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segunda-feira, 3 de maio de 2021

10 filmes sobre cinefilia

 Em ocasião do lançamento de meu livro, A metafísica da cinefilia, onde busco compreender filosoficamente a cinefilia como uma emoção, trago aos leitores deste blog uma lista com 10 filmes sobre a cinefilia (para além de Cinema paradiso).

            O critério do que seria um filme sobre a cinefilia é apresentar personagens apaixonados pelo cinema em uma relação espectatorial contínua, ou seja, não encerrando em apenas uma cena de ida ao cinema. Descartamos igualmente os filmes sobre produção e filmagem, nosso interesse é particularmente por filmes focando a experiência do espectador (o que nos leva a não incluir alguns dos filmes dos cinéfilos da Nouvelle Vague).

            A lista procura ser o mais democrática possível, trazendo indicações que levantem a curiosidade do leitor, quiçá atiçando a assistir as obras desta lista. Convidamos também a abertura de sugestões nos comentários.

1.      Sherlock Jr., 1924, dir. Buster Keaton


Neste clássico de Buster Keaton, um jovem projecionista altamente sugestionável pelos filmes que assiste, tenta solucionar o mistério de quem haveria roubado o relógio de bolso do pai de sua namorada. Caindo no sono durante a projeção de um filme, o jovem se vê transportado para dentro da tela, transformando-se em personagem. Esta é uma das cenas mais fantásticas do cinema, utilizando diversos recursos técnicos para criar gags cômicas que levam a personagem de um cenário a outro num piscar de olhos, sem qualquer aviso prévio de mudança.

Filme de 1924, Sherlock Jr. (disponível no Youtube) apresenta como subtexto uma juventude que forma seu caráter assistindo a filmes, imitando os gestos das personagens da tela.


2.      Eu, você, e a garota que vai morrer, 2015, dir. Alfonso Gomes-Rejon

A cinefilia dos adolescentes de Eu, você e a garota que vai morrer reflete a de muita gente que vive em cidades do interior, sem acesso às salas de cinema. Ela se passa na sala de casa, assistindo filmes em DVD (ou Blu-ray, ou streaming, ou download) e vivendo no choque posterior que cada um desses filmes causa. Greg e seu amigo Earl assistem clássicos do cinema mundial, mais tarde fazendo vídeos parodiando estes mesmos filmes partindo apenas de um trocadilho engraçadinho.

São muitas as referências aos clássicos que todos cinéfilo já devem ter assistido ao menos uma vez ao longo da vida. O bonito desta obra é como ela demonstra o papel algo terapêutico do cinema em acomodar nossas crises pessoais, em mostrar também o papel agregador da cinefilia ao unir pessoas de inaptidão social.


3.      As poltronas do cine Alcazar, 1989, Luc Moullet

Feito por um cinéfilo profissional, ou seja, um crítico de cinema da mítica revista francesa Cahiers du cinema, este filme acompanha um crítico de cinema da mesma publicação assistindo sessões de filmes do cineasta italiano Vittorio Cottafavi. Um dia, ele nota a presença de uma mulher nas cadeiras do cinema, uma crítica para uma revista rival, a Positif.

Esta obra é como uma grande piada interna para um grupo seleto de cinéfilos conhecedores dos anos de ouro da cinefilia francesa dos anos 1950-60, quando autores como François Truffaut, Jean-Luc Godard, Claude Chabrol, André Bazin, Éric Rohmer, escreviam para os Cahiers tendo como preferidos autores que eram menosprezados pelos críticos da Positif. Para além disso, ainda são dados alguns detalhes de como estes cinéfilos acompanhavam os filmes, buscando as cadeiras da primeira fila do cinema (reservada para as crianças) para ser o primeiro a receber as imagens.


4.      A rosa púrpura do Cairo, 1985, dir. Woody Allen

Sem dúvida uma das maiores obras de Woody Allen, A rosa púrpura do Cairo apresenta uma dona de casa que sofre com os abusos de seu marido, buscando refúgio nas fantasias da sala de cinema. Inspirado em peça de Luigi Pirandello, o filme apresenta Cecilia, que de tanto assistir ao mesmo filme já chegou a decorar as falas, o que desperta a curiosidade... dos personagens do filme! Então Tom Baxter, personagem da obra, transpõe os limites entre os dois mundos e salta para o outro lado da tela, passando a fazer parte do mundo de Cecilia.

