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segunda-feira, 1 de agosto de 2016

André Bazin - Uma grande obra: Umberto D


"A elipse é um processo de narrativa lógica e portanto abstrata; supõe análise e escolha, organiza os fatos conforme o sentido dramático ao qual eles devem se submeter. De Sica e Zavattini procuram, ao contrário, dividir o acontecimento em acontecimentos menores e estes em acontecimentos menores ainda, até o limite de nossa sensibilidade pela duração. Assim, a unidade-acontecimento num filme clássico seria o "despertar da empregada": dois ou três planos breves seriam suficientes para significá-lo. A essa unidade narrativa, De Sica substitui uma sequência de acontecimentos menores: o despertar, a travessia do corredor, a inundação das formigas etc. Observemos, porém, mais um deles. Vemos o fato de moer café se dividir, por sua vez, numa série de momentos autônomos, como o fechar da porta com a ponta do pé esticado. Quando a câmera segue, aproximando-se dela, o movimento da perna, serão as apalpadelas dos dedos dos pés na madeira que se tornarão finalmente o objeto da imagem."

[publicado em O que é o cinema, afinal?, Cosac Naify, tradução: Eloisa Araújo Ribeiro, p. 351-352]

segunda-feira, 7 de março de 2016

Teses sobre o neorrealismo

por: CESARE ZAVATTINI


            Sem a menor dúvida, nossa reação primeira e mais superficial a respeito da realidade cotidiana é de tédio. Tanto que não deixando de nos superar e a superar nossa derrota intelectual e moral, a realidade nos parece desprovida de todo interesse. Não deixa de surpreender que o cinema tenha sempre sentido naturalmente e quase inevitavelmente a necessidade de uma “história” a ser inserida na realidade, a fim de render a paixão, espetáculo. É evidente que se poderia evadir o campo da realidade como se nada pudesse fazer na intervenção da imaginação.
            A característica mais importante do neorrealismo, sua novidade essencial, me parece ser a descoberta que a necessidade da história não é mais que uma maneira inconsciente de apontar um defeito humano, e que a imaginação, sendo ela exercida, não faça mais que supor esquemas mortos aos fatos vivos socialmente.
            Em substância, percebemos que a realidade é extremamente rica: é preciso somente saber observá-la. E que a tarefa do artista não consiste em levar o espetador a se indignar e a se mover pelas transições, mas refletir (e, se quiser, até mesmo se indignar e se mover) sobre coisas que ele faz e que os outros fazem, sobre a realidade tal como ela é precisamente.
            De uma falta de confiança inconsciente e profunda na observação da realidade, de uma evasão ilusória e equívoca, é passada uma confiança ilimitada nas coisas, nos fatos, nos homens.
            Esta tomada de posição exige naturalmente a necessidade de escavar, de dar à realidade esta pulsação, esta faculdade de comunicar, estas reflexões que, justamente no neorrealismo, não se crê que ela possa possuir.
            Já foi escrito que a guerra foi a pedra angular do neorrealismo. Este fato enorme abala a alma dos homens e, cada um a sua maneira, os cineastas ensaiaram transpor no cinema esta emoção grandiosa. Por nós, Italianos, a guerra nos pareceu particularmente monstruosa, porque não vimos nenhuma razão para dela participar, tínhamos muitas razões para não participar. Mas não foi por uma revolta limitada a esta guerra: era qualquer coisa a mais, era a revelação absoluta, diria ainda eterna, de que a guerra ofende as necessidades fundamentais e os valores humanos que nos são tão caras: e esta revelação, a meu ver, era o ponto de partida de um vasto movimento humano. Poderiam me dizer que esta revelação não é um privilégio da Itália. Creio que sim. Nesta quantidade de gente designadas como defeitos de nosso povo, e que são ao contrário suas virtudes – a carência social aparente, o individualismo, etc... – podemos encontrar as razões de uma vocação, a razão plena e apaixonada contra a injúria suprema que é a guerra. E este não é o homem histórico que reage, o homem abstrato dos livros situado em uma trajetória sem fim de datas, que são as datas das guerras passadas, presentes ou futuras, mas o homem mais profundo e secreto. Você poderia objetar que o homem histórico e o homem epíteto coabitam continuamente: admitimos, mas eles coabitam utilmente quando, pelo princípio dos vasos comunicantes, eles tendem a ocupar o mesmo nível, primeiro com sua consciência, e segundo com sua necessidade original de viver. A necessidade de viver, quando é rico e feliz pode melhor atravessar seus limites que ele escolhe, porque em ultimo caso, um povo decadente não pode trazer a menor contribuição à humanidade. Ouso pensar que outros povos, mesmo depois da guerra, continuarão a considerar o homem enquanto matéria histórica, determinado em seu movimento, mesmo fatal, e que é o porquê não nos dão um cinema de libertação, como começou a fazer o cinema italiano: este que por eles, justamente, tudo continuou, enquanto que por nós começou; por eles, a guerra foi uma das guerras que afligiram nosso planeta, por nós ela teria sido a ultima guerra. Poderiam eles ser a consequência de suas descobertas, o ímpeto dos pioneiros, novidade não porque jamais conhecida anteriormente, mas porque jamais de uma maneira também coletiva e tenaz? As consequências são estas que veremos abrir a nossa frente um estudo sem fim de como o homem provocou e sustentou a guerra. Esta é a necessidade de conhecer, de ver como estes eventos terríveis puderam acontecer, e o cinema é o meio mais direto e mais imediato para este tipo de exame, melhor que os outros meios de cultura; a linguagem destes últimos não está próxima de exprimir nossas reações contra as mentiras das velhas ideias gerais, como nós nos encontramos vestidos ao momento da guerra e que nos encontramos impedidos de tentar a menor revolta.


