sábado, 6 de março de 2021

High Sierra, 1941, Raoul Walsh



[atenção, este texto contém revelações da trama do filme]

Roy Earle (Humphrey Bogart) recebe um perdão não explicado vindo diretamente do governador. Qual poderia ser a motivação do governador em conceder tal indulto a um ladrão de bancos convicto, que assim que sair da prisão será levado até seus comparsas para planejar mais um roubo, desta vez de cofre num hotel na costa leste dos EUA?

O roteiro do lendário John Huston, em parceria com o autor do romance que gerou High Sierra não responde a estas questões. O que fica estabelecido desde o princípio é que Roy Earle é um bandido de cara muito bem conhecida por aquelas bandas, e precisa de novos ares para poder atuar.

Passando por uma fazendinha, onde aparentemente cresceu, Roy encosta o carro para sentir o ar e conversar com um homem encostado numa cerca: é a idílica vida no campo. Um menino passa por ali com uma vara de pescar no ombro. Roy pergunta se pegou algum peixe, o menino nega. Algo nessa conversa desperta a memória do homem simples a descansar sob a sombra: sua expressão transtornada indica que Roy tem que partir rapidamente. Não é mais uma cidade onde ele encontraria a paz para repouso, nem sequer para uma conversa rápida sobre qualquer banalidade.

A banalidade é um sonho que Roy busca para sua vida, o típico bandido de coração mole, mas pulso firme na hora de seus trabalhos fora da lei. Assegurado pelo roteiro de Huston, a fuga de Roy em direção à vida do homem comum traduz-se por meio do encontro com uma família de roceiros a mudar de vida. Estão indo junto com a neta para Los Angeles. Percebendo que aquelas pessoas desconhecem por completo seu passado, Roy se aproveita, apresenta-se ao trio apenas como “Collins”. Mais tarde o filme cometerá mais um erro de roteiro ao fazer com que o segundo encontro de Roy com o patriarca da família seja marcado pelo avô chamando-o de “Roy”, o que até então não lhe havia sido dito.

High Sierra se apresenta assim como um filme de fuga, marcante pela cena de perseguição e tentativa de fuga na porção final do filme, mas especialmente por fuga das personagens de suas próprias personas. Mas tal como o cachorro Pard está lá para mostrar, a história de todas elas já estão destinadas a um caminho do qual não podem fugir.

Roy tenta escapar de seu inevitável destino de bandido. Enquanto planeja o roubo e espera para que receba o sinal verde para atacar o hotel, visita a família de Velma apenas para vê-la. Cria para a jovem uma imagem de sonho. Ela seria a moça decente, inocente, que o levaria a uma vida tranquila em algum lugar retirado da realidade atribulada em que vive.

Maria (Ida Lupino) acompanha os bandidos que trabalharão no golpe junto com Roy. Foi encontrada por um deles num salão de danças. Ela não quer voltar para aquela vida, e também não quer permanecer com os homens que a tiraram de Los Angeles. Em Roy ela enxerga essa possibilidade de fuga. Passa a dormir em sua cabana, acompanha-o para o assalto, e fica com ele na fuga. Alimenta o sonho de Roy de finalmente poderem viver uma vida tranquila com o dinheiro do assalto. O último assalto de que tanto falam os bandidos de coração mole dos filmes de roubo.

Velma (Joan Leslie) aparenta ser a boa moça, o sonho da vida tranquila numa casa afastada, de Roy. Desde a primeira vista ela flerta com ele. Raoul Walsh não se furta a mostrar os pequenos movimentos da moça aproximando-se de seu anti-herói. Sem sair do carro em seu primeiro encontro, Velma penteia o cabelo para parecer mais bonita a Roy. No segundo encontro, salta do carro mostrando seu pé (em plano detalhe) manco para que Roy se apiede de sua situação.

Aparências que desmoronam as concepções que as personagens fazem deles mesmos. O durão Roy logo acolhe Marie e o cachorro Pard em sua cabana, nas montanhas, onde seu bando se refugia antes do assalto. Ele paga pela cirurgia de Velma, que tão logo vê o sucesso da operação revela que sua vida não será com Roy: ela quer viver a juventude.

Não há um verdadeiro julgamento do filme quanto à mudança de Velma. Ela recusa Roy, diz que quer viver a vida, dançar toda noite como não pode fazer antes, viajar por aí. Seu avô a abraça, compreendendo-a. Quem não a compreenderia?

