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terça-feira, 8 de setembro de 2015

Um filme falado de Manoel de Oliveira (2003)

por: João Bénard da Costa

UMA DESARMANTE COMPLEXIDADE

1 - Quando, em 1957, Chaplin estreou o polêmico A King in New York, Rossellini terá dito: “É o filme de um homem livre.”

Enquanto via Um Filme Falado, o filme de Manoel de Oliveira que hoje se estréia em Portugal, lembrei-me dessa reação como a mais óbvia. Só um homem livre (coisa muito mais difícil de se ser do que de se falar) podia ter ousado uma obra assim. Obra que não presta contas a ninguém, não pede contas a ninguém e não ajusta contas com ninguém. Obra em que Oliveira põe toda a sua verdade e nada mais que a sua verdade. Na grande idade, alguns artistas conseguiram-no. Um tão grande despojamento que justifica a dúvida sobre se se está perante uma obra de juventude ou perante uma obra de pletórica maturidade. Como aconteceu com Mozart e levou o seu catalogador - Köchel - a datar como obras de verdes anos obras dos anos finais. Mozart morreu novíssimo? Aparentemente. Mas foi ele próprio quem disse que suou sangue para chegar ao que os distraídos classificaram como superficial ou leve. Para se atingir a “leveza” de Um Filme Falado talvez não sejam precisos 95 anos, mas é preciso certamente algo que anda lá muito perto, em termos de tempo e em termos de modo. Louvado seja!


2 - Começo pelo título. Aparentemente nada de mais corriqueiro, quase um pleonasmo, pois que, com raríssimas exceções, há quase oitenta anos que todos os filmes o são. Estou com curiosidade de saber como o vão traduzir para inglês ou para americano: “A Talkie”? Literalmente, devia ser assim, embora a Variety lhe tenha chamado A Talking Picture, o que, sem trair, não é exatamente a mesma coisa. Mas quando nos pegam na mão para nos lembrar o óbvio, é porque o óbvio não é tão óbvio como aparenta sê-lo. Para gente não poliglota, os filmes falados noutras línguas ou não são ouvidos, são lidos (no caso das versões legendadas), ou são ouvidos (no caso das versões dubladas) em fala de gente que fala a nossa fala, ou seja em fala que a gente do filme não falou. Em Viagem ao Princípio do Mundo, um dos filmes de Oliveira que mais se aproximam deste, uma velha analfabeta da raia minhota perguntava do sobrinho, nascido em França e que só falava francês: “Por que é que ele não fala a nossa fala?” Essa pergunta está implícita em todos os filmes falados, como está implícita em todas as traduções e tem sido um dos temas prediletos de George Steiner.

Pois bem. Neste filme, há um jantar que reúne um ator americano, de origem polaca, no papel do capitão do navio (John Malkovich), uma atriz francesa, no papel de uma rica mulher de negócios (Catherine Deneuve), uma atriz italiana, no papel de um famoso modelo (Stefania Sandrelli), e uma atriz grega no papel de uma célebre cantora (Irene Papas). É um jantar de circunstância, pois que o circunstancial capitão convida para a sua mesa as três celebridades que levava a bordo. A conversa é circunstancial, “uma espécie de jogo”, como lhe chama o capitão, pois que cada um ou cada uma resume a história da vida, com paragem nas datas mais marcantes: nascimento, casamento ou não casamento, filhos ou não filhos. Nada de indiscreto, nem de confidencial. Conversa de salão ou jogo de sala. Mas o que sai fora das normas (de todas as normas) é que o capitão fala inglês, a empresária francês, a ex-modelo italiano e a cantora grego. E todos se entendem perfeitamente. Graças às legendas, também o espectador os entende, como notava com pertinência o crítico da Variety, que se esqueceu, contudo, de sublinhar que essa seqüência proíbe a dublagem, que lhe retiraria por completo o sentido.

Mesmo que admitamos, como hipótese, que os quatro dominam as quatro línguas (não parece ser o caso), nenhum fala a fala do outro. Como aliás é notado, a situação é a inversa do mito de Babel. A língua não é barreira mas continuidade sem ruptura. É a falar que eles se entendem, no diálogo mais antiglobalizador que alguma vez ouvi em cinema. Mesmo que um dos temas de conversa seja a globalização e que a grega recorde que os “founding fathers” americanos ponderaram seriamente a hipótese de o grego ser a língua dos Estados Unidos, o que, caso tivesse acontecido, daria hoje ao grego estatuto universal, em vez de um estatuto cada vez mais regional que Irene Papas tanto lamenta.