            Este desejo pulsante do cinema de ver e de analisar, esta fome de realidade, é de qualquer forma uma homenagem concreta aos outros, a tudo que existe. E, entre outras coisas, é isto que distingue o neorrealismo do cinema americano. Com efeito, a posição dos americanos é antípoda à nossa: eis que somos solicitados pela realidade que nos toca, que queremos conhecê-la diretamente e a fundo, os americanos continuam a se contentar com um conhecimento adocicado, através das transposições.
            Eis porque, se podemos falar, pela américa, de uma crise temática, esta crise é impossível entre nós. Não pode haver carência de temas entre nós, porque não há carência de realidade. Qualquer a hora do dia, qualquer lugar, qualquer pessoa, pode contar se for contado de tal modo que revele um modo de destacar os elementos coletivos que os formem continuamente.
            Eis porque não se pode falar de crise de temas (os fatos) mas, o caso aplicável, de crise de conteúdos (a interpretação destes fatos).
            Esta diferença essencial foi bem sublinhada por um produtor americano que me disse: - Entre nós, a cena de um avião que passa é concebida de certa maneira: uma avião passa... tiros de metralhadora, ... o avião cai. Entre vocês: um avião passa... o avião passa novamente... o avião passa uma terceira vez.
            É perfeitamente verdadeiro. Mas ainda é pouco. Não é suficiente fazer o avião passar três vezes, é necessário fazê-lo passar vinte vezes.     
           Nós trabalhamos para expulsar as abstrações.
           Em um romance, os protagonistas são os heróis; o sapato do herói era um sapato especial. Nós, ao contrário, procuramos encontrar o que nossos personagens têm de comum: em meu sapato, no seu, no do rico, naquele do trabalhador, encontramos os mesmos elementos, o mesmo trabalho humano.
            E chegamos ao estilo. Em outras palavras, como faremos para exprimir cinematograficamente esta realidade? Eu repetiria antes, como já disse, que o conteúdo exprimido possui sempre sua própria técnica. Caso contrário, há imaginação, mas sob a condição que ela exerce na realidade e não nos limbos. Mas, o que compreendo bem, não daria a acreditar que os fatos diversos sejam por mim os únicos fatos que contam. Ensaiei de fixar minha atenção sobre fatos diversos, na intensão de reconstituir da maneira mais fiel, em me servindo de um pouco de imaginação que pode vir do conhecimento perfeito do próprio fato. Será evidentemente mais coerente que as câmeras surpreendam ao momento mesmo em que eles chegam – e é minha intensão, quando realizo um filme meu em Itália. Bem entendido, não se pode jamais esquecer que todo relato da coisa que vá comunicar implica em uma escolha e, por consequência, o ato criativo do sujeito: mas o sujeito é composto de qualquer tipo no local, ao invés de ser uma reconstituição sucessiva. É isto que chamo de cinema de reencontro. Este método de trabalho deveria conduzir, a meu ver, a dois resultados: antes, ao que concerne ao ponto de vista ético, os cineastas sairão, buscarão o contato direto com a realidade: de outro modo, criaríamos uma produção que traria a novidade de uma consciência coletiva. Porque o nome joga também: se fazemos 100 filmes por ano que se inspirem neste critério, mudaremos os relatórios de produção se não fazemos mais que três, nos submetemos aos relatos das produções tais quais existem hoje.


            A tomada de consciência da realidade que caracteriza o neorrealismo possui duas consequências no que concerne à construção de um roteiro estritamente narrativo:
1) Um cinema que de outra forma contava um fato de onde provinha outro, depois um terceiro, e assim sucessivamente, cada cena era concebida e feita para ser imediatamente obrigada; hoje, quando imaginamos uma cena,  sentimos a necessidade de “permanecer” nesta cena, porque sabemos que ela possui todas as possibilidades de repercutir mais além. Podemos dizer tranquilamente: dê-nos um fato qualquer e nós conseguiremos transformá-lo em espetáculo. A força centrífuga que constitui (mais do ponto de vista técnico do que do ponto de vista moral) a característica fundamental do cinema é transformada em força centrípeta;
2) ainda que o cinema tenha sempre contado a vida em seus fatos mais exteriores, o neorrealismo afirma hoje que ele não pode conter a alusão, mais terna da análise. Ou mais ainda de uma síntese ao interior da análise.
            Daremos um exemplo: a aventura de dois seres que buscam um apartamento. Ainda que uma vez tenhamos colocado como ponto de partida, tomando em consideração o simples pretexto exterior que ele comporta, para passar imediatamente a outra coisa, hoje se pode afirmar que o simples fato de buscar um apartamento deveria constituir todo o tema de um filme, se, bem entendido, este fato estiver escancarado em todos os momentos, com todos os ecos e os reflexos que derivam.
            Compreendemos facilmente que estamos ainda longe da verdadeira análise; podemos falar simplesmente da análise por oposição da síntese grosseira da produção corrente. Por enquanto, não conhecemos mais que uma “atitude” analítica, mas já esta atitude comporta a pulsação movente nas coisas, um desejo de compreensão, de adesão, de participação, e somando tudo, de coabitação.
            Este princípio de análise se encontra na consideração sobre estilo, em seu sentido mais estrito, e oposto à síntese burguesa. A síntese burguesa permitiu encontrar o melhor alimento, a parte selecionada da rede: os cineastas depenam os aspectos mais representativos de uma situação de bem-estar e de privilégio. Ora, para precisar criticamente o alcance do neorrealismo, é preciso sublinhar a parte que leva sempre mais largamente à cultura italiana (e não pode ser de outra maneira, sendo dada a colaboração de mais e mais escritores realistas à criação cinematográfica). Quanto a esta colaboração – que não deve se confinar a oferecer romances, mas que deve contribuir para enriquecer a linguagem cinematográfica, tão rica de possibilidades quanto a linguagem literária, – não há dúvida de que deveria fazer grandes progressos ao cinema, pelo pouco que os escritores se interessam de maneira menos “provisória” que aqueles que o fazem por hábito.
            Disto tenho dito, o neorrealismo, contrariamente ao que foi feito na época da guerra, entendeu que o cinema deve contar pequenos fatos, sem introduzir a menor imaginação, se esforçando por analisar o que seja humano, histórico, determinante e de definitivo.
            Creio mais firmemente que o mundo continua a ir mal porque não conhece a realidade: e a tarefa mais autêntica de um homem de hoje consiste em se engajar para resolver o melhor que puder o problema do conhecimento da realidade. Eis porque a necessidade mais urgente de nosso tempo é a atenção social, mas esta atenção deve ser direta, como já disse, e não se manifestando através de apologias mais ou menos bem sucedidas. Um faminto, um humilhado, faltam ser mostrados com seus nomes e sobrenomes, e não contar uma história onde há um faminto e um humilhado, porque a este momento tudo muda, tudo é menos eficaz, menos moral.