Muito próximo do tema de Sherlock Jr., A rosa púrpura do Cairo imagina o aspecto escapista da fantasia, quando a espectadora imerge a tal ponto no mundo da ficção que já não consegue distinguir o real do não real. O processo de reconhecimento do real por parte de Cecilia é um dos momentos mais tocantes da filmografia de Woody Allen.


5.      Adeus, Dragon Inn, 2003, dir. Tsai Ming-Liang

Um gigantesco cinema de Taiwan está para fechar as portas. Como última sessão, exibem um filme de artes marciais antigo. São muitas as cadeiras vazias, preenchidas por personagens que parecem pouco se importar com o filme e mais uns com os outros. Adeus, Dragon Inn é um filme sobre a decadência do ir ao cinema, quando as salas fora de shoppings ou museus passam a ser frequentadas por figuras em busca de encontros sexuais.

Um filme silencioso, onde o olhar das personagens é o que mais fala, Dragon Inn tem apenas quatro falas ao final, quando o filme já encerrou, no devido respeito cinéfilo ao filme sendo exibido. Não surpreende que as falas sejam feitas por dois senhores acompanhando o filme com seus netos. Ao que parece, fizeram parte da produção daquele filme que vemos em partes quando a câmera se volta para a tela. É um filme de adeus, mas que pode também ser um novo começo – os avôs levando seus netos é a formação de novo público, renovando interesse pela arte do cinema.


6.      Close-up, 1990 / Shirin, 2008, dir. Abbas Kiarostami

Temos aqui dois filmes do mestre iraniano Abbas Kiarostami. O primeiro, Close-up, é um misto de documentário e ficção. Atraído pela história de um cinéfilo, Hossain Sabzian, que fingiu ser o cineasta Mohsen Makhmalbaf para convencer uma família de que eles iriam atuar em seu novo filme, Kiarostami vai até a prisão onde está o homem para entrevistá-lo e propor que façam um filme recontando a própria história. Para quem tem curiosidade de conhecer um cinema profundamente humanista, o primeiro passo é conhecer os filmes de Kiarostami e como ele filma suas personagens.

O segundo filme aqui apresentado é Shirin, uma obra bem diferente do tradicional. Kiarostami convida algumas das atrizes mais famosas do Irã para a sala de cinema que tem em sua casa. Elas assistirão a um filme contando uma antiga história persa a respeito de Shirin. Enquanto escutamos a história, tudo que Kiarostami nos oferece são as feições das atrizes, ou seja, das espectadoras assistindo a história daquela mulher numa tela que não vemos. O interesse volta-se da ação na tela para as emoções que surgem nos espectadores. Porque também nós construímos o nosso próprio filme a medida em que assistimos.


7.      Rebobine, por favor, 2008, dir. Michel Gondry

Filme de Michel Gondry (diretor de Brilho eterno de uma mente sem lembranças), guarda algumas semelhanças com Eu, você e a garota que vai morrer, ainda que não seja tão comovente quanto. Aqui, a cinefilia envolve o aluguel de filmes em VHS, e a sua eventual queda. De fato, o tempo de glória do VHS não foi duradouro. Quando a personagem de Jack Black inadvertidamente apaga todo o conteúdo dos filmes, ele e o atendente da locadora se veem obrigados a preencher o conteúdo das fitas. O que fazem é filmar ao seu próprio estilo, com os recursos disponíveis à mão, alguns dos filmes mais famosos dos anos 1980 – Robocop, Os Caça-fantasmas...


8.      Os sonhadores, 2003, dir. Bernardo Bertolucci

Bernardo Bertolucci relembra a cinefilia formada em torno da Cinemateca Francesa, responsável pela criação de muitos intelectuais. Iniciando com as manifestações contra a deposição de Henri Langlois de seu cargo de presidente da Cinemateca pelo governo De Gaulle, o filme mostra o papel do cinema no desenvolvimento intelectual da juventude, e a fomentação do sentimento de mudar os rumos da história. A obra acompanha não somente as manifestações em apoio a Langlois, como também o maior de 1968 na capital francesa.


9.      Pornográphico, 2008, dir. Paula Gomes, Haroldo Borges

Estava dividido entre Lisbela e o prisioneiro e Cine Holiúdi, quando a memória me trouxe esta pérola do curta-metragem brasileiro. Acompanhando um projecionista de cinema pornográfico, que noite após noite acompanha a chegada de homens em busca de sexo fácil e de prostitutas. Numa noite chuvosa, a única espectadora do cinema é uma deslumbrante prostituta num vestido vermelho, algo como uma aparição de algum filme que o projecionista teria assistido anos antes. Aproveitando a solidão da moça, ele aproveita e saca outra película que tem guardada em seu estoque: Cantando na chuva. A moça, surpresa, rasga um sorriso com a poesia do momento.