Numa mesa próxima estão uma professora de História e a sua filha, ambas portuguesas (Leonor Silveira e Filipa de Almeida). Quando, mais tarde, o capitão as convida para se reunirem aos quatro (antes fizera à professora convite mais dúbio), o “milagre” interrompe-se e é na língua “global” (o inglês) que Leonor Silveira dialoga com os habitantes da outra mesa. A nossa fala, ao longo do filme, não é comunicável senão entre portugueses (mãe e filha, ou ambas com Luís Miguel Cintra, a fazer de Luís Miguel Cintra, quando, “por acaso”, se encontram no Cairo e aquele lhes faz de cicerone).

Por que é que Portugal não sai de Babel? É uma boa pergunta que pode ajudar a perceber por que é que o destino das duas portuguesas é o único que é diferente do destino de todos os outros passageiros do navio. Portugal é um caso à parte? Neste filme, é-o. Há contatos, mas não faz parte do jogo. Sempre off, é, no fim, o que fica mais in, no sentido mais radical da expressão.


3 - Navio. Quase todo o filme se passa nele, viagem de uma mãe e filha pelo Mediterrâneo, matriz da civilização de que vivemos os dias finais. Essa situação levou alguns críticos estrangeiros a comparar este último Oliveira a E la nave va de Fellini. Só que este navio não vai. À exceção da parte final da viagem, quando o Mediterrâneo não é mais dele, só o vemos imobilizado nos vários portos (Marselha, Nápoles, Atenas, Istambul, Cairo, Aden) ou num belíssimo plano recorrente, em que a proa rasga as águas azuis. Ao princípio (largada do Tejo e de Lisboa) há movimento (travelling até Belém) mas não há palavras, com o filme falado a começar como filme mudo. Depois, sempre na mesma amurada, em plano em que quase só muda a indumentária das protagonistas, o navio está acostado. Dele, se vê a entrada de Catherine Deneuve (Marselha), de Stefania Sandrelli (Nápoles) e de Irene Papas (Atenas). Catherine Deveuve é filmada em plongée, num curto plano. Stefania Sandrelli tem uma entrada mais aparatosa. Irene Papas, entrada de vedete. Mas só passado o Mediterrâneo todos se encontram e só passado o Mediterrâneo vemos o interior do navio, até essa altura nunca desvendado. Já não é meio de viagem, mas sim fim de viagem, já não é lugar de cruzeiro, mas marca de cruz. Barca de Caronte, se preferirem. E, se há filme nos antípodas do de Fellini, é um Um Filme Falado, certamente o mais clássico e o menos barroco dos filmes de Oliveira. Se se pode dizer que ambos choram o fim de uma civilização, o que é transbordante em Fellini é contido em Oliveira. Nada nos prepara para o desfecho e, no entanto, sem esse desfecho, que é um dos cumes da arte de Oliveira, nada faria sentido. E é um desfecho em “paralítico”.


4 - Como a mãe não se cansa de dizer, essa viagem, planificada para ir ao encontro do marido, que a espera em Bombaim, é um cruzeiro porque decidiu aproveitá-la para mostrar à filha os lugares santificados (ou mitificados) da história do Ocidente. É uma viagem de instrução, como se dizia antigamente. É nessa instrução que tropeçam quase todos os detratores (significativamente portugueses) do filme de Oliveira. A mãe, professora de História, conta a História como Luís Miguel Cintra contava a História de Portugal no Non. Mas em Marselha o que sobressai é um caniche branco, são os mercados, é uma conversa em francês com um vendedor de peixe e é uma placa no chão, remetendo para a colonização fenícia e para a invenção do alfabeto. Em Nápoles, o Castel dell’Ovo e a profecia de Virgílio que o assinalou como sinal de perenidade. O Vesúvio. Ou Pompéia, com a pergunta sobre “o que é uma vida devassa”, a sobreposição dos guias turísticos e o campo-contracampo do décor “reconstituído” e da ruína. Cave canem. Em Atenas, a Acrópole e “como podia ser bonito se tudo estivesse como era”, fala desmentida pelos fulgurantes planos do Pártenon, do Erectéion e, sobretudo, pelo plongéeinadjetivável sobre o teatro. Depois, Istambul e Santa Sofia. Depois, o Cairo e a Esfinge.

