqueles do início da tradição analítica, eram muito pouco cuidadosos no tratamento de seus temas. O famoso ensaio de Dickie em questão faz a análise do uso do termo “atitude estética”, usado de maneira equivocada por muitos estetas listados ao longo do ensaio, que tratam o termo “atitude estética” – derivado da filosofia tardia de Wittgenstein – como análogo a outro que encontrou seu ápice nos estudos de estética na virada dos séculos XIX para XX: a atenção. Para um filósofo, especialmente para aquele que se vincula à tradição analítica, a noção de “atitude” não pode ser utilizada como análoga a outra como “atenção”. Nosso objetivo aqui não é o de adentrar na argumentação de Dickie a respeito destas duas noções, antes enxergando o motivo de ele tratar desta diferenciação a um campo de criação filosófica. Dickie é defensor de que os estudos estéticos façam um retorno à profundidade argumentativa que carregavam em seus tempos de ouro, nomeadamente no século XVIII, quando Kant e Hume não faziam seus estudos estéticos de maneira dispersa, antes fundamentando esta estética sobre uma ontologia, uma metafísica – como é particularmente o caso de Kant, ao tratar de suas questões estéticas na terceira crítica.
O que nos traz ao termo mais familiar para o público de filosofia, a metafísica. Ao estabelecer que esta é uma introdução à metafísica da cinefilia o que buscamos é realizar uma fundamentação metafísica para o estudo estético que valorará a cinefilia como uma emoção. No caso específico deste estudo, a vinculação se dará com a filosofia da duração desenvolvida pelo francês Henri Bergson.
A metafísica de Bergson, centrada na noção de duração, surge como fundamento para este estudo por sua não prontidão em delimitar a objetividade do universo, antes buscando a precisão. Muito falamos sobre autores vinculados à filosofia de Wittgenstein para agora nos vincularmos subitamente à filosofia de um metafísico como Bergson. O caso é que os dois autores não se encontram em campos tão distantes dentro do debate filosófico, partindo de premissas para a construção de suas obras muito semelhantes, ainda que não idênticas. Esta é notavelmente a interpretação dada por Bento Prado Jr. Tanto Bergson quanto Wittgenstein buscam a superação das fórmulas da filosofia moderna e antiga estabelecendo que a filosofia até aqui se ocupou de fazer as perguntas erradas e toma-las como ponto de partida. Mesmo realizando um estudo metafísico, Bergson abandona os pressupostos que carregavam as metafísicas anteriores ao estabelecer que não devemos – no âmbito da metafísica da duração – nos ocupar com perguntar sobre a essência, o conhecimento das coisas em si, da representação conceitual, a distinção sujeito/objeto. Todos estes detalhes que compõe sua metafísica são caros ao estudo estético que procuramos desenvolver aqui, uma vez que a cinefilia não pressupõe estas mesmas fórmulas.
A duração não é uma substância, antes sendo o meio encontrado por Bergson para delimitar a experiência em seu escorrer, em toda sua imprevisibilidade. Em muitos aspectos, a filosofia desenvolvida por Bergson caminha em direção de uma metafísica da ação – daí até mesmo sua aproximação com os pragmatistas, em especial William James. Mas é o próprio autor que em alguns detalhes, ao escrever sobre a arte e a experiência do espectador, encontra limites para esta ação. Em sua obra inaugural, Ensaio Sobre os Dados Imediatos da Consciência, Bergson estabelece que no caso de uma experiência mais aprofundada do espectador com uma obra artística, o espectador se encontraria num nível de submissão com a obra de arte, como que hipnotizado. Eis aqui um dos aspectos que nos fazem apropriar a filosofia de Bergson e toma-la como ponto de partida para os estudos concernindo a cinefilia como emoção. O espectador, mesmo em um nível mais aprofundado de relação com a obra fílmica, não abandona este caráter de atuação que tem sobre a obra. o que persiste a acontecer é uma troca, porque uma comunhão. São derrubadas aqui as fronteiras que delimitam o espectador como sujeito e o filme como objeto, ou vice versa. Espectador e filme passam a fazer parte um do outro, um a se embeber do espírito do outro.
Esta argumentação que pode ser realizada tendo como pano de fundo a noção de liberdade – aqui sempre tratada como noção, e não conceito, porque se trata de buscar a precisão filosófica e não a objetividade da representação conceitual. Liberdade que é pensada por Bergson no mesmo texto inaugural de sua filosofia, Ensaio Sobre os Dados Imediatos da Consciência. Antes de estabelecer a liberdade em sua acepção política e ética, de deliberação do ser humano frente aos eventos que se lhe apresentam, a liberdade na filosofia de Bergson ganha colorações mais próximas à duração, sendo a abertura do presente. Portanto, cabe separar a liberdade desta conclusão que tende a firmá-la espacialmente. A liberdade tem relação mais próxima à criação do devir contínuo. A constante marcha do universo nos presenteia com a novidade, a liberdade nos permite lidar com as transformações constantes pelas quais as coisas passam, ainda que assim não percebamos por termos nossa atenção voltada para a aparência, para o espaço e sua aparente imutabilidade.
O que nos leva a concluir que o espectador de cinema não é uma figura passiva em meio ao espetáculo cinematográfico do qual faz parte, mesmo em sua quietude corpórea ao se encontrar sentado perante uma tela onde escorrem as imagens. O espectador está em ação mesmo imerso nesta aparente quietude. O progresso da marcha da duração não pode ser transformado em coisa – a liberdade é o que não pode ser exprimido mediante uma lei, porque os estados, tal como são encontrados, não podem ser reproduzidos ou encontrados em sua duplicata.
O nascimento da cinefilia como emoção se dá precisamente na ação do espectador, a atitude inesperada de se deparar com um filme que se inscreve mais profundamente em sua consciência, e que permanece com ele mesmo depois de findada a sessão, porque de maneira mais marcante deixou seus dentes cravados na memória. Nasce da experiência de duração partilhada pelo espectador com o filme, quando a particularidade da temporalidade de um filme se inscreve em sua consciência. O espectador é duração assim como o filme que assiste é duração; ao longo da projeção do filme estas durações passam a se relacionar, de modo que o fluxo vital do espectador se confunde com o fluxo de duração do filme, que pulsa e tem vida em um modo todo próprio.
Encerro assim, de maneira abrupta, esta introdução a um estudo mais amplo, apenas para delimitar em caráter introdutório o princípio destes estudos que buscam fundamentar a emoção de cinefilia numa metafísica, esta tomada de empréstimo de Henri Bergson.