            A verdadeira função de todas as artes sempre foi aquela de exprimir as necessidades de seu tempo; e é a esta função que queremos trazer de volta.
            Ora, algum outro meio de expressão possibilita como o cinema, fazer conhecer as coisas rapidamente e ao máximo de pessoas...
            ...É natural que estes que tenham compreendido as coisas, bem que ainda obrigados por todos os tipos de razões (umas válidas, outras não), de compor histórias “inventadas” segundo a tradição, buscaram introduzir nestas histórias quaisquer elementos que tenham descoberto.
            Eis o que foi efetivamente o neorrealismo na Itália, através de alguns homens.
            Paisà, Roma, cidade aberta, Ladrões de bicicleta, Terra trema, são filmes que contém passagens de uma significação total e que se inspiram na possibilidade de tudo contar; mas, de certo sentido, eles comportam ainda transposições, porque contam uma história e não aplicam simplesmente o espírito documental. Em certos filmes como Umberto D., o fato analisado é bem mais evidente: mas o quadro é aquele do conto habitual, e nós ainda não estamos no verdadeiro neorrealismo.
            O neorrealismo é hoje uma armada pronta para se por em marcha. Os soldados estão prontos atrás de Rossellini, Sica, Visconti. O que os fará partir para o assalto: é somente então que a batalha poderá ser ganha.
            Mas o que importa, é que o movimento começou: ou que vá até o fim, ou que perca uma grande oportunidade, porque em frente ao realismo se trabalham perspectivas mais vastas que tudo que se pode imaginar...
            Transformar em espetáculo os fatos cotidianos da vida não é coisa fácil: se pede intensidade de visão, assim como faz o filme com aquele que o vê. Se agita para dar à vida do homem sua importância histórica em todos os instantes.
            Nisto que concerne outros filmes recentes com os quais colaborei, digo, por exemplo, não tenho com Quando a mulher erra por documento importante de minha carreira de neorrealista, porque o fato da coprodução reduziu a quase nada a inspiração primitiva, que portava o exame de um momento e de um lugar bem determinados.
            Entre meus próximos filmes, Italia mia tem um ponto de partida neorrealista num sentido bem preciso: ele parte da necessidade de conhecer profundamente meu país e de minha confiança absoluta nos encontros que faria. Os “aspectos” do neorrealismo figuram na ideia central de meu “filme enquete”, Amore in Citta (que sai em breve); e diria ainda Siamo donne, ao menos pelo fato que ele reencontra um sentido moral na necessidade de comunicação que inspira as estrelas que se confessam ao público. Em presença destas confissões, o espectador deve se libertar do complexo de inferioridade que experimenta frente ao mito da estrela.