Mas, a partir de Constantinopla, os sinais são mais elípticos ou crípticos. Junto ao chão, em plano de pés, mostram-se-nos as cruzes do cristianismo deposto. Os caminhos começam a ser caminhos opostos, na direção de Meca ou na direção de Jerusalém. No Cairo, a esfinge e os escaravelhos iluminam os vivos e os mortos, visitantes dos abismos e do oculto. O azul é a cor do maligno e o que se vê já não coincide com o que não se vê. Insensivelmente, sem mudança de tom nem mudança de estilo (sempre a mesma vaga névoa, sempre o acidental a significar tanto quanto o essencial) estamos a ser levados para o que todos os mitos ensinam, ou para a moral da fábula. Uma desarmante simplicidade? Eu prefiro chamar-lhe uma desarmante complexidade, pois que não me lembro de ser levado tão longe com tamanho deslizamento. Meu Deus, como tudo pode ser tão aparentemente simples (não há um efeito, não há uma “culminância”) sendo tão abissal.



5 - Mas não quero acabar sem dizer que este é um filme - talvez seja o primeiro - que traz a memória do 11 de Setembro e a imagem do mundo que a 11 de Setembro começou.

O plano final é a reverberação (espelhada, depois, no olhar assombroso de Malkovich) do “plano” que vimos, quando homens e mulheres saltaram das torres. Mas nem mãe nem filha saltam, desobedecendo à ordem do capitão. Já não há tempo. Estão, como estivessem no início, na amurada do navio. Mas o tempo suspendeu-se definitivamente e aquilo que foi viagem para transmitir a memória do passado, já não tem qualquer futuro.

O vento da morte (vento do norte) soprou mais forte, ao contrário do que pediu a belíssima canção de Irene Papas. Ficou-nos a beleza de Outrora? No filme ficou. Do navio, a última imagem é a de Copérnico, o primeiro a dizer-nos que a Terra não é o centro do Universo. E é para outros universos queUm Filme Falado nos convoca. Quem, neles, falará a nossa fala? Alguém nos ouve? Alguém nos vê?

Esta postagem faz parte de uma trilogia sobre Um filme falado.
Leia também os textos de Ruy Gardnier, e Yves São Paulo.
Texto encontrado em: Foco Revista de Cinema.
Imagens adicionadas por este blog.

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

Tabu de F. W. Murnau (tabu: a story of the south seas, 1931)

por João Bénard da Costa

"Não, não tinha pensado começar esta série sobre “os mais belos dos filmes” com Tabu. Foi idéia de última hora, quando reparei, como contei na crônica do cão amarelo, que Godard o citou para explicar o que queria dizer com o superlativo absoluto de beleza. Acaso?

Mas foi acaso por acaso que, entre a sexta-feira passada e a sexta-feira de hoje, revi Tabu duas vezes? E foi acaso por acaso que o revi na mais bela das cópias que de Tabu me foi dado ver, essa da Cinemateca de Praga que agora passou na cinemateca? E foi acaso por acaso que, com dois dias de intervalo, pude comparar Tabu com Sunrise, o filme de Murnau que, até Janeiro de 1996, era incontestavelmente o meu favorito?

E foi acaso por acaso que reli uma velha critica (1953) de Maurice Scherer (= Eric Rohmer) onde se diz: “Os referendos estão na moda. Desculpem se me deixei apanhar. Fazer listas de preferência, à hora do chá, entre amigos, é um jogo de salão agradável e que só depende da nossa disposição no momento (…) Mas não quis perder a ocasião para dizer - como uma recente visão de Tabu mo confirmou - que este filme é, na verdade, a obra-prima do seu autor, o maior filme do maior autor de filmes”. Se acaso tudo são acasos, acaso sou eu também.



Foi relativamente por acaso que F. W. Murnau decidiu, em Abril de 1929, aos 40 anos, partir para Taiti e filmar à luz dos mares do sul. Tinha chegado à América cerca de três anos antes (Julho de 1926) aclamado como o “gênio alemão”. Tinha filmado - 1927 - Sunrise, Oscar para a melhor “produção de qualidade artística”, no primeiro ano em que houve prêmios da academia. Depois (The Four DevilsCity Girl) foi forçado a vergar-se às regras da Fox. Depois, “por acaso”, conheceu David Flaherty, irmão de Robert Flaherty, que estava a tentar convencer a mesma Fox a fazer um filme em Taiti. Depois, esse filme malogrou-se. E, depois, Murnau convidou David Flaherty para jantar, no solar em que vivia, sozinho com os criados, numa das colinas mais altas de Hollywood. Parece que se sentaram os dois sozinhos, numa mesa enorme, na enorme casa de jantar de Murnau. E, à hora em que o jovem Hutter se feriu com a faca e derramou algumas gotas de preciosíssimo sangue (estou a referir-me a Nosferatu, para quem não saiba), Murnau disse baixinho ao irmão de Flaherty: “Queres vir comigo para Taiti?” No dia seguinte, antes do nascer do dia, partiram para o México, onde estava Bob. Poucos dias depois, com o muito dinheiro ganho por Murnau, formaram uma sociedade - a Colorart - para produzir uma série de filmes nas ilhas dos mares do sul. O primeiro devia chamar-se Turia e contava a história de um pescador de pérolas. “Bali é a última Thule dos meus desejos” teria dito Murnau, antes de embarcar, no fabuloso iate que comprou (vê-se no filme) e a que também deu o nome dessa ilha: Bali.