domingo, 9 de junho de 2019

Notas sobre o sublime cinematográfico


Em julho de 1961, o cineasta, crítico e então editor dos Cahiers du cinéma, Éric Rohmer escreveu um dos artigos mais conhecidos de sua carreira como teórico de cinema para esta mesma publicação, intitulado O Gosto da Beleza, que mais tarde viria a figurar como título para a coleção de artigos e ensaios selecionados ao longo de sua carreira de pensador da arte em questão.
Eric Rohmer é conhecido nos meios cinematográficos como sendo um membro que politicamente se posicionaria mais à direita dentre os escritores da revista, e dentre os participantes do que ficou conhecida como a Nouvelle Vague. Em parte por isso o valor do ensaio O Gosto da Beleza foi sombreado pelo que costumeiramente foi interpretado como um lance conservador de Rohmer em buscar a retomada de vocabulário arcaico para tratar o cinema.
A proposta do crítico e cineasta em O Gosto da Beleza é o de encarar o cinema como uma arte madura, e portanto passando do ponto de os críticos e estudiosos se debruçarem unicamente nas formas de expressão das obras fílmicas para se focar na profundidade do conteúdo destes mesmos filmes - e aqui por conteúdo que seja entendido o filme em sua individualidade e singularidade, não sua temática ou roteiro. Se for para julgar os filmes como obra de arte, que os estudiosos de cinema se apropriem do vocabulário utilizado para se reportar a obras de arte.
Os esforços da crítica foram bem realizados ao longo das décadas anteriores, reconhece Rohmer, inclusive a de seus companheiros de Cahiers e de Nouvelle Vague – ocasionais críticos. Por meio dos artigos, críticas e ensaios de André Bazin, François Truffaut, André Labarthe, e alguns outros nomes muito caros à movimentação da cinefilia francesa, foi possível reconhecer algumas mudanças de perspectiva no tratamento interpretativo de uma obra fílmica. Em 1961, data da publicação do artigo de Rohmer, nem mesmo o crítico de um periódico provinciano – escreve ele – ousaria tratar os filmes somente a partir de seu roteiro, da história que conta. Um filme conta com todo um universo de possibilidades expressivas que permitem dar um tratamento ao roteiro, fazendo com que o trabalho de contar uma história em filme vá muito além do que se encontra escrito no texto entregue aos atores.
Chega então um ponto de contraposição. Se seus colegas estabeleceram estas mudanças de perspectiva de como interpretar um filme adotando o conceito de “mise-en-scène”, tomado de empréstimo do teatro e que passa a dizer respeito mais amplamente à encenação fílmica em todas as suas características (o jogo do ator com a câmera, o posicionamento da câmera, o movimento da câmera, a montagem, a colocação da trilha sonora...), Rohmer propõe uma nova mudança de perspectiva colocando sua preferência: o Belo. Para propor o uso da segunda noção em detrimento da primeira, Rohmer diz que no Belo já é possível abarcar a noção de “encenação fílmica”, mas deixa de lado o peso técnico que esta última carrega.
A incursão de Rohmer pelo trabalho que seus parceiros de crítica realizavam até então pode ser expandido para o trabalho feito pelos filósofos ao tomar o cinema como tema de investigação – num padrão que se manteve mesmo depois do artigo de Rohmer. Os comentários envolvendo o dispositivo cinematográfico por filósofos datam desde seus primeiros dias de existência, sendo que dentre os mais famosos estão aqueles de Henri Bergson, notavelmente em A Evolução Criadora. O foco exclusivo no cinema, porém, somente terá início alguns anos mais tarde desta que é a obra mais conhecida de Bergson, quando Hugo Munsterberg publica nos EUA o tratado The Photoplay: A Psychological Study, dedicando-se inteiramente ao estudo do cinema, em 1916. Contudo, o tratado de Munsterberg não ficou tão bem conhecido entre o público geral e os acadêmicos de filosofia e das artes, somente ganhando notoriedade décadas mais tarde.
Durante esta primeira fase da história da teoria de cinema, aqueles que mais tomaram a frente para pensar a arte e suas formas de expressão foram os próprios realizadores. Na União Soviética, os cineastas mais influentes não somente trabalhavam fazendo filmes, como também auxiliavam na formação de novos realizadores de cinema. Foi destas aulas que surgiram experimentos de ordem perceptiva, para notar padrões de comportamento do espectador com relação às imagens – o mais famoso dentre eles é aquele realizado por Lev Kulechov –, assim como para pensar em novos caminhos de utilizar a montagem para melhor desenvolver uma narrativa essencialmente cinematográfica – como é exemplo com os exercícios teóricos e práticos de Eisenstein com a montagem de atrações e a dialética fílmica.
Curiosamente, é na França que se pode encontrar – ainda na década de 1920, durante o período silencioso do cinema – alguns exercícios próximos à proposição de Rohmer em seu artigo. Se na Alemanha do mesmo período ficou famoso o movimento expressionista, na França semelhante movimento acontecia de cineastas desenvolverem obras vanguardistas buscando experimentar com as formas de expressão do cinema. O grupo central do cinema francês do período ficou conhecido como Impressionista, em aproximação com o movimento das artes plásticas do mesmo país. Os cineastas, assim como os soviéticos, trabalhavam também como teóricos, ainda que diferentemente dos soviéticos não tivessem uma escola de formação de novos realizadores. Logo a crítica de cinema francesa ganhou fôlego, e já no final da década de 1910 todo jornal do país carregava uma seção dedicada a crônicas sobre a nova arte. Por meio destes espaços os realizadores de cinema podiam desenvolver suas ideias a respeito do que pensavam. A ideia que mais se aproxima daquela de Rohmer envolve a noção de fotogenia.