            Foi colocada todos tipos de acusação contra o neorrealismo. Aqui as principais:
1)O neorrealismo descreve unicamente a miséria
O neorrealismo pode e deve estudar a miséria como a riqueza; começamos pela miséria simplesmente porque ela é uma das realidades mais vivas de nosso tempo: desafio qualquer um a me demonstrar o contrário. Creia ou finja crer que antes de uma meia-dúzia de filmes sobre a pobreza o tema já esteja esgotado é um grande erro. O tema da pobreza (os ricos e os pobres) é um daqueles ao qual se pode dedicar durante toda uma vida. Nós apenas começamos. E se os ricos fecham as caras perante Milagre em Milão, que é uma fábula, eles verão melhor. Coloco-me, eu mesmo, entre os ricos: o que há em nós os ricos, não é somente a riqueza com dinheiro (o dinheiro que não é senão o aspecto mais suntuoso e o mais aparente), mas todas as formas de injustiça e violência que fluem. Não existe uma posição “moral” do homem que dito rico.
            2) O neorrealismo não oferece soluções, não mostra rotas novas: as conclusões dos filmes neorrealistas são absolutamente evasivas.
            Respondo esta acusação com todas minhas forças. Cada momento de um de nossos filmes é uma resposta contínua a interrogações. Quanto às soluções, não é do artista como tal as considerar: ele simplesmente, e já é muito, faz sentir a necessidade e a urgência.
            3) Os fatos não interessam a ninguém, nem constituem um espetáculo
            Quando contornamos a análise do “fato qualquer”, os cineastas não obedecem os desejos mais ou menos expressos dos fundos capitalistas do cinema e do próprio público, sucumbindo a uma espécie de preguiça, porque a análise de um fato é sempre mais difícil de efetuar que a enumeração de um único arquivo de um fato antes de outro. Em outras palavras, este problema de aprofundamento que contornam os cineastas.
            O verdadeiro cinema neorrealista torna-se naturalmente um cinema menos caro que o cinema atual porque seu conteúdo pode ser exprimido mais economicamente. A consequência mais importante é que ele pode se libertar assim do capitalismo. De fato, todas as artes buscam se exprimir pelo meio mais econômico: mais uma arte é moral e menos ela implica em custos. A imortalidade social do cinema vem de seu preço elevado. O cinema ainda não encontrou sua moral, sua necessidade, sua qualidade, porque custa muito caro.
            Temos a ilusão, – chame assim, se quiser, – que conosco começa algo de diferente. Com efeito, o homem que sofre à minha frente é absolutamente diferente do homem que sofreu há cem anos. Concentro toda minha atenção no homem de hoje. E a bagagem histórica que carrego comigo, e que além disso eu não faria – e nem poderia – me libertar brutalmente, e nem devo me impedir de ser tudo ao meu desejo de emancipar este homem de seu sofrimento em me servindo de meios dos quais disponho. Este homem (é uma de minhas ideias fixas) tem um nome e sobrenome, pertence à sociedade que também nos concerne sem erro possível: sinto sua fascinação, de modo que sinto de modo premente, que sou obrigado a falar dele, dele e não de uma personagem inventada, porque a este momento a imaginação se interpõe entre a realidade e eu...
            ...Me é muitas vezes pedido para explicar porque os atores são impedidos de atuar no cinema: digo que os atores devem atuar no cinema, mas que eles não têm grandes coisas a fazer com o neorrealismo. O cinema neorrealista não demanda aos homens verem os atores profissionais; suas habilidades profissionais têm à sua profissão homens, que eles dotam da consciência mais profunda. Mas é evidente que esta consciência não pode ser criada ou reforçada através do conhecimento que farão eles próprios e outros, conhecer o que é melhor alcançado pelo cinema neorrealista.
            Mas então, me dirão, como e quando intervém a imaginação? Ela se agita de uma imaginação particular e de um novo método a ser utilizado.
            Aqui um exemplo: uma mulher vai até o sapateiro comprar sapatos para seus filhos. Estes sapatos custam 7.000 liras. A mulher procura pagar-lhe menos.
            A cena dura dez minutos. E acontece se eu fizer um filme de dez horas. Como? Analiso o fato em todos os seus elementos constitutivos, o que vem antes, o que vem depois, e o que se passa entre tempos.
            A mulher procura os sapatos: o que faz seu filho durante este tempo? Que se passa na Índia, que possa ser relacionado com um par de sapatos?
            Os sapatos custam 7.000 liras, como eles chegam às mãos desta mulher, o problema do custo que lhes impõe, o que eles representam para ela?
            E o sapateiro que vende os sapatos, quem é ele? O que acontece entre estes dois seres? Ele também tem dois filhos para alimentar, com quem conversar. Você quer entender a conversa deles? Eis então.
            E assim sucessivamente. Vamos ao fundo das coisas, de mostrar as relações entre os fatos e o processo de onde nascem os fatos. Se analisamos o tipo de “achado de um par de sapatos”, veremos em nossa frente um mundo complexo e vasto, rico em peso e valor, nestes motivos práticos, sociais, econômicos, psicológicos. O banal desaparece, porque não existe.
            Sou contra as personagens excepcionais, os heróis, sempre experimentei um ódio instintivo a seu respeito. Me sinto ofendido por sua presença, excluído de um mundo ao mesmo tempo que milhões de outros seres.
            Somos todos personagens. Os heróis criam complexos de inferioridade nos espectadores. É chegado o momento de dizer aos espectadores que eles são os verdadeiros protagonistas da vida. O resultado será uma constante recordação da responsabilidade e da dignidade de cada ser humano. Tal é a ambição do neorrealismo: fortalecer todo o mundo, dar a cada um a consciência que ele é humano.
O termo neorrealismo, em seu sentido mais amplo, implica na eliminação da colaboração técnico-profissional, cumprindo a do roteirista.
Nos manuais, nas gramáticas, a sintaxe não possui um sentido, não mais que os conceitos primeiro-plano, contracampo, etc...
Cada um de nós faz roteiro a seu modo. O neorrealismo rompe os esquemas, rejeita todos os dogmas. Ele não pode possuir primeiro-plano ou contracampo a priori.
O tema, a adaptação, a realização não devem ser três fases distintas de um mesmo trabalho: são hoje, mas é uma anomalia.
O roteirista e o adaptador devem desaparecer: chegará um autor único, o realizador, que terminará por não ter nada de comum com o diretor de cena do teatro.
Tudo torna-se móvel, qualquer fato em seu filme, tudo é continuamente possível, tudo é pleno de possibilidades infinitas, não somente durante a filmagem, mas mais ainda durante a montagem, a mixagem, etc...
Depois de 1934 passei a trabalhar para o cinema italiano, e sei que ajudei a destruir alguns esquemas habituais. Se me coloco entre alguns que creem no neorrealismo como um chamado poderoso que podemos endereçar às coisas, não é uma falha de imaginação, porque, ao contrário, me retenho a duas mãos para não ser arrastado pela minha imaginação. A imaginação no sentido tradicional, vendo: o neorrealismo exige de nós que nossa imaginação se exerça in loco, sobre o atual, porque os fatos não revelam sua força imaginativa natural quando eles são estudados e aprofundados. Eis porque eles devem ser espetáculo, porque são revelação.

E sei bem que se pode fazer filmes maravilhosos como aqueles de Charles Chaplin, e que estas não são obras neorrealistas. Sei bem que existem americanos, russos, franceses, e assim em diante, que fazem obras-primas honrando a humanidade: eles certamente não estão estragando a película. E Deus sabe bem que obras magistrais ainda nos serão dadas, seguindo seu gênio, e com estrelas, filmadas em estúdios, a partir de romances. Mas os homens do cinema italiano, por conservar e buscar seu estilo e inspiração, depois de ter entreaberto corajosamente as portas da realidade, devem agora, creio, trabalhar grande.