10.  Splendor, 1989, dir. Ettore Scola

Marcelo Mastroiani é dono de um cinema numa cidadezinha italiana, o Splendor. Como há muito tempo os espectadores dos filmes que traz para assistir não são suficientes para pagar as dívidas, ele se vê obrigado a vender o prédio para construção de uma loja de departamentos. Nesta obra, Ettore Scola passeia pela história do cinema na Itália, desde os tempos do cinema itinerante, montando uma tela em praça pública para exibir filmes silenciosos para comunidades de moradores em vilarejos, contando com a ajuda local para apagar os candeeiros das praças para diminuir a luz e ajudar na projeção. Vale ainda apontar para a presença da personagem Luigi, o ajudante do Splendor, cinéfilo que conhece tudo de cinema e tem nomes de filmes, estrelas e diretores na ponta da língua.


sábado, 12 de agosto de 2017

Catando imagens digitais


            Quando adolescente pude comprar uma câmera digital. Uma filmadora, para ser mais preciso. Esperava com ela saciar minhas aspirações criadoras, de contador de histórias. Mas algo desta experiência de contato próximo com uma câmera me incomodava. As imagens que gravava não tinham a qualidade que apresentam os filmes que via. E eu queria fazer filmes como aqueles, claro sabendo das limitações materiais, mas esperando que a câmera me fornecesse uma imagem limpa. Algo que pudesse aproximar minhas produções modestas daquelas que admirava. Aproximar meu filme feito com câmera de 900 reais dos filmes filmados em película. Comecei a aceitar, relutantemente, a diferença. Aproveitei para aprender alguns detalhes artísticos. Se tecnicamente pode ser que não tivesse imagem semelhante, ao menos em composição e iluminação de quadro pudesse fazer algo melhor. De qualquer jeito, os “problemas” que me incomodavam muito permaneciam lá: as silhuetas de corpos em movimento se perdiam em quadriculados típicos da imagem digital; o microfone captava o som dos fios ou o que quer mais que estivesse solto dentro da câmera, quando filmava em movimento, com a câmera na mão; o microfone ainda captava a alavanca de zoom sendo operada. Tudo isto me incomodava e eu queria fazer filmes o mais profissionalmente possível. O caso é que o “profissionalismo” que eu buscava se encontrava diretamente ligado a uma estética do filme (que inviabiliza a câmera, mascara o fato de ser um filme) e uma forma de produzir (os programas e profissionais que “limpam” o filme). O que não conhecia então é a existência de vários cinemas que lutam contra isto.