Assim como a noção de “encenação fílmica”, a “mise-en-scène” – um conceito tão popular dentre os críticos que mesmo no Brasil é utilizado por acadêmicos sem tradução para guardar sua amplitude descritiva dentro da teoria de cinema – “fotogenia” não é um termo novo para as artes, antes sendo proveniente da fotografia, sendo apropriada pelos estudos de cinema e carregando forte peso técnico, como sua prima “mise-en-scène”. Mas Fotogenia começou a ser utilizada pelos cronistas, críticos e teóricos de cinema nos anos 1920 como um termo para poder abarcar tanto o aspecto técnico do dispositivo cinematográfico, quanto seu aspecto estético. Um exercício de cineastas para encontrar o meio termo entre a técnica e o poético que guarda esta nova arte. A poesia seria rendida no cinema através da Fotogenia. Dentre os realizadores que se dedicaram ao estudo da Fotogenia no cinema, destacam-se Louis Delluc e Jean Epstein.
Apesar das promessas da Fotogenia para o cinema, sua definição nunca foi muito bem precisada pelos realizadores, deixando-a a cargo da intuição de seus leitores e colegas realizadores para desvendar seu mistério. É o que nota, por exemplo, Jacques Aumont, ao citar um trecho de um dos ensaios de juventude de Jean Epstein, escrevendo, “a fotogenia é para o cinema o que a cor é para a pintura, o volume para a escultura: o elemento específico desta arte” – assim começa Epstein, ao que Aumont conclui, “A fotogenia é a virtus artística do cinema. não precisa portanto de nenhuma definição particular. Daí Epstein voltar ao termo dez anos depois exatamente, em 1934-1935, para anunciar uma ‘fotogenia do imponderável’. Simplesmente, a ênfase deslocou-se da fotogenia ao imponderável: o cinema tornou-se a arte do invisível” (AUMONT, p. 92).
Precisamente este invisível, ou imponderável, passou a ser levado em consideração por críticos e filósofos ao longo das décadas seguintes. O próprio Epstein, ao se ver afastado da produção fílmica depois do advento do cinema falado, passou a cada vez mais redigir ensaios sobre o cinema abordando o caráter metafísico do dispositivo cinematográfico, dando particular atenção à relação do cinema com o tempo. Durante este mesmo período, André Bazin, mentor de Eric Rohmer, escreve uma série de ensaios acerca do realismo cinematográfico em estudos de viés ontológico, também se dirigindo ao tempo, ou neste caso em seu débito com a filosofia de Bergson, duração. Assim continuam os estudos de cinema, com Edgar Morin na década de cinema com o livro O Cinema ou o Homem Invisível, Susan Sontag em suas Notas sobre Bresson.
Até que na década de 1970 uma corrente iniciada pelo cineasta estadunidense Paul Schrader, roteirista famoso pelo filme Taxi Driver, começou a chamar este invisível, o imponderável, sob a categorização de “cinema transcendental”. O ensaio de Schrader exerce grande influência sobre estudiosos, especialmente sobre a obra do filósofo francês Gilles Deleuze, ao escrever o segundo tomo de seu texto sobre cinema. Ancorado no título de Schrader que Deleuze cunha seu famoso conceito de imagem-tempo.
Apesar da importância de todas estas concepções, permanece válida a incursão de Eric Rohmer, mas desta vez com uma perspectiva filosófica. Os estudos que se preocuparam com pensar o cinema continuadamente mantiveram suas proposições voltadas para aspectos ora técnicos, ora ontológicos, recusando o vocabulário estético que a tudo isto poderia abarcar, e ainda levaria em consideração a condição do objeto de investigação: a arte cinematográfica.
Na separação dos dois tomos de seu estudo de cinema, Deleuze realiza também uma separação “histórica” – aqui figurando entre aspas porque não trata do autor nem como uma evolução (como o fazia Bazin), nem como uma progressão, ou como havendo um momento de ruptura na história desta arte. A “história” do cinema deleuzeana se divide (como fazia Bazin) entre clássico (imagem-movimento) e moderno (imagem-tempo), uma divisão que continua a causar confusões interpretativas da obra do filósofo. A imagem-tempo seria constitutiva de características muito próximas àquelas detalhadas por muitos outros teóricos de cinema antes dele: há o tempo, o espírito, o pensamento, o transcendente. Curiosamente, no entanto, é encontrar estas características na descrição de escritores clássicos ao considerar a emoção do sublime.
O sublime foi emoção considerada por muitos autores ao longo dos séculos, caída em desuso por acadêmicos próximos à arte cinematográfica antes mesmo de abordá-la. Há, assim, o perigo de tomar uma noção desenvolvida quando inserida em determinados contextos alheios àqueles da arte cinematográfica. Quando pensado por Longino, o sublime é pensado exclusivamente no contexto literário. Quando pensado por Kant, o sublime não se prende às fronteiras da experiência com as artes. Em fato, o sublime tal como tratado por Kant em sua Crítica da Faculdade de Julgar somente será mais diretamente vinculado às artes quando pensado por autores muito mais próximos à produção artística, como Schiller, mesmo assim, ainda antes da criação do cinema.
Próximo do que Rohmer já propunha a respeito do Belo, um estudo que atualize o sublime pensando-o em sua ligação com o cinema não poderá se furtar a levar em consideração as ponderações ontológico-metafísicas em torno desta arte. O objetivo desta pesquisa é o de buscar nas fontes clássicas os estudos sobre o sublime, para que assim seja possível realizar uma atualização da noção, aproximando-o de uma metafísica e de uma ontologia do dispositivo cinematográfico.