(originalmente publicado em Cahiers du Cinéma, março de 1954, n° 33, p. 24 - 31)

sábado, 12 de dezembro de 2015

Eu nasci, mas... (meninos de Tóquio) de Yasujiro Ozu (Umarete wa mita keredo, 1932)


A infância, para muitos autores de cinema, se constitui de um período de anarquia em que o sujeito em formação adota em seu comportamento atitudes que não são cabíveis dentro da sociedade em que se encontra inserido. A rebelião de Zero de conduta, de Jean Vigo, serve de exemplo a esta afirmação. As crianças são enquadradas, com o tempo, nos moldes sociais construídos pelos adultos, como se isso fosse o meio mais correto de convivência uns com os outros - sabemos pelo cotidiano que não é, ainda assim insistimos nesta fórmula por agradar alguns. Crescendo, aceitamos tais ditames por um misto de conformismo e comodidade - lutar contra tudo isso não é fácil. Vigo, em seu filme, põe as crianças para gritarem contra estes moldes sociais que lhes tiram a imaginação e a capacidade de serem pensantes para que se tornem somente parte do gado humano. Mas este é um lado bem próprio do pensamento anarquista famoso de Jean Vigo.

Por outro lado temos um filme como Eu nasci, mas..., de Yasujiro Ozu. O cineasta japonês não é um famoso anarquista. Muito pelo contrário, seu posicionamento político nunca ficou muito claro. Será que Ozu defendia alguma bandeira ideológica? É possível que sim. O que sabemos é que seus filmes apresentam sempre a transição na vida das pessoas. Como bem captura Wim Wenders em Tokyo-Ga, a imagem recorrente dos trens nos filmes de Ozu é esta metáfora. O trem é o que nos leva de um espaço a outro, o filme de um momento a outro da vida de um personagem. Neste Eu nasci, mas... temos uma obra ainda do período mudo do cineasta.


Dois irmãos, acompanhando o movimento dos pais, se mudam para Tóquio e chegam a uma nova vizinhança. As crianças da vizinhança já estão bem dispostos em um grupo hierárquico que toma como figura central um garoto brigão, que nem todos querem encarar por ser maior do que todos eles. Um dos dois irmãos, comendo um pão e brincando com um aparelho, tem seu primeiro contato com este grupo. Ameaça entrar numa briga com o garoto mandão, mas sai chorando assim que leva o primeiro golpe. Dá-se aquilo que parece ser o modelo mais primitivo de vida em sociedade: a violência. O mais forte é quem comanda, e os outros, por medo, obedecem.

O garoto chama seu irmão, não muito mais velho, não muito maior que ele, mas um tanto mais corajoso. O menino enfrenta o manda-chuva local, mas não vai muito mais longe do que isso. No dia seguinte, os dois recuam e não entram na escola ao ver, no pátio, o garoto que os ameaçou. Este medo que as crianças sentem deste garoto mais forte que estuda na mesma turma que eles fomenta uma admiração tardia. Na sala de aula, em meio a um ditado do professor, o manda-chuva quebra um ovo de pardal na mesa e come o seu conteúdo ainda cru. Os meninos fazem a sua caça na mesma tarde imaginando ser aquele o segredo que deixa o brigão, forte.


Os meninos pensam em seguir os seus passos. Seu pai lhes diz para serem importantes, e quando criança para ser importante é ser forte. É ter a capacidade de brigar com aquele garoto que os chama para briga e derrotá-lo. Mas eles somente conseguem tirar este garoto de lado quando surge um menino mais velho e maior que desfaz este comportamento do garoto brigão.

Estudam para tirar boas notas, e até fingem as boas notas para agradar os pais. Principalmente o pai que os acompanha por boa parte do caminho falando o quão bom aluno era, de como tirava sempre boas notas, e de como é importante estudar para se tornar alguém importante. Frente a esta propaganda, as crianças veem em seu pai uma figura impressionante. Mas, assim como nos mostra Ladrões de bicicleta, chega o dia fatídico em que encaramos nosso pai como ele realmente é, não como o ser perfeito que idealizamos em nossos primeiros anos, e sim enquanto o ser falho que ele realmente é. Numa exibição de um filme da companhia em que o pai trabalha, os meninos têm a grande revelação de que a fala de seu pai não queria dizer a verdade. Nas imagens projetadas na tela, os meninos veem que o pai é um puxa-saco dos chefes.


As crianças descobrem a grande injustiça da sociedade dividida em classes, e como é realmente estar por baixo. Viam-se por baixo do garoto mais forte, mas ainda assim alimentavam a ideia de poder estar por cima por meio dos estudos. O que escutam do pai lhes joga um balde de água fria. Mesmo que estudem, pode ser que não venham a ser alguém importante. Transformarem-se num simples funcionário como o pai é para o pai de um de seus amigos. É a primeira visão da criança do mundo em que vivem, e o viver um dia após o outro não é outra coisa senão o conformar.

O pai encontra no caminho da escola o chefe que também leva seu filho. Envergonhado, o pai para na estrada na tentativa de evitar o confronto com o homem. Os filhos, já tendo compreendido a situação do pai, insistem para que ele vá falar com o homem. As crianças pautam a sua relação com o menino filho do chefe. Com ele, tratam de manter a sua superioridade numa brincadeira que obriga seu parceiro a deitar no chão de terra. Mas enquanto criança, vai tudo bem, e assim eles se abraçam. A organização da vida em sociedade é injusta, pondo uns sobre os outros. A uma primeira visão o filme, Ozu pode nos parecer conformista, colocando os meninos filhos do empregado junto ao filho do patrão, quando na verdade ele foge daquele final de 1900, de Bertolucci. Ao invés de permanecer nesta luta eterna, por que não juntarem-se todos? Mais uma vez é por meio do olhar da criança que o cinema encontra a resposta para o mundo dos adultos. E teimamos em acreditar que é só coisa de criança.