***

            Em minhas pesquisas sobre filmes, em minhas buscas cinefílicas, encontrei Prazeres desconhecidos (2002), do chinês Jia Zhangke. Cheguei a este autor como costumo chegar a tantos outros: a acumulação de citações e referências à sua obra nas críticas, nas colunas, nas entrevistas sobre cinema. Pouco lembro do filme, mas lembro do impacto que causou em mim as imagens filmadas em digital. Escolhi assisti Prazeres desconhecidos porque tinha lido um texto em que dizia que tinha sido filmado em DV. Conhecia o formato e fiquei curioso de ver um filme “profissional” feito em DV, que até onde sei foi criado para ficar no lugar do VHS. E uma das coisas que mais me deixou impactado com o filme foi exatamente a má qualidade da gravação em digital, e como isto não parecia ser tão importante para Jia construir seu filme. Uma coisa lembro com certa clareza: o mesmo “problema” que via em minha câmera, vi no filme de Jia. As imagens quadriculadas, não por conta da baixa qualidade da cópia em que vi o filme, e sim pelo formato em que o filme havia sido gravado. Porque era o mesmo “problema” que tinha em minha câmera digital: as bordas dos corpos em movimento não desenhando um tracejado preciso. O que me passei na época foi a relação entre o digital e a modernização trazida à sociedade pelos mecanismos do capital. 15 anos separam o lançamento de Prazeres desconhecidos da data em que escrevo este texto. Nestes 15 anos as câmeras DV deram lugar à câmera em DVD, que deu lugar ao armazenamento em cartão de memória ou HD interno, a imagem deixou de ter qualidade de 720p, para 1080p, hoje já se encontrando em 4k – formato que, dizem, aproxima o digital da película de alta qualidade. O digital visto sob esta perspectiva poderia ser considerada como um formato terrivelmente arriscado para se filmar. Um filme gravado em digital, daqui alguns anos, estará marcado pela idade do formato em que fora filmado (foi um dos motivos que levou Richard Linklater a optar por filmar Boyhood em película). Em parte, é o que acontece com Prazeres desconhecidos. E coisa que não acontecia com o filme em película – a má qualidade do filme se apresenta em maior granulação da imagem, o que de longe é visto como uma má qualidade ou um aspecto datado. Prazeres desconhecidos poderá perder este caráter de “datado” caso seja feita uma restauração tal como se costuma fazer de certos filmes – ajustando cores, sons. O que acontece é que o objetivo de Jia não era de fazer um filme “limpo”. O digital é parte deste mundo moderno, desta nova fase da sociedade globalizada.
            Bom lembrar que Jia não foi único no uso do digital, muito menos pioneiro. Devemos lembrar de Lars von Trier, que para além de seu uso do plano do dogma por ele desenhado junto a outros cineastas dinamarqueses, adicionou à conta a filmagem de longas-metragem em digital. Coisa que cabia perfeitamente dentro do novo mundo que Trier queria trabalhar em seus filmes pós-dogma. O digital permite maior liberdade para a câmera de entrar na ação, de dar ar frenético. É o que Trier faz em seus filmes, mesmo naqueles em que não mais utiliza uma tecnologia menor para produção (seu constante e nem sempre justificado uso da câmera na mão). Jia faz o contrário em Prazeres desconhecidos.

***

            Uma dos usos que mais me chamou atenção com o uso do digital partiu de um filme que não esperava ter esse discurso tão bem desenvolvido. E num filme realizado não muito distante cronologicamente de Prazeres desconhecidos. De 2000, Catadores e eu é um filme a primeira vista bastante singelo de Agnes Varda. Mais uma vez Varda nos convidando para o seu mundo, sua paixão pelos gatos, para dentro de sua casa, para suas viagens, para sua vizinhança. Mas desta vez há algo de diferente: o uso do digital. Coisa que ela deixa bem claro, desde o início. Se se mostra carregando a câmera, consideravelmente mais simples, mais leve, mais maleável que as outras em película – e de menores gastos. Para os projetos de Varda, nada poderia casar melhor do que uma câmera digital.
            Antes de continuar o comentário sobre o filme de Varda, voltemos um pouco no tempo, para aquele 1994 em Lisboa com Wim Wenders. O céu de Lisboa se dirige diretamente a esta transformação no fazer fílmico. A passagem da película para o digital. O cineasta em crise que desaparece e arma crianças da vizinhança com câmeras digitais que filmam inúmeras inutilidades. Verdade, o lixo imagético produzido pelo digital é enorme! (Demos uma olhada breve na internet). Ao momento em que Wenders faz este filme duas coisas se somavam: a má qualidade dos equipamentos digitais e a incapacidade dos profissionais de cinema em saber trabalhar com digital. O que nos traz de volta a Varda. Um filme sobre as pessoas que catam o que é jogado fora pelos outros é tema interessante para um filme: mais interessante ainda é fazer este filme em digital, quando a capacidade e falta de culpa em filmar tudo, jogar fora muito, utilizar de fato pouco, é muito mais fácil (e barato). Assim como suas personagens que se alimentam do que sobra nas feiras, do que os supermercados jogam fora porque “não parece mais bonito para o comprador”, Varda recupera as imagens que seriam imediatamente descaradas por qualquer montador com algum senso estético. Um senso estético desenvolvido ao longo de décadas de fazer cinema. Daí aparecer em Os catadores e eu imagens em que Varda, supostamente, deixou a câmera filmando, e na tela vemos o chão e a tampa da tela pendurada por uma cordinha. Um plano naturalmente descartável – não para Varda, seguindo a lógica do discurso de suas personagens.
            O que me remonta a um dado curioso que lembro de ter apreendido ainda adolescente, quando de minha crise com a câmera digital que tinha comprado, incapaz à época de fazer a associação. Sem destino (1969) trouxe para o cinema hollywoodiano algo de novo para sua estética, que até então seria encarado como “problema”, “defeito”, ou mesmo falta de “profissionalismo” dos envolvidos. Quando se filma um pôr-do-sol um problema frequente é a luz batendo nas lentes da câmera e criando manchas (vários círculos que aparecem na imagem final). Até os anos 1960 este tipo de imagem seria descartada de imediato da montagem. Seria uma imagem defeituosa que não merece fazer parte do filme. Isso porque não coaduna com a estética realista que o cinema tradicional prefere passar: enganar o espectador o máximo de tempo possível do realismo dos eventos que ocorrem a sua frente. Não devemos nos dar conta de que há cortes no filme, muito menos de que há uma câmera. Os cortes devem ser invisíveis (daí as regras de sequência), assim como a câmera (nada de imagens de sombra ou reflexo da câmera). As manchas da luz do sol nas lentes é sinal de que o que estamos assistindo é um filme e quebraria a “ilusão” do real – tão cuidadosamente trabalhada por todos os outros departamentos que cuidam da aparência de um filme (figurino, cenários). Para uma rebelião, uma nova estética. Sem destino queria apresentar ao mundo o cinema da contracultura, certamente não poderia fazê-lo sob a forma do velho cinema.