ROHMER, Eric. Le gout de la beuté. Publicado originalmente em: Cahiers du Cinéma, Julho de 1961, Tomo XXI, nº 121, p. 18-25.

(texto originalmente apresentado no seminário da pós-graduação em Filosofia da Universidade Federal da Bahia)

quinta-feira, 15 de março de 2018

Parece mágica, mas é cinema

Sobre Hugo Munsterberg e o primeiro tratado dedicado ao estudo da arte do filme

Originalmente publicado em espanhol em Revista Zahir


            Tempos atrás, quando Theda Bara era uma das estrelas mais conhecidas e quando Hollywood ainda não era um lugar nos EUA, um europeu ensinando filosofia e psicologia foi contratado pelos estúdios Paramout. Deslumbrado com as muitas possibilidades ainda por desbravar da arte do filme ainda a dar seus primeiros passos, ele começa a escrever. Não filmes, porque não era um artista. Fora contratado pela gigante do entretenimento para fazer filmes educacionais. Como bom acadêmico, desenvolveu suas ideias sobre este novo meio de expressão.
            Deste encontro do acadêmico com a arte do filme surgiu o primeiro tratado sobre cinema. Mas a arte não é nele chamado de cinema. Não, este é um termo que os franceses utilizam e que exportaram para alguns outros idiomas mais próximos. O filósofo e psicólogo, com um pé no pragmatismo de seus colegas de departamento em Harvard e outro pé no kantismo de sua educação lá na terra natal, Hugo Munsterberg escreve e publica em seu derradeiro ano The photoplay, a psychological study. Um estudo que se divide em duas partes, a primeira para comentar o aspecto psicológico do meio, outro para falar do aspecto estético.
            Por muito tempo os escritos de Munsterberg foram esquecidos pelos estudiosos dos filmes. Mas a abordagem que ele desenvolve em seus escritos é uma das mais persistentes nos estudos de teoria de cinema – tal como aponta Noel Carroll em Theorizinhg the moving image. Como bom psicólogo, Munsterberg traça a analogia mente/filme, que podemos ver ainda na teoria de Jean Epstein e em certa medida em Deleuze.
            Chegamos assim ao ponto chave de nossa breve incursão pelo mundo cinematográfico de Munsterberg. Como é feita esta analogia entre a mente e o filme? Num dos capítulos de The photoplay o filósofo retoma um dos temas mais estudados pelos autores de seu tempo: a atenção. Separa a atenção em dois tipos: atenção voluntária e atenção involuntária. Ambos os tipos podem ser encontrados nas artes teatrais, e também no cinema. Com o cinema algo de muito peculiar acontece.
            Antes de chegar à conclusão, que seria a peculiaridade da representação cinematográfica da atenção, desvendemos o que significa estes dois tipos de atenção.
            Primeiro, a atenção voluntária. Esta acontece quando selecionamos o caos do mundo externo em direção a uma conclusão que queremos tomar. Nossas percepções são direcionadas para a busca de algo em específico, porque nosso intento busca esta especificidade no mundo externo. Tudo aquilo que não satisfaz ao nosso interesse é assim descartado para que nos foquemos apenas naquilo que vemos como sendo mais importante. Aceitamos o que vem de fora apenas se nos fornecer matéria para aquilo que estamos a buscar. É o caso da leitura deste texto. Seus olhos, leitor, perifericamente conseguem captar todo o entorno, mas sua atenção, seu esforço mental, focaliza apenas as palavras que está a ler. São elas que lhe atraem e não os objetos dormentes sobre a mesa.
            Segundo, a atenção involuntária. Para esta já não estamos com uma ideia pré-concebida e não buscamos ordenar as impressões ao nosso redor. Acontece quando algo que é externo a nós chama nossa atenção com muito mais força do que podemos controlar. Por exemplo, se enquanto lê estas palavras o barulho de uma explosão ou de uma pancada muito forte retire seus olhos destas letras. Se alguém derruba um copo em outro cômodo da casa, neste momento, nossa atenção se voltará por completo para aquele ponto. Não porque queremos, porque não esperamos que o copo vá ser derrubado. Daí ser chamada de involuntária.
            As artes possuem muitas maneiras de trabalhar com estes dois tipos de atenção. No teatro, certamente o ator que fala chama mais atenção que aquele que está em silêncio, a não ser que a fala seja direcionada a alguma outra personagem no palco. Mas no caso do teatro, a atenção permanece sendo direcionada pelo próprio espectador. Uma atenção voluntária. Porque se queremos nutrir-nos ao máximo desta experiência, devemos seguir os passos que os artistas nos apresentam – a não ser em casos de obras pós-modernas. Se vou ao teatro com maior interesse em assistir à performance de um dos atores em especial, posso abandonar a ação e ficar a espiá-lo enquanto ele não é centro da cena.