Daí por diante e até a primeira versão do argumento de Tabu se concluir (Dezembro de 1929, depois de um longo périplo de Murnau pelo Arquipélago das Marquesas e pelas ilhas Paumotu), tudo separou os dois cineastas. Flaherty sonhava encontrar o paraíso na terra e o mundo antes do pecado original. Murnau já sabia que “nessa terra / também, também / o mal não cessa, não dura o bem”. O “terror antigo”, o terror de Nosferatu, foi o que encontrou em Bora-Bora ou em Tokapoto, as ilhas de rodagem. Flaherty assombrou-se: “Como são profundas as inibições destes alemães!... Como é terrível a sua vontade de domínio!... Como é imenso o seu fatalismo!...”. Como não se assombraria? Tabu, às vezes descrito como um documentário de Murnau e de Flaherty, nada (ou pouquíssimo) tem de Flaherty e é tudo menos um documentário. Murnau, que chegou a Taiti como Nosferatu, num barco a velas (e como é terrível e ameaçadora a primeira visão do iate, apenas ou por causa da imensa beleza dele e da imensa beleza do plano), é o filme do encontro de Murnau com a Morte, essa morte com que mil vezes foi ameaçado durante as rodagens (Janeiro a Outubro de 1930), essa morte que o apanhou, numa curva da estrada, a 11 de Março de 1931, aos 42 anos, uma semana antes da estréia mundial de Tabu.


Nosferatu. “Um nome que soa como a chamada noturna da Ave da Morte”, para citar o primeiro intertítulo do filme de Murnau de 1922, não é, em Tabu, explicitamente, um morto-vivo ou um vampiro? Talvez não seja. Mas se o não for, quem é então Hitu, o prodigioso velho, de olhar inexorável, que, no iate de Murnau, chega a Bora-Bora para lançar o seu tabu sobre Reri, a virgem sagrada?

Antes, víramos planos de ofuscante beleza em que os mais belos corpos masculinos - donde logo emerge Matahi, o protagonista - pescam como se dançassem ou dançam como se pescassem. É o mar e no mar. Uma simples panorâmica (simples?) e o mundo roda 180º para os planos subjetivos das mulheres em flor, sob as cascatas. Passagem tão misteriosa como a misteriosa passagem do mundo do lago para o do carro elétrico, em Sunrise, depois de George O’Brien ter tentado matar Janet Gaynor.

É um allegro prestíssimo esse início coral, a que se sucede o adágio, no plano inadjetivável em que Reri encosta a cabeça ao peito de Matahi e para sempre fica colada a ele.


É um pouco mais tarde (precedido pelo grande, grande plano do mensageiro dos apelos) que surge o navio fantasma, com o velho Hitu.

Antes de o vermos, vemos uma grande onda preta. E Reri tapou os olhos ao ouvir o tabu. Flores para os mortos.

Matahi reaparece depois, ainda solto, ainda resplandecente. E sempre me pareceu que, logo que o viu, o velho soube tudo (se é que o não sabia antes). Há um plano - brevíssimo - em que quase podemos dizer que uma certa compaixão se apodera dele. Mas, como as nuvens, passou.

Se não é Nosferatu, quem é aquele velho sempre recortado contra o vulcão de Paia? Gauguin, que tantas vezes Murnau evocou em Tabu e expressamente no plano de Matahi, sentado na cabana, tão farto de esperar bem, contou-nos que o Deus Ora desceu do alto dessa montanha à procura de uma mulher transformada em coluna de fogo. E Reri - a mulher que vemos a chorar no lancinante ritual da despedida da mãe - como fogo se acende quando, na dança sagrada, Matahi, despertado pela música, subitamente se lhe vem juntar, afastando todos os corpos para dominar com a sombra dele a sombra da mulher. Se não é Nosferatu, quem é Hitu, o velho que retira a grinalda e corta o amor?