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            Assistir a Os catadores e eu despertou em mim a ciência de que o digital é uma nova forma de fazer cinema. Nada de muito original de minha parte. Um momento em que o cinema se abre mais amplamente para a independência dos cineastas. Abre as portas para que mais pessoas possam fazer cinema. Para que possam fazer seus filmes. Ampliara as fronteiras da estética cinematográfica. Varda entendeu isso. Em parte porque seu cinema já se desenhava neste sentido, o digital foi um adendo. Seu cinema de caráter coletivista, familiar. Feito em casa, não em estúdio. O que é mais importante de Os catadores e eu, sob esta perspectiva, é que o digital não deve ser utilizado simplesmente como mais um formato de filmar. Deve ser enxergado como meio para construção de uma nova estética do cinema. Em que os restos podem (e devem) ser reaproveitados. Não é defeito deixar a câmera aparecer, não é defeito o microfone captar mais do que o movimento dos atores e suas falas. É próprio do digital. Antes mesmo do digital Abbas Kiarostami já fazia filme em que ficava explícito ser um filme. Em Close-up, a câmera segue suas personagens e o diretor e operador de câmera conversam. Microfones são instalados nas personagens. O microfone deixa de seu escutado numa cena externa. Isto Kiarostami fez ainda em película. Em digital, as opções se ampliam. Não é por qualquer “defeito” técnico que o espectador deixará de acompanhar o filme – esta parece ser uma das principais considerações dos defensores do realismo do filme de ficção, em que a técnica deve estar invisível. A tentativa de fazer a ficção “credível”. Mas o digital passou a ser abraçado pelos cineastas, mesmo pelo grande cinema de Hollywood. E assim, os realizadores menores, independentes, passaram a se valer de técnicas avançadas (em alguns casos de alto custo para o tipo de filme que fazem, para o tipo de investimento que podem fazer) buscando aproximar-se da estética padrão corrente no cinema mundial. Foi esta busca pela padronização com o que faz o grande cinema que me deixou em conflito com o digital. Este conflito não era só meu. Porque há a possibilidade de tachar um filme de “amador” simplesmente pelo abraçamento do digital em sua crueza. Uma câmera de película 35mm não era viável para qualquer realizador, e a maioria alugava o equipamento. O digital é acessível a todos. O que não é acessível a todos é a estética final empregada nos filmes. O que tende a universalizar os filmes. Criar uma estética padrão do que é o “bom cinema”. O filme de cores controladas, de som trabalhado exaustivamente em pós-produção para inserir detalhes ínfimos com maior clareza. O digital deveria ser o momento de assumir riscos por parte do realizador. De mostrar os restos como alimentos de boa qualidade. Quiçá adotar algumas características do primeiro cinema? (Como o duplo pouso na lua em Viagem à lua, de Méliès).

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            Isto dito, chegou a hora de fazer as pazes com minha velha câmera. Pena, ela não funciona mais. Males do século XXI.

domingo, 21 de dezembro de 2014

Sobre a diferença entre cinema e TV

Estamos vivendo tempos em que muito se vem falando sobre o crescimento da qualidade das obras ficcionais televisivas em comparação com o cinema. Em primeiro lugar devemos deixar bem clara o primeiro equívoco desta afirmação: o cinema vai mal em termos de qualidade nos EUA e ainda assim entre os filmes dos grandes  estúdios. O que isso significa? Que finalmente estão abrindo os olhos para enxergar o arriscado negócio que é a produção de filmes. Os grandes estúdios estadunidenses gastam fortunas na sorte. Tal como jogadores profissionais de pôquer, os estúdios se esbarram em grandes decepções quando suas grandes esperanças viram cinzas.