            Poderíamos dizer que este é o caso também do primeiro cinema, aquele feito aos primórdios da arte do filme. Quando a câmera de filmar permanecia em frente ao cenário – no que é chamado, não elogiosamente, de “regente de orquestra” – observando os atores à distância, buscando fotografá-los de corpo inteiro. O cenário aparece em aberto para o espectador que pode muito bem distinguir os diferentes atores e pode direcionar seu olhar para diferentes pontos do quadro. Olhar para o que acontece fora do centro da ação, longe de onde acontece o conflito.
            Mas no caso deste cinema temos uma particularidade. Porque o cinema, diferente do teatro, ao filmar possui apenas uma perspectiva daquela ação. E assim o autor de uma película pode filmar de modo a direcionar o olhar do espectador por meio do reposicionamento dos atores no cenário. Como escreve David Bordwell em Figuras traçadas na luz, são muitas as possibilidades estéticas que o jogo de cobrir e revelar tem a fornecer ao cineasta. Um grupo de personagens surge numa sala, e todos eles cobrem a entrada. Movem-se em direção a uma mesa e junto com eles levam nossa atenção. Permanecem de pé a observar algo sobre a mesa, quando o herói adentra em cena. Apesar da falta de obviedade de uma cena como esta, trata-se de um jogo de encenação muito eficaz para direcionar o olhar do espectador. Porque nosso olhar e nossa atenção caçam os movimentos, a ação. Algo que possa alimentar nosso interesse.
            Munsterberg está mais interessado em outros truques possíveis com o cinematógrafo. E, tal como Méliès, encontra-se fascinado com as possibilidades da trucagem. Os efeitos possíveis pelos cortes, os saltos temporais – como Eisenstein escreveu pouco depois, antes somente possíveis pela literatura. O cinema, num piscar de olhos, é capaz de saltar dez, vinte anos no tempo. Se inserir na mente de suas personagens e concretizar seus sonhos, suas lembranças. Quão maravilhosa não é esta máquina que consegue nos apresentar nossos próprios sonhos! Fazer fadas dançarem sobre as mãos de um homem, como antes era possível somente nos mais fantásticos delírios!
            Dentre estas trucagens, a que mais chama atenção de Munsterberg no capítulo citado é o close-up. Por meio dele é possível aumentar imensamente alguns detalhes da cena. Fazer com que todo cenário desapareça na escuridão da sala de projeção. Quando o homem toma o revolver de cima da mesa, vemos com clareza seu gesto. A mão cresce e a vemos em detalhes. Está ali em toda agonia e efervescência do momento que leva àquela ação.
            “É aqui que começa o cinema!”, vibra Munsterberg. Quando a mão cresce e toma toda a tela. Quando o cinema toma para si as possibilidades que antes somente eram possíveis para a mente humana. Tal como selecionamos com nossos olhos aquilo que nos é mais caro ver, também faz o cinema por meio do close-up. O cinema externa esta que é uma competência da mente humana, apenas. Está transposto para o mundo da percepção um ato mental. Nada mais podemos ver dentro da escuridão da sala de cinema, na tela nos é dada apenas a mão a segurar o revolver.
            Este elogio de Munsterberg ao close-up é próprio aos autores dos primeiros tempos. Autores fascinados com as diversas capacidades de expressão por meio do filme. E quão fantástico não deve ter sido para este psicólogo e filósofo sentar-se a uma sala de cinema e descobrir o close-up! Esta técnica que para os espectadores contemporâneos parece a mais comum das técnicas cinematográficas, mas que possui a competência de dar vida às menores coisas (aqui numa evocação dos escritos de Epstein).
            O caso é que a analogia entre a mente e o filme não termina somente na atenção. Como já colocamos, o filme é capaz de saltar no tempo, tal como podemos fazer com o auxílio de nossa memória. Daí que a obra de Munsterberg tenha sido retomada em meados da década de 1970. Àquela altura, muitos de seus leitores traçaram paralelos entre os escritos de Munsterberg e os filmes que estavam a surgir nos anos 1960. Alguns chegaram a tratar Munsterberg como profeta de tais filmes.
            Não é o caso. Não devemos tratar Munsterberg como um profeta do “cinema moderno” (se é que existe tal coisa). Os filmes de Alain Resnais e Fellini se assemelham em muito a seus escritos, mas não devemos nos esquecer de que em seus escritos Munsterberg também se posiciona contrário aos experimentos que levaram ao cinema falado. O que não era uma particularidade sua, muitos dos teóricos de cinema até os anos 1930 enxergavam o som como uma adição que decairia a qualidade estética das imagens.
            Retomar a analogia mente/filme de Munsterberg hoje é muito interessante para os estudos de cinema. Os escritos sobre a arte do filme se encontram em larga medida embriagados pela ideia de que o cinema oferece uma réplica do mundo real. Os ideários do realismo, que conclamam os deveres morais dos realizadores em representar seus filmes da forma mais realista possível. A analogia filme/mente abre as portas para um pensamento de cinema e de formas de se expressar por meio do cinema mais amplo, dentro deste espectro. Tal como fizeram Resnais com seu L’anée dernière à Marieband e Fellini com seu 81/2.