À luz de Hina, a lua, vem depois a noite em que Matahi arranca Reri ao barco da morte e a leva com ele para a ilha dos chineses e das pérolas.

Mas, senão é Nosferatu, quem é esse velho que um tempo, algum tempo, muito tempo depois, desembarca na ilha, em que os amantes se supunham a salvo, para cumprir a maldição?

Não o vemos chegar. Tudo o que vemos é, nessa noite, Reri acordar na cabana, como as crianças acordam dos pesadelos, soltar-se dos braços de Matahi e olhar para a porta, deixada aberta. Todo o terror do mundo nos olhos dela. Depois, tapa-os com as mãos. Contraplano e vemos, no portal, o velho, de branco e de pé. A câmera volta a Reri, que lentamente tira os braços dos olhos. Contraplano e não está lá ninguém. Visão? Sonho? Premonição? Quem souber decidir, sabe o segredo da arte de Murnau.

No dia seguinte, um dos pescadores da ilha é comido por um tubarão. As autoridades declaram essas águas tabu. A palavra TABU aparece no filme. O que aparece é sempre menos do que o que não aparece. Que é esse tabu, decretado pelos homens, face ao outro, que veio do fundo dos mares e dos tempos?


Nessa noite, há a luz sobre os amantes. Matahi dorme, de novo, dorme sempre quando Reri vela, como ela dormiu, depois, quando ele foi pescar a pérola negra. E se não é de Nosferatu, de quem é essa sombra esguia que, como uma seta, deixa a mensagem que anuncia a morte de Matahi se, passados três dias, ela não o seguir? Os corpos parecem agora as pietás de Antonello. A fuga de ainda, gora-se. Em montagem paralela, o desafio ao tubarão da pérola negra e a carta de Reri do imenso adeus.





E se não é Nosferatu, quem é o Caronte que conduz o barco que leva Reri de volta? E se não é Nosferatu, quem é o velho que corta a corda da vida no momento em que Matahi atinge o barco para lhe roubar Reri?


E o maior milagre que já vi no cinema é a perseguição final, quando Matahi se lança atrás do barco. A pé, numa embarcação e, depois, finalmente, a nado, a câmera voa em planos fixos, atravessando terras e mares, para figurar o impossível - possível: Matahi a atingir a velocidade do vento que sopra as velas e a tocar na barca, onde Nosferatu acabou de sepultar Reri. Mas, quando a corda é cortada, tudo se torna de uma lentidão imensa, enquanto o barco se afasta e Matahi se afunda nas águas, nadando, nadando sempre, como se esse movimento já sem razão fosse a última razão possível.


Numa carta à mãe, escrita no final da rodagem, Murnau disse: “Estou enfeitiçado por estes lugares (…) Às vezes, sonho que gostava de voltar a casa. Mas a minha casa não é em parte nenhuma (…) Em casa nenhuma, em terra nenhuma e com nenhuma pessoa.”

Cumpriu-se a maldição que uma lenda antiga atribui a um feiticeiro de Bora-Bora: “Quando o homem branco ouvir o grito da Ave da morte, o Diabo Oramatua-hiaro-rorua o levará.”


Se o cinema, como disse Henry Miller, é “a consciência visual da morte” nunca a vimos de tão perto como em Tabu de Murnau. Depois deste filme, nenhum outro pode ser “o mais belo dos filmes”.


Contraplano. E repito: nenhum outro."



disponível em: Foco Revista de Cinema.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Recordações da casa amarela por João Bénard da Costa

[texto retirado da Foco Revista de Cinema]

Recordações da Casa Amarela. Mesmo quem não leu muito, lembra-se logo de Dostoiévski e das Recordações da Casa dos Mortos. Sabe que não o vão levar para o canto da lareira e que a viagem não vai ser agradável. Casa Amarela por quê? A legenda seguinte - ainda estamos mergulhados no negro mais negro - esclarece: “Na minha terra chamavam casa amarela à casa onde guardavam os presos. Por vezes, quando brincávamos na rua, nós, crianças, lançávamos olhares furtivos para as grades escuras e silenciosas das janelas altas e, com o coração apertado, balbuciávamos: ‘Coitadinhos’...”.