Este é o grande momento que afirma que estas obras de alto orçamento podem visar fortunas tão extensas como as que foram gastas na composição de uma obra fílmica, mas não valem o que custam. O espectador não vê nada de novo nos filmes de cinema e se volta para as produções televisivas que lhe oferecem conteúdos semelhantes. E quem já assistiu um episódio de Game of Thrones pode atestar que nos quesitos de acessórios em nada tal produção fica a dever a grandes obras do cinema recente, tal como O senhor dos anéis. Meu objetivo no presente texto não é o de apontar o que teria de artístico em uma obra que faltaria em outra, mas o de demarcar quais seriam as diferenças essenciais entre cinema e tevê.

Porque este aparente declínio do cinema hollywoodiano, em especial, se dá exatamente por esta confusão. As obras feitas pelos grandes estúdios da Meca do cinema estadunidense podem muito bem se encaixar no espaço pequeno do televisor. Por mais impressionantes que explosões e batidas de carros sejam emocionantes na tela grande, seu impacto será semelhante na tela de televisão. O que poderia ser feito de diferente pelo cinema para poder se distanciar destas outras mídias que desejam substituí-lo? Explorar as suas particularidades, tal como já pensavam os primeiros pensadores de cinema ainda na época do cinema mudo. Quais seriam as particularidades do cinema em contraposição à televisão, e mesmo ao computador?

Num primeiro momento um detalhe que nos passa despercebido: a luz. Não a luz proveniente do quadro, mas aquela que ilumina o outro lado da tela, o espaço em que se encontra o espectador. Que diferença isso teria? Muita! Assistindo à televisão estamos com a luz acesa, mas para, além disso, temos todo um mundo heterogêneo de possibilidades que se nos abrem a nossa frente. O que isso significa? Que o espectador de televisão não consegue emergir por completo na obra que assiste, ou tem muita dificuldade em fazê-lo. Porque qualquer outra atividade pode chamar sua atenção num primeiro momento e distraí-lo de seu objetivo primordial que era assistir a uma obra audiovisual.

Aqui se dá um segundo problema, que se dá como consequência do que fora apresentado no parágrafo anterior. A forma da obra audiovisual é prejudicada. Uma obra televisiva tem a necessidade de conquistar o espectador logo em suas primeiras cenas, porque o desinteresse deste pode significar a troca de canal e a perda de audiência por parte da emissora transmissora do programa. No cinema é dada ao filme a oportunidade de conquistar o espectador, fazendo com que quem assiste à obra entre no jogo desenhado pelo autor que aos poucos vai crescendo, sem a necessidade de clichês de construção narrativa de crescimento e diminuição de intensidade da ação.

Daí pode-se tirar outro problema. O espectador pode muito bem fazer outra atividade enquanto “assiste” a uma obra na televisão. Este ponto é muito importante e foi o guia de criação de televisão mais popular que tivemos até aqui. Ele visa inteirar o espectador de todos os detalhes da trama que se desenrola, se valendo principalmente de diálogos. O espectador não precisa estar na mesma sala que seu televisor e ainda assim ele terá ciência do que se desenrola na tela. Sabe porque os atores fazem um trabalho semelhante ao do contador de histórias que narra um conto se valendo até mesmo de um narrador. Por vezes os atores contam uma história que já fora mostrada em cenas passadas. Unida a esta técnica do ator recitador de textos há o uso da música. Esta cresce nos momentos certos para poder salientar os sentimentos envolvendo as cenas que se apresentam. Se não estou na sala do televisor sei o que ocorre na cena assim como sei o que sentem os personagens. Tudo isso me é oferecido pelo áudio da obra.

É uma construção que foi desenvolvida se valendo de duas características especiais da televisão: 1) o tamanho reduzido dos primeiros televisores que não proporcionava boas experiências imagéticas ao espectador e tinha que se fazer compensar por meio do som; 2) o desinteresse do espectador na imersão na obra televisiva que remete ao hábito de escutar rádio, quando as pessoas podiam estar com uma rádio ligada e ao mesmo tempo ler um jornal ou livro. Este desinteresse é muito pontual, tal como pode ser com a relação do sujeito com um rádio – dar atenção exclusiva a um programa radiofônico.