domingo, 23 de julho de 2017

O cinema

Virginia Woolf


            Dizem que o selvagem não mais existe em nós, que somos uma sociedade esgotada, que tudo já foi dito, e que é muito tarde para ser ambicioso. Mas presumo que estes filósofos esqueceram-se dos filmes. Nunca viram os selvagens do século XX assistindo aos filmes. Nunca se sentaram em frente a uma tela e pensaram em como toda a roupa em seus corpos e carpetes a seus pés, não os separam a grande distância daqueles homens nus de olhos brilhantes que batem duas barras de ferro juntas e escutam em repique a antecipação da música de Mozart.

            As barras neste caso, claro, são tão trabalhadas e tão cobertas com acréscimos de materiais alienígenas que é extremamente difícil escutar qualquer coisa distintivamente. É tudo vai e vem, multidão, caos. Estamos observando, à beira de um caldeirão, fragmentos de todas as formas e sabores fervilhando; agora e novamente alguma vasta forma se eleva e parece prestes a se arrastar para fora do caos. À primeira vista, a arte do cinema parece simples, até estúpida. Há o rei balançando as mãos para um time de futebol; há o iate de Sir Thomas Lipton; há Jach Horner vencendo o Grand National. O olho passa por tudo isso instantaneamente, e o cérebro, igualmente excitado, se acalma para assistir os acontecimentos sem se agitar para pensar. Para o olho ordinário, para o olho do inglês a-estético, é um simples mecanismo que garante que o corpo não caia em buracos de carvão, providenciando ao cérebro brinquedos e doces para mantê-lo quieto, garantindo que ele continue se comportando como uma enfermeira atenciosa até que o cérebro venha à conclusão de que é tempo para acordar. Qual é seu propósito, então, para ser despertado de repente no meio de sua agradável sonolência e clamado por socorro? O olho está com dificuldades. O olho quer ajuda. O olho fala ao cérebro, “Algo está acontecendo que não consigo compreender. Você é necessário.” Juntos eles olham para o rei, o barco, o cavalo, e o cérebro vê de uma vez que eles ganharam uma qualidade que não pertence à simples fotografia da vida real.