Mas será que Ozu coloca este final em seu filme ou somos nós quem o inserimos no filme? Se analisarmo a mise-en-scène de Ozu, vemos um cineasta preocupado filmar determinadas personagens. A câmera fixa não invade o espaço de seus personagens, não insere naquela realidade uma visão bem perspectivista que nos provocaria a produção de uma conclusão fácil, como os filmes tese de Eisenstein. Ao manter sua câmera fixa, Ozu simplesmente diz à realidade para que ela se sobressaia de toda aquela encenação fictícia. Numa formulação mais filosófica, de que a duração do mundo seja desvelada pela câmera de filmar. Ao fim, o que podemos afirmar de seu filme é o retrato de uma passagem dentro da infância. Em Eu nasci, mas... não há o fim da infância, mas de uma fase da infância, um momento da infância em que o mundo é fantasiado. As crianças, assim como a câmera de Ozu, deixa de enxergar a fantasia para ver a realidade, mas com a esperança de que eles possam fazer diferente.

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Travelling enquanto questão moral: um estudo em três partes

As próximas três postagens serão uma continuação. Cada uma delas caminha em sentido comum: a discussão da moral cinematográfica não enquanto conteúdo, mas levando em consideração principalmente a forma do filme. Separadas podem não fazer tanto sentido quanto fariam juntas. 
A problemática aqui levantada em três partes parte de um artigo publicado ainda este ano.

INTRODUÇÃO

Quando do lançamento de Hiroshima, meu amor (RESNAIS, 1959), Jean-Luc Godard – cineasta explosivo, crítico propenso à criação de aforismos – desenha a fórmula preciosa para os formalistas do cinematógrafo: travelling é uma questão de moral. Poderia ser uma das tantas frases do diretor de Acossado que passariam em branco, não fosse o uso feito dela pelo crítico e futuro cineasta Jacques Rivette em 1960. Sua crítica sobre Kapò (1959), de Gillo Pontecorvo, pouco se referia ao malfadado filme, mas ainda assim era o suficiente para fazer com que gerações inteiras de cinéfilos sentissem seus estômagos darem voltas devido às náuseas provocadas por um movimento de câmera. Sim, um movimento de câmera! No presente estudo, faremos uma discussão sobre o uso do travelling do cinema e questionamento sobre a moral do cineasta ao utilizá-lo. A questão trespassa o simples movimento de câmera e chega às formas de representação cinematográficas. Veremos que a moral não é somente uma questão de conteúdo, é também uma questão estética.

SOBRE TRAVELLING

Antes de começarmos qualquer discussão, expliquemos o que é um travelling para aquele leitor pouco familiarizado com a linguagem cinematográfica. Travelling consiste em um movimento em que a câmera deixa um ponto físico no cenário e passa a mover-se pelo mesmo sob a guia do diretor (MARTIN, 2011, p. 47). Exemplo: João, herói de nosso filme hipotético, espera ansiosamente por seu ônibus. Estica o pescoço para tentar enxergar melhor, num ato que claramente demonstra seu nervosismo e ansiedade. A câmera, neste momento, move-se para o lado e segue em direção a um ladrão que está localizado poucos metros atrás de João. Cria-se o suspense. O espectador sabe da presença do ladrão, mas o protagonista da história o desconhece. Sabemos, porque a câmera deixou o seu ponto fixo no cenário (em frente a João) e nos mostrou que algo está a ameaçá-lo.

Um movimento como o travelling possui algo de mais significativo do que possa parecer. Para a história do cinema, a câmera que percorre os cenários transforma-se em agente ativo frente à representação fílmica e não mais possui a passividade de outrora. Nos primórdios do cinematógrafo, a câmara de cinema permanecia parada – como um “regente de orquestra” como costumeiramente é chamado – em frente ao cenário simplesmente observando aqueles corpos ágeis que interagiam para seu deleite. O cinema consistia de um teatro filmado. Em 1896, como que por acidente, um dos cinegrafistas a serviço dos irmãos Lumière – inventores do cinema – cria o travelling ao filmar o casario histórico de Veneza a bordo de uma gôndola (MARTIN, 2011, p. 32). Este papel de agente ativo referido acima, diz respeito a um cinema mais consciente de sua condição de cinema: reconhece seus modelos de representação e trabalha sobre eles para moldar o espetáculo cinematográfico partindo das ferramentas que tem em mãos, o travelling e o close-up por exemplo. Mas como veremos neste texto, esta consciência de cinema enquanto cinema deve permanecer mesmo para aqueles momentos em que este “ser ativo” do cinema (formador de espetáculo) recue para que dê espaço a um cinema de consciência política.

Travelling é este movimento, que por vezes pode ser envolvo em uma aura de complexidade. Ele é um movimento do qual muito gostam os cineastas de um cinema pop devido á agilidade que ele emprega ao filme. A câmera corre pelos cenários, pelas ruas, entre os carros em alta velocidade, conferindo ao filme um quê de frenético. É também um movimento invasor. Quando a câmera é movida em direção a um rosto ela disseca muito mais do que a expressão facial do ator: ela apresenta toda a complexidade do sentimento que o personagem está a sentir. Quando ela corre em direção a um pai atordoado com o roubo de sua bicicleta, que confunde um garoto com o ladrão, este movimento traduz a humilhação daquele homem frente à multidão que grita o seu equivoco (Ladrões de bicicleta). Quando em câmera lenta, ele pode exprimir o desejo de um homem por uma mulher (Touro indomável). Em outros casos, ao passear por corredores de um hotel de luxo, ele está a nos apresentar a intricada rede de lembranças da mente humana (Ano passado em Marienbad). E por estes e tantos outros motivos ele, por vezes, pode ser considerado como sendo a síntese do espetáculo cinematográfico. 

sábado, 17 de maio de 2014

Um Condenado À Morte Escapou de Robert Bresson (un condamné à mort s'est échappé ou Le vent souffle où il veut, 1956)


direção: Robert Bresson;
roteiro: Robert Bresson, André Devgny (memórias);
fotografia: Léonce-Henri Burel;
edição: Raymond Lamy;
estrelando: François Leterrier, Charles Le Chainche, Roland Monod.