Então o leitor me indaga: e se eu apagar as luzes da sala de minha casa? Bom, não mudará muita coisa. As luzes apagadas não farão os objetos deixarem de existir ao seu redor. Ainda existirá a possibilidade de levantar, dar alguns passos e se por em frente à geladeira cheia de opções para um bom lanche enquanto se assiste televisão. No cinema isso não só é mais difícil como não recomendável – apesar de as gerações mais jovens não se importarem com isso e até mesmo atenderem o celular no meio da exibição (geração essa da qual faço parte, apesar de escrever como se fosse mais velho). A comida não está num cômodo ao lado, tal como não é gratuita – assim como o espetáculo também não o é.

Temos aí uma grande diferença entre as duas plataformas: uma muito mais propensa ao uso do diálogo, a outra mais propensa a utilização imagética. As novelas brasileiras, as sitcom estadunidenses, os seriados da tevê a cabo que ganham todo o mundo, são alguns exemplos deste modelo estético radicalmente diferente e que deixa logo de cara porque o cinema hollywoodiano passa por tantas dificuldades. Porque a tevê se especializou em fazer dramas escritos, aprendeu a construir personagens cativantes. E neste quesito ela sai na frente. Um personagem que encontro todas as semanas será mais memorável do que aquele que encontro somente uma vez no ano. Mas o cinema tem algo que passa a frente: o uso imagético é universal.

Para que possamos atestar esta universalidade da linguagem imagética basta passar para uma criança um filme de Chaplin. Ela não lerá os cartões explicativos, mas isso será desnecessário. O que realmente vale para ele são os trejeitos de Carlitos. Como ele anda, como ele se mete em confusão, e como ele sai delas. Carlitos é síntese do cinema porque não precisa de palavras para ser engraçado. E é muito sintomático como, depois que Chaplin se rendeu ao cinema falado, seus filmes passaram a ser cada vez mais melancólicos. O cômico em seus filmes estava sempre no imagético, naquilo que qualquer criança que não saiba ler, de qualquer parte do mundo, saberá identificar.

A televisão está submissa à linguagem falada e aos trejeitos do teatro. Quem ainda reina são o roteirista e o ator. A tevê compartilha com o cinema uma mesma linguagem, mas não dividem um mesmo modelo criativo. No cinema o artista é o autor do filme, o diretor, a mente responsável por juntar tudo em uma obra e fazê-la única, eterna, e universal: tal como Chaplin faz. Se a piada de Chaplin era o rabo do cachorro que ele colocou dentro de suas calças e cujo rabo sai por um buraco das calças, na sitcom estadunidense ela sairá da boca de algum personagem que apontará o cômico da situação. Se em Hitchcock o conflito da cena esta num copo de leite que pode estar envenenado, no seriado televisivo estará na conversa de um personagem com outro.

A diferença posta logo no início do texto sobre a relação da luz acesa com a apreciação da obra se dá pela imersão do espectador na obra. Na sala de cinema, em especial, o mundo que rodeia o espectador deixa de existir, daí a necessidade da criação imagética poderosa, que possa fazer quem assiste esquecer o mundo material que o cerca para poder imergir naquele outro mundo. Na televisão não existe esta imersão. O espectador pode gostar de um personagem ou outro, se identificar com eles e com as situações que eles vivem, mas nunca será capaz de se por no lugar deles e sentir-se naquele mundo. Há quem diga, a respeito de determinados filmes de cinema, que é possível mesmo sentir o cheiro das locações. Isso sim é a verdadeira imersão num mundo imaginário.

Não tomem como conclusão de que as obras televisivas são inferiores às cinematográficas. Ainda há muito à televisão a que provar para alçar a posição de arte – não basta compartilhar uma mesma linguagem com uma forma artística já estabelecida. É necessário fazer por merecer. E existem alguns seriados, em especial, que o fazem. Como exemplo cito Mad Men (citada até mesmo por Bernardo Bertolucci como sendo uma grande obra) e Breaking Bad. São duas obras fantásticas que podem ser chamadas de arte.

Novamente, não é porque dividem uma mesma linguagem em sua criação que cinema e televisão são uma mesma coisa.

Para retomarmos a problemática pela qual começamos o texto, desta vez