Decorre o genérico. Ouvimos uma flauta, sons estranhos, gritos. A casa amarela não é uma prisão. É um manicômio. João de Deus já nos está a falar de lá, quando diz em off um texto de Céline (Mort à Crédit). Mas a luz chega à tela, e o que se inicia é um flashback. Vagaroso travelling sobre Lisboa, filmada do Tejo, descobrindo a parte mais bela da cidade, do Terreiro do Paço à Madre de Deus. Casas velhas? Como depois corrigirá Dona Violeta “barrocas Senhor João. Isto foi casa de marqueses e marquesas, de príncipes de Portugal”. Ninguém está a brincar, muito menos o realizador. Durante o filme, vezes sem conta, mergulhamos nestes bairros, em ruas, praças e becos. Tudo tão estranho, tão nosso desconhecido. Lisboa tem um verso e um reverso. O verso vê-se do rio e é bom para os poetas. O reverso vê-se em terra e é bom para os pintores. A cidade é secretíssima. Quem vê caras não vê corações. Para lá das fachadas, começam as surpresas. Fiquem os turistas com a ville blanche. Quem cá morrer sabe como tudo é escuro. Tão escuro que, no final - quando João de Deus reencarna em Nosferatu - João César não precisou de qualquer efeito para o enquadrar em décor expressionista. Murnau - para já não falar de Robert Wiene - precisou de estúdios e de grandes decoradores. Para João César, bastou-lhe colocar a câmera, enquadrar rigorosamente, e esperar pela luz. Os milagres acontecem. O pôster do filme - uma reprodução do quadro de Grosz John der Frauenmöde pintado em 1918 - não foi modelo do filme. Parece, antes, cópia dele. As artes têm, às vezes, coincidências singulares.

travelling do rio, não acaba, por acaso, na Madre de Deus. Também não é por acaso que a seqüência seguinte se passa numa capela, dedicada a Nossa Senhora, e que a primeira imagem que vemos nela é a de Nossa Senhora. Vemos mesmo Nossa Senhora antes de vermos João de Deus. É queRecordações da Casa Amarela é também - eu tenderia a dizer é sobretudo - um filme sobre a Mãe. A Mãe é o tema central destas Recordações. Por isso, o final do travelling faz raccord com a imagem barroca de Nossa Senhora. Grande plano, levemente em contre-plongée. Corte e contraplano. Quem vê a Virgem é João de Deus que conhecíamos de voz (o longo monólogo dos percevejos) mas só agora conhecemos em carne e osso. Está sentado na penumbra da igreja “ancestral, silenciosíssima e vazia”. Levanta-se devagar e vai-se embora, com paragem pela pia de água benta e pela caixa de esmolas. Depois de muita palavra, muito silêncio. É possível que o espectador levado pela provocação - ou pela truculência - do verbo abra mais os ouvidos do que os olhos. Será nossa culpa, não do realizador. Não se abre um filme com uma igreja por acaso. Descobriremos porquê muito mais adiante.



Mais adiante. Após a seqüência da leiteria com o Pom-Pom e Mimi, ou seja com o cãozinho e com a pega. João de Deus não abriu a boca durante essa conversa de bairro, supostamente realista (até se fala do “nosso Benfica”). Gente tacanha não vê mais nada, senão fado e futebol. Mas quando João de Deus se vai embora, Mimi, refletida num enorme espelho oval, dirige o olhar na direção dele e fica muito tempo a vê-lo sem que ele a veja. Mais tarde, dirá: “Vejo-o quase todos os dias na rua ou na leiteria. Reparei em si porque anda sempre muito metido consigo. Não fala com ninguém”. “Falo, mas não se dá por isso”, responde João de Deus. Nesse plano do espelho, tivemos o primeiro sinal de atenções sem palavras. Aquela que depois dirá, em tradução da Bohème, “chamam-me Mimi”, é a primeira pessoa no filme a reparar em João de Deus, a protegê-lo maternalmente (o espelho oval), imagem recorrente dos filmes de César Monteiro.

E aqui faço um parêntesis cinéfilo. Se os críticos mais atentos descobriram (está no filme a rima entre estas Recordações e Quem Espera por Sapatos de Defunto Morre Descalço, o primeiro filme de João César Monteiro), não li em parte nenhuma referências à continuidade com o filme de 1975 Que Farei com Esta Espada? Nosferatu, citado nas duas obras? Não só. Mimi é irmã gêmea dessa outra puta do Cais do Sodré que se confessava depois da Butterfly. Filhos dela passa por insulto. Andamos muito esquecidos dos Evangelhos. Estas entraram com certeza à frente dos outros no Reino dos Céus.