O cinema de arte sempre nos apresenta algo de extraordinário. São artistas nos apresentando novas formas de ver o mundo ou de enxergar o espetáculo cinematográfico. Os chamados filmes de arte não costumam atrair atenção do grande público nem de encher as salas de cinema quando são lançados. Passam despercebidos pela maioria que não sabe creditar o real valor de tais obras. Mas mesmo assim são grandes obras, sendo elas as responsáveis por podermos utilizar um termo como "espetáculo cinematográfico" como já utilizado neste mesmo parágrafo. São filmes conscientes de ser filmes, mas que possuem uma ambição maior: a de ser cinema. Ou neste caso de ser cinematógrafo.

Robert Bresson é um grande nome do cinema mundial porque fez filmes conscientes de sua condição de filmes, mas que tinham a vontade de ser obras cinematográficas (e que alcançavam seu objetivo). Os grandes nomes não surgem sem motivo. Como diria Jacques Aumont: "todo cineasta francês um pouco interessante deve algo a Bresson". E não só os cineastas franceses possuem este débito, também Michael Haneke já algumas vezes, ao enumerar seus filmes preferidos, coloca uma obra de Bresson. O cineasta francês nem sempre pode se orgulhar desta visão favorável de seu cinema - muitos eram os críticos que não enxergavam com bons olhos os filmes que ele fazia. Mas isto estava prestes a chegar ao fim. François Truffaut foi um dos principais membros daquilo que poderíamos intitular "partido pró-Bresson" e que enxergava e provava em suas análises a arte do cinema de Bresson.


Como constantemente acontece ao cinema de arte, os primeiros filmes de Bresson não foram bem sucedidos. Os distribuidores não acreditam nos filmes de arte, nem o público - que em grande parte enxerga no espetáculo cinematográfico somente um meio de entretenimento (e a arte nem sempre é para ser divertida). A distribuição de seus filmes não são bem feitas o que interfere no sucesso das mesmas. Logo após o lançamento de Diário de um pároco de aldeia, Bresson desenvolve alguns projetos, mas nenhum deles é financiado. Passa, assim, cinco anos sem lançar nenhum filme nos cinemas. Neste meio tempo, o Centro Nacional de Cinematografia (CNC) desenvolve algumas formas de financiamento, além de prêmios para obras de pretensões mais artísticas e empresas em nascimento. É graças a um destes prêmios que Bresson consegue viabilizar a produção de seu próximo filme: Um condenado à morte escapou

O filme é produzido e distribuído graças a um prêmio que recebe da CNC. O prêmio lhe permite um lançamento digno o que lhe possibilita alcançar o sucesso de público. Foi um grande choque para o cinema francês o sucesso do filme de Bresson. O público poderia se interessar por um filme que não visasse somente a agradá-lo, que tivesse algo a dizer, e que rompesse com a estrutura tradicional da forma do filme. O que realmente é necessário é uma distribuição que apresentasse (e não o mantivesse nas trevas como costuma ser feito até hoje) o filme, que possibilitasse a sua exibição em diversas salas. Esta será uma lição importantíssima para a geração nouvelle vague que acompanhava o desdobramento do cenário cinematográfico francês com olhos atentos.


Quanto ao filme: Bresson parte de um ponto que já era trabalhado com sucesso pelo cinema italiano, a exemplo de Umberto D., que era o uso de atores não-profissionais nos filmes (incluindo protagonistas). Os atores costumam criar uma realidade própria, que se assemelha à realidade que vivemos, mas que não é ela. A proposta de Bresson ao utilizar estes não-atores era o de fugir deste mundo de "realidade ficcional" tão comum de ser encontrada no cinema. Ele forçava seus atores a perderem qualquer maneirismo e que agissem com maior simplicidade possível, sem caretas ou alteração exagerada no tom de voz. É assim que Bresson guia seu elenco liderado por François Leterrier, que aqui é Fontaine, o preso que escapou e agora nos conta sua história.

Outra característica da teoria de Bresson que se apresenta neste filme é a separação entre som e imagem. O cineasta, um dos poucos a teorizar o som no cinema, propõe que a trilha de sons e imagens não devem nada uma à outra, sendo que a construção de cada uma deve ser feita à parte. Assim, Um condenado à morte escapou surge como um filme narrado por inteiro pelo protagonista que nos conta a história de sua fuga enquanto as imagens nos mostram o que suas palavras expressam. Mas em determinados momentos a palavra não é o suficiente para dizer o que o personagem está a fazer, e as imagens dominam o filme. Em outros momentos a palavra já apresenta o que as imagens já dizem, dando muito mais informações ao espectador. 


Devido ao processo de desdramatização utilizado por Bresson, suas imagens tornam-se incapazes de mostrar o subjetivo de seus personagens de maneira tão simples como acontece para a maioria dos cineastas - que por vezes abusam do close-up para desnudar as emoções de seus personagens - e por isso a trilha sonora com a narração do protagonista vem tão bem a calhar, dizendo-nos o que sentia ele em determinados momentos durante o processo de planejamento e execução de fuga. 

sexta-feira, 9 de maio de 2014

Umberto D. de Vittorio De Sica (1952)


direção: Vittorio De Sica;
roteiro: Cesare Zavattini;
fotografia: G. R. Aldo;
edição: Eraldo da Roma;
estrelando: Carlo Battisti, Maria Pia Casilio, Lina Gennari.