            Não se tornaram mais bonitos no sentido em que imagens são bonitas, mas devemos chamar (nosso vocabulário é miseravelmente insuficiente) mais reais, ou reais com uma realidade diferente daquela em que percebemos a vida cotidiana? Nós as contemplamos como elas são quando não estamos lá. Vemos a vida como ela é quando não temos parte nela. Enquanto observamos, parecemos ser removidos da mesquinhez da existência. O cavalo não nos derrubará. O rei não apertará nossas mãos. A onda não molhará nossos pés. Deste ponto de vantagem, enquanto vemos as antiguidades de nosso tipo [kind – referência ao humano], temos tempo de sentir pena e divertimento, de generalizar, de dotar um homem com os atributos de uma raça. Assistindo o barco velejando e a onda quebrando, tempos tempo de abrir nossas mentes para a ampla beleza e registrar no todo disto a estranha sensação – esta beleza irá continuar, e esta beleza irá florescer quer contemplemos, quer não.  Além do mais, tudo isso aconteceu dez anos atrás, nos dizem. Estamos vendo um mundo que foi para debaixo das ondas. Noivas estão surgindo na abadia – agora são mães; mestres são ardentes – agora estão silenciosos; mães estão chorosas; convidados estão alegres; isto foi ganho e aquilo foi perdido, e está acabado e encerrado. A guerra surgiu do abismo aos pés de toda inocência e ignorância, portanto, dançamos e piruetamos, labutamos e desejamos, e por isso o sol brilhou e as nuvens escorreram, até o fim.

            Mas os cineastas parecem insatisfeitos com tão óbvias fontes de interesse como as passagens de tempo e a sugestão de realidade. Desprezam voos de gaivotas, embarcações no Tâmisa, o Príncipe de Gales, a Mile End Road, o Circo Picadilly. Querem melhorar, alterar, fazer uma arte que lhes seja própria – naturalmente, porque muito parece adentrar em seu escopo. Muitas artes parecem esperar prontas para oferecer sua ajuda. Por exemplo, há a literatura. Todas as famosas novelas do mundo, com suas bem conhecidas personagens e suas famosas cenas, apenas pedindo, parece, para serem colocadas em filme. O que poderia ser mais fácil e simples? O cinema caiu sobre sua presa com imensa rapacidade, e até o momento subsiste sobre o corpo de sua infeliz vítima. Mas os resultados são desastrosos para ambos. A aliança não é natural. Olho e cérebro são cortados em pedaços sem piedade enquanto tentam vaidosamente trabalhar em conjunto. O olho diz “Aqui está Anna Karenina”, uma moça voluptuosa em veludo preto, vestindo pérolas, vindo em nossa direção. Mas o cérebro diz, “Mas esta não é mais Anna Karenina do que é a Rainha Victoria”. Porque o cérebro conhece Anna quase inteiramente pelo interior de sua mente – seu charme, sua paixão, seu desespero. Toda a ênfase é dada pelo cinema sobre seus dentes, suas pérolas, e seu veludo. Então, “Anna se apaixona por Vronsky” – o que quer dizer, a moça em veludo preto cai nos braços de um cavalheiro de uniforme e eles se beijam com enorme suculência, grande deliberação, e infinita gesticulação, no sofá de uma extremamente bem arrumada biblioteca, enquanto o jardineiro incidentalmente corta o gramado. Então assim passeamos por algumas das mais famosas novelas do mundo. As soletramos em palavras de uma sílaba, escritas, também, no rabisco de um iletrado garoto na escola. Um beijo é amor. Um copo quebrado é ciúme. Um riso é felicidade. Morte é um ataúde. Nenhuma destas coisas tem qualquer conexão com a novela que Tolstói escreveu, e é apenas quando desistimos de tentar conectar as imagens com o livro que percebemos de alguma cena acidental – como o jardineiro cortando o gramado – que o que o cinema precisa fazer é lidar com seus próprios dispositivos.