João de Deus sai da leiteria. E a discretíssima alusão materna, evidencia-se na banda sonora, quando começamos a ouvir o Stabat Mater de Vivaldi. Houve um corte e João de Deus, filmado em plongée, detém-se no átrio de uma casa setecentista, forrada a azulejos e com um chão lindíssimo. O plano tem a duração e a solenidade para ser sacral. É uma entrada num templo. “Eia, Mater fons amoris / Me sentire vim doloris / Fac ut tecum lugeam” canta-se e ninguém está a jogar com palavras ou com música. João de Deus começa a subir as escadas - grande escadaria de pedra - em plano de conjunto aproximado. A câmera move-se da esquerda para a direita (raccord ao eixo) e dá-nos a ver o patamar. À direita, um anjo com uma tocha e aos pés dele uma mulher velha a esfregar o chão com uma barra de sabão amarelo. Mais ao longe, à esquerda, um reposteiro com as armas de Portugal. Vivaldi continua e todos os sinais estão reunidos para a encenação sacral. Falta nomeá-la. A câmera recua e enquadra João de Deus, em pé, de costas, no alto do lance de escadas, a certa distância da mulher. É então que diz duas vezes: “Mãe, Mãe”.



O diálogo dos dois é cru e seco (da parte do filho). João de Deus foi ali para pedir dinheiro à mãe, todo o dinheiro da mãe, que lho dá. Situação escabrosa, abjecionismo, etc.? Quem se ficar por isso, não tem olhos, nem coração, nem gosto. Está é a ver a mais bela das Pietá. Quis est homo, qui non fleret?

A mesma sacralidade preside à encenação do encontro de Mimi com João de Deus na boite: a auréola vaneyckyana e nada de coiso[1]. Preside, depois, à via crucis do canil (“Estou consigo”) ou ao almoço da cabidela, com aquele final sublime (“mais luz geral se possível”) sobre o grande plano das mãos de Mimi a dizer: “Bastar-me-á, então, enterrar ambas as mãos na teia para sentir que tudo nasce dela”.

Até que chega a noite dos anos de João de Deus. Ele só pensa no clarinete da menina. Mas, quando esta finalmente o toca (salvo seja e é o K.622 de Mozart), desata a chover e todos fogem. Fica sozinha a menina, o clarinete e Mozart. Mas durante toda a “festa”, Mimi seguiu sempre de longe João de Deus. E é pelo sopro de Mozart (como pelas gárgulas jorrantes das fontes) que vamos até ao grande plano de Mimi, já dentro de casa. Um “plano louisebrookiano” (foi João César quem lhe chamou assim). E diz oferecendo-se: “É a minha prenda de anos”. Mozart cede a Schubert. Primeiro o violoncelo, depois o violino, por fim o piano. Ela tira as meias. A câmera enquadra João de Deus contra a parede, sentado na cama do quarto dele. João de Deus pequeno, à esquerda. Sobre a cama, as botas da fotografia de Stroheim. E enquanto continua o Trio, a câmera sobe muito devagar, largando o protagonista para nos dar a ver Stroheim em corpo inteiro, vestido de oficial de cavalaria. Ouvem-se em off suspiros e por fim o silêncio. “O que foi?”, pergunta Mimi em off. E é então que sabemos, pela direta resposta de João de Deus, que Mimi é mãe. De novo, a Mãe de Deus.

Na seqüência seguinte já ela morreu. Depois, há a visita ao quarto dela, tão sacral e tão sacrílega como a visita à Madre. A boneca é a figura de substituição que a menina Julieta não pode ser.

Perdidas todas as mães, todas as mulheres, João de Deus assume-se como pária (fabulosa seqüência no banco de jardim, com a descrição da morte da Madre de Deus) e depois assume-se como esse Stroheim que contemplara a sua única noite de amor. É Stroheim quem domina uma Lisboa em ruínas, onde o Carmo do Tanhäuser rima com o Chiado esventrado.

E, na corrida circular do manicômio, João de Deus faz o percurso que liga Lívio (Luís Miguel Cintra) ao realizador, que o dirigira vinte anos antes, nos Sapatos, “Nunca me tinha ocorrido como a eternidade pode ser tão amarga”. “O que tens feito nestes anos todos?”. “Tenho estado por aqui à tua espera”. “À minha espera?”.