O neorrealismo italiano se destaca no mundo do cinema como um dos movimentos mais influêntes da história da sétima arte. Foi um dos principais motivos catalizadores do surgimento do chamado "cinema moderno" (se é que existe um). Caracteriza-se pela liberdade dada à câmera para contar histórias e juntamente com estas histórias apresentar críticas políticas e sociais, mostrando para o público as mazelas a que passava o povo italiano na fase durante e do pós-guerra. Faziam parte deste movimento alguns dos cineastas mais conhecidos do cinema italiano e que figuram entre as principais personagens do cinema mundial. São eles Roberto Rossellini, que inaugurou o movimento com seu filme Roma, cidade aberta, Luchino Visconti, Federico Fellini e Vittorio De Sica. Dentre todos estes, De Sica surge como um cineasta mais voltado para o drama pessoal, procurando olhar os problemas que os indivíduos possuem em um país tentando se reconstruir.

Assim surge Umberto D., tido por alguns como o ultimo filme neorrealista, que apresenta-nos Umberto (Carlo Battisti), aposentado tentando viver no mesmo lugar em que vive há mais de vinte anos. O problema: seu lar é alugado. Umberto não possui casa própria, necessita pagar aluguel todos os meses. Sua aposentadoria não é suficiente para que ele possa pagar o aluguel e comer. O filme inicia com um protesto com vários aposentados caminhando em direção à casa do primeiro ministro italiano, exigindo falar diretamente com o primeiro ministro. Mas o protesto é dispersado pelas forçar militares que atiram carros sobre a multidão de senhores que já não são tão fortes para fazer qualquer coisa a respeito a não ser fugir. - A cena é belíssima, a orquestração de De Sica apresenta uma confusão, um protesto bagunçado, são diversas as vozes e não conseguimos ouvir ninguém direito, nem mesmo o protagonista. De repente a voz de um representante do governo se faz ouvir, mas para dizer que os aposentados não tinham autorização para fazer a manifestação. Em seguida à fala do representante do governo surgem na tela os carros dos militares dirigindo-se para os manifestantes com o intuito de dispersá-los. Num primeiro plano temos os carros vistos por trás encaminhando-se para a praça, no segundo plano os carros entram na praça organizados, o terceiro plano, com a câmera posicionada do alto, mostra os carros movimentando-se em direção à multidão dispersando-a.


Mas o drama é de Umberto, e a câmera, embora mostre as pessoas, nutre um interesse em especial por este senhor que vive só com seu cachorro, cachorro este que está sempre ao seu lado e que lhe faz companhia até mesmo no protesto. Durante a fuga, Umberto se esconde em um prédio junto a outros aposentados. Inicia-se uma conversa entre eles de onde nosso protagonista descobre que, mesmo estando todos pedindo aumento da aposentadoria, apenas ele (Umberto) possui dívidas e realmente necessita deste aumento. Terminada esta conversa, Umberto sai do prédio conversando com um senhor aposentado que lhe parece amigável até que o protagonista tenta lhe vender um relógio para pagar suas dívidas. Por fim lá está Umberto só, acompanhado de Flike, seu cachorro. E será assim pelo resto do filme. Ninguém lhe faz companhia além de seu cachorro e de Maria, uma menina que lhe confidencia estar grávida e não saber quem é o pai de seu filho. A trama se desenvolve em meio a estas pessoas, tendo foco principal no personagem título do filme. É para elas que a câmera de De Sica se volta e carinhosamente as retrata. Este é o termo certo para comentar sobre a visão que é desenvolvida pelo diretor neste filme: é um retrato carinhosos de pessoas que sofrem, mas que tentam manter-se dignas frente aos seus problemas.


Para contar-nos esta história, De Sica não necessita de atores profissionais, qualquer italiano sensível poderia fazer aquele personagem. Daí constrói-se a poética do filme, nenhum dos atores do filme, incluindo o protagonista, eram profissionais. Eles foram escolhidos por terem o perfil certo de quem estariam representando e não um rosto fabricado para mostrar a realidade. É nesta busca pelo real em que se apresenta a poesia do cinema de De Sica, ao menos nesta obra. Ele extrai de seus não-atores os seus personagens e de seus personagens os seus sentimentos mais profundos. Isto se traduz em algumas cenas mais óbvias, como quando acompanhamos uma ida de Umberto ao centro financeiro de Roma para - como muitos outros - pedir esmola. Ele fica parado com a mão estendida em uma luta moral consigo mesmo que se transfere para a mão. A câmera de De Sica não sente a necessidade de estar muito perto do personagem para mostrar esta batalha interior, mesmo de longe conseguimos ver e talvez seja devido a esta distância que enxergamos todo o desdobrar da ação. - Um homem passa por Umberto, vê sua mão estendida e volta para lhe dar dinheiro. Umberto ainda em conflito moral vira a mão, não aceitando o dinheiro que lhe seria dado pelo homem que estava de passagem. Em outro momento é a vez de Maria (Maria Pia Casilio), a primeira a acordar na casa em que trabalha - a mesma de Umberto -, dirige-se para a cozinha para preparar o café. Enquanto faz suas ações rotineiras De Sica extrai dela a sua emoção, sua tristeza perante sua situação, e ela chora enquanto mói o café.

Um filme belíssimo, portanto. Trata-se de um filme sobre um país em crise, sim, mas antes de tudo um filme sobre pessoas. Um filme humano sobre humanidade.