            Mas quais, então, são estes dispositivos? Se deixar de ser um parasita, como fará para caminhar ereto? No momento, é apenas a partir de sugestões que se pode moldar qualquer conjectura. Por exemplo, numa exibição de Dr. Caligari dias atrás, uma sombra em forma de larva de repente apareceu no canto da tela. Inchou-se para um tamanho imenso, estremecida, abatida, e se afogou de volta para sua não entidade. Por um momento parecia incorporar alguma monstruosa imaginação doentia de um cérebro lunático. Por um momento pareceu que um pensamento poderia ser transmitido de forma mais eficaz do que por palavras. A monstruosa agitada larva parecia temer ela própria, e não a frase “Não tenho medo”. De fato, a sombra era acidental e o efeito não intencional. Mas se uma sombra, num certo momento, pode sugerir muito mais do que os próprios gestos e palavras de homens e mulheres em estado de medo, parece evidente que o cinema tem ao seu alcance inúmeros símbolos para emoções que até o momento não conseguiram encontrar expressão. O terror tem, além de suas formas ordinárias, a forma de uma larva; ele germina, cresce, treme, desaparece. A raiva não é só discurso e retórica, rostos vermelhos e punhos cerrados. É talvez uma linha preta torcida sobre uma folha branca. Anna e Vronsky não têm mais que se retorcer. Eles têm algo a seu comando – mas o quê? Há, nos perguntamos, algum segredo de linguagem que sentimos e vemos, mas nunca falamos, e, se é o caso, poderia isto ser feito visível para o olho? Há alguma característica própria do pensamento que possa se tornar visível sem ajuda de palavras? Há rapidez e lentidão; direcionamento de um dardo e vaporosa circunlocução. Mas tem também, especialmente em momentos de emoção, o poder de criação de imagens, a necessidade de levantar seu peso para outro portador; para permitir que uma imagem corra lado a lado junto com o pensamento. A semelhança do pensamento é por alguma razão mais bonita, mais compreensível, mais disponível, do que o próprio pensamento. Como todos sabem, em Shakespeare as mais complexas ideias criam correntes de imagens, as quais montamos, mudamos e torcemos, até chegarmos à luz do dia. Mas, obviamente, as imagens de um poeta não são fundidas em bronze ou traçadas a lápis. São um compacto de milhares de sugestões da qual o visual é apenas o mais óbvio e mais elevado. Mesmo a mais simples imagem, “Meu amor é como uma rosa, uma rosa vermelha, que desabrocha em junho”, nos apresenta impressões de umidade, calor e do brilho do carmim e a suavidade das pétalas inextricavelmente misturadas e amarradas sobre a exaltação de um ritmo que é em si a voz da paixão e hesitação do amante. Tudo isso, que é acessível a palavras e apenas a palavras, o cinema deve evitar.

            Ainda que muito de nosso pensar e sentir esteja conectado ao ver, algum resíduo da emoção visual que não é usada tanto por pintores ou poetas pode ainda se reservar ao cinema. Que tais objetos venham a não parecer com os objetos reais que vemos perante nós parece altamente provável. Algo abstrato, algo que se mova com a arte controlada e consciente, algo que exija a mínima ajuda das palavras e da música para tornar-se inteligível, ainda que utilizando-as subservientemente – de tais movimentos e abstrações os filmes devem, com o tempo, começar a ser compostos. Então, de fato, quando algum novo símbolo para expressar o pensamento é encontrado, o cineasta tem enormes riquezas em seu comando. A exatidão da realidade e seu surpreendente poder de sugestão devem ser tomados em questão. Annas e Vronskys – lá estão eles em matéria. Se dentro desta realidade ele poderia respirar emoção, poderia animar a perfeita emoção com pensamento, então sua recompensa poderia ser saudada com uma mão sobre a outra. Então, quando a fumaça derrama do Vesúvio, devemos ser capazes de ver o pensamento em sua selvageria, em sua beleza, em sua estranheza, repleta de homens com seus cotovelos sobre a mesa; de mulheres com suas pequenas bolsas escorregando para o chão. Deveríamos ver estas emoções misturando-se juntas e afetando-se mutuamente. Deveríamos ver violentas mudanças de emoção produzidas por sua colisão. Os mais fantásticos contrastes poderiam passar perante nós com a velocidade com que o escritor pode apenas labutar em vão; o sonho arquitetural de arcos e ameias, de cascatas caindo e fontes subindo, que às vezes nos visitam durante o sono ou se esculpem em quartos meio escuros, podendo ser percebidos perante nossos olhos acordados. Nenhuma fantasia poderia ser exagerada ou insubstancial. O passado poderia ser desenrolado, distâncias aniquiladas, e os abismos que deslocam novelas (quando, por exemplo, Tolstói tem que passar de Levin para Anna e ao fazê-lo sacode sua história e move e prende nossas simpatias) poderiam pela semelhança de plano de fundo, pela repetição de alguma cena, ser suavizados.

            Como tudo isto pode ser tentado, ou alcançado, ninguém no momento pode nos dizer. Somente somos intimados no caos das ruas, quando porventura alguma reunião de cores, sons, movimentos, sugerem que há ali uma cena esperando uma nova arte que a penetre. E às vezes, em meio à imensa destreza e enorme proficiência técnica do cinema, a cortina cai e observamos, ao longe, alguma desconhecida e inesperada beleza. Mas é apenas por um momento. Porque uma coisa estranha aconteceu – enquanto todas as outras artes nascem nuas, esta, a mais nova, nasceu completamente vestida. Pode dizer tudo antes que tenha qualquer coisa a dizer. É como se a tribo selvagem, ao invés de encontrar suas barras de ferro para brincar, encontrasse espalhadas pela costa violinos, flautas, saxofones, trompetes, pianos de cauda de Erard e Bechstein, e começasse, com incrível energia, mas não conhecendo sequer uma nota musical, a martelar e bater neles ao mesmo tempo.


Texto original pode ser encontrado aqui:
http://www.woolfonline.com/timepasses/?q=essays/cinema/full
Traduzido por Yves São Paulo.
A tradução deste texto não foi fácil. Agradeço a Maria Cândida Neres pela revisão.