terça-feira, 30 de setembro de 2014

O sangue de Pedro Costa por João Bénard da Costa


Reproduzo abaixo parte do texto de João Bénard da Costa sobre o filme O sangue de Pedro Costa. Mesmo se tratando de um trecho é possível notar a beleza do texto de João Bénard.

"De O Sangue se tem falado como de um filme obscuro. Melhor seria falar de um filme escuro, nome do cão que quase logo no princípio conhecemos. Alguma atenção - mas já estamos tão desabituados que no-la peçam assim - dissipará as aparentes obscuridades do filme. A mesma atenção só lhe reforça o lado escuro, que, neste caso nada tem que ver com o lado negro. É escuro porque é noite - é quase sempre noite - e é em noites destas que há sonhos e pesadelos e vem lá o lobo mau. De noite - em noites dessas - não vemos as cores e por isso este filme - contra quaisquer modas, modernismos ou pós-modernismos - só podia ser um filme a preto e branco, ou a escuro e claro, no escuro tão escuro e no claro tão claro da prodigiosa fotografia de Martin Schäfer.


[...] 
Antes, muito antes, tentara Vicente suportar sozinho o peso do seu sangue (seqüência da farmácia) quando procura ocultar de Clara a ferida da primeira solidão. E só quando esta lhe agarra a mão - porventura o mais belo grande plano do filme, ou o mais belo plano do filme - se lhe entrega com o pedido de salvação, precedendo a noite do cemitério.


É a seqüência mais onirizante do filme (durante ela, Nino dorme); é também a seqüência mais elíptica, como se os dois tentassem redimir uma culpa oculta, sabendo já da impossibilidade da mancha do corpo não alastrar. “Os sonhos existem mesmo?” E a resposta é a árvore assombrada, a dívida reclamada, e as figuras de substituição paterna (credores, tio) minando o incesto sangrento. O homem com um grande termômetro no chapéu, sonhar e inventar são coisas muito diversas. Não há mundos sem dívidas, como não há mundos sem culpas. Na noite mítica do amor, Vicente e Clara descobrem-se sós e têm medo. Se ninguém será como eles, tudo e todos existem para o mal. “Estás a tremer... Pede-me coisas... Mais perto... Mais”. Depois só resta a névoa da festa, a profundidade de campo e a posse por Clara do corpo de Vicente, enquanto um outro fio de sangue - ferida do tio - os conduzirá para a cidade junto de bichos mais antigos e mais famintos (as piranhas e as tartarugas do aquário, Isabel de Castro) que nos ritos da magia negra ofuscam a magia escura dos juncos e dos pântanos e da noite em que Nino dormiu com a cabeça pousada no colo de Vicente e Clara. São os décors de Alphavillevisitados pelos foragidos da noite, em termos de cinema outra aliança secreta dos mundos de Ray e de Godard, dos amantes assustados do primeiro plano de They Live by Night ao Rimbaud citado por Belmondo, junto ao mar, no último plano de Pierrot le fou."

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