Enfim, chega o dia do assalto. Um policial entra no hotel na hora errada. Saca um revólver, atira em Roy, que atira de volta. O policial é morto, os comparsas de Roy morrem quando o carro vira durante a fuga com um sobrevivente: o atendente do hotel, comparsa dos bandidos. Será ele o responsável por entregar a identidade do assassino aos policiais. Não tarda para que a foto de Roy esteja estampada nos jornais da costa leste também, fazendo de seu rosto reconhecível por qualquer um.

Roy recebe a chamada para pegar o dinheiro pela sua parte das joias roubadas. No mesmo momento descobre que seu rosto está estampado nos jornais. Sua cautela é tamanha que faz com que Marie e Pard peguem um ônibus: a matéria do jornal descreve o trio viajando junto. Perante tamanho cuidado, soa implausível a parada de Roy numa tabacaria para comprar cigarros, a caminho de pegar seu dinheiro. Obviamente, seu rosto é prontamente reconhecido, iniciando a perseguição final.

Esta é uma das cenas mais memoráveis dos filmes de assalto. O carro de Roy corre por estradas de terra, levantando poeira, sendo acompanhado por motocicletas e carros da polícia. Os veículos sobem perigosamente ligeiros por pistas de colinas. A câmera é posta em pontos chave para mostrar o perigo de toda operação. Errar o cálculo por pouco e o carro pode escapulir da estrada, sendo engolido pelo precipício.

A rapidez da ação não dá tempo para tanta preocupação com carros perdendo seu caminho. Não estamos a ver um daqueles filmes em que o bandido possui todos os recursos enquanto carros policiais batem em tudo, explodem, caem de ribanceiras.

A história de Roy Earle está toda desenhada para que seu final seja tão cerrado quanto o topo da montanha onde ele se refugia. Tentando escapar da polícia pelo único caminho que lhe parecia possível, a personagem de Bogart também se encurrala num caminho sem volta.

A estrada termina e ele não tem para onde correr senão subir a montanha com armas em punho. Consegue um bom lugar onde ficar entrincheirado, de onde pode atingir os policiais em sua perseguição, mas não pode ser atingido. Lá ele fica por uma noite inteira, sendo procurado por holofotes que asseguram sua manutenção no mesmo lugar (esta sequência certamente teve alguma influência na perseguição da montanha, em Contatos imediatos do terceiro grau).

Ouvindo a história do bandido cercado na montanha, Marie desce do ônibus e vai até o sítio do confronto com Pard. Um jornalista identifica-a, é a mulher que acompanhava Roy Earle. A polícia a mantém sob custódia, para que ela convença Roy a se entregar, mas ela recusa. Serão os latidos do cachorro que farão a identificação da presença de Marie na montanha, desguarnecendo Roy de seu lugar de segurança.

Desarmado, Roy é alvejado por um atirador de elite. Encontra sua liberdade uma vez que reconhece a incapacidade de experimentá-la a fundo enquanto estiver debaixo desta persona. Seu rosto é conhecido por todos, sua figura de durão, de bandido nunca o abandonarão. Marie e o cachorro são a desculpa para que a vida idílica buscada por ele finalmente se concretize de modo radical através da morte – num sentido cristão, seria sua verdadeira libertação, por meio do amor encontrado em Marie e Pard.

A imagem final de Roy é velada por Walsh. Seu corpo desceu rolando pelas pedras até parar junto a um arbusto seco. Não vemos seu corpo da cintura para cima, apenas suas pernas. Este é o princípio do processo de liberdade definitiva de Roy Earle, o abandono da imagem batida do bandido, da identidade de fora da lei que o perseguiu de costa a costa do país.

Tal como a pergunta esdrúxula de Patricia Franchini perante o corpo de seu amante morto ao final de Acossado (qu’est ce que c’est déguéulasse), Marie pergunta ao jornalista “what does it mean when a men crashes out?”, desta vez recebendo uma resposta: significa que ele está livre, responde o jornalista.

Curioso encontrar nos cabelos de Marie o laço que em Velma eram sinal de sua inocência. Marie, chorando o amante morto, é inocentada pelo liberto. As máscaras finalmente caem, revelando a candura da maldade.