O maior dos homens de teatro da geração de 60 e o maior dos homens de cinema da mesma geração, reencontram-se dois, não mais sendo um só. Inventaram o espaço para matar o tempo e inventaram o tempo para dominar o espaço. O bom senso acabou por prevalecer. Deus dar-lhes-á vida. E o plano mais comovente sobre uma geração é esse de Luís Miguel Cintra, vendo João de Deus afastar-se, com um movimento de garganta, como se engolisse em seco.

Vinte anos vivemos na casa dos mortos, ou na casa amarela João César Monteiro/João de Deus ressuscitou dela para contar a todos nós. É uma “comédia lusitana”. É uma tragédia portuguesa? É um filme de gênero? Como João de Deus responde a Henrique Viana que lhe pergunta se A Morte de Empédocles (a de Hölderlin, ou a de Straub?) é policial, a réplica exata é a dele: “Não! É celestial”. Desse gênero é que é o filme.

Sozinho diante das estrelas, como no final de Silvestre, este é um filme sagrado. É também - uma vez mais - um grande filme romântico. Esgotaram a imaginação a inventar-lhe parentescos. Leiam o Cesário, o do Sentimento de um Ocidental: “A dor humana busca os amplos horizontes / tem marés, de fel, como um sinistro mar”. É possível viajar por estas Recordações com o poema de Cesário como lâmpada de bolso. Quem se desorientar, orienta-se com ele. Para chegar ao mesmo verso e à mesma conclusão. O lençol de Dreyer e a sombra de Murnau. Meus filhos, são filmes destes que, pousando, vos trarão a nitidez às vidas. A todas as vidas.

terça-feira, 30 de setembro de 2014

O sangue de Pedro Costa por João Bénard da Costa


Reproduzo abaixo parte do texto de João Bénard da Costa sobre o filme O sangue de Pedro Costa. Mesmo se tratando de um trecho é possível notar a beleza do texto de João Bénard.

"De O Sangue se tem falado como de um filme obscuro. Melhor seria falar de um filme escuro, nome do cão que quase logo no princípio conhecemos. Alguma atenção - mas já estamos tão desabituados que no-la peçam assim - dissipará as aparentes obscuridades do filme. A mesma atenção só lhe reforça o lado escuro, que, neste caso nada tem que ver com o lado negro. É escuro porque é noite - é quase sempre noite - e é em noites destas que há sonhos e pesadelos e vem lá o lobo mau. De noite - em noites dessas - não vemos as cores e por isso este filme - contra quaisquer modas, modernismos ou pós-modernismos - só podia ser um filme a preto e branco, ou a escuro e claro, no escuro tão escuro e no claro tão claro da prodigiosa fotografia de Martin Schäfer.


[...] 
Antes, muito antes, tentara Vicente suportar sozinho o peso do seu sangue (seqüência da farmácia) quando procura ocultar de Clara a ferida da primeira solidão. E só quando esta lhe agarra a mão - porventura o mais belo grande plano do filme, ou o mais belo plano do filme - se lhe entrega com o pedido de salvação, precedendo a noite do cemitério.


É a seqüência mais onirizante do filme (durante ela, Nino dorme); é também a seqüência mais elíptica, como se os dois tentassem redimir uma culpa oculta, sabendo já da impossibilidade da mancha do corpo não alastrar. “Os sonhos existem mesmo?” E a resposta é a árvore assombrada, a dívida reclamada, e as figuras de substituição paterna (credores, tio) minando o incesto sangrento. O homem com um grande termômetro no chapéu, sonhar e inventar são coisas muito diversas. Não há mundos sem dívidas, como não há mundos sem culpas. Na noite mítica do amor, Vicente e Clara descobrem-se sós e têm medo. Se ninguém será como eles, tudo e todos existem para o mal. “Estás a tremer... Pede-me coisas... Mais perto... Mais”. Depois só resta a névoa da festa, a profundidade de campo e a posse por Clara do corpo de Vicente, enquanto um outro fio de sangue - ferida do tio - os conduzirá para a cidade junto de bichos mais antigos e mais famintos (as piranhas e as tartarugas do aquário, Isabel de Castro) que nos ritos da magia negra ofuscam a magia escura dos juncos e dos pântanos e da noite em que Nino dormiu com a cabeça pousada no colo de Vicente e Clara. São os décors de Alphavillevisitados pelos foragidos da noite, em termos de cinema outra aliança secreta dos mundos de Ray e de Godard, dos amantes assustados do primeiro plano de They Live by Night ao Rimbaud citado por Belmondo, junto ao mar, no último plano de Pierrot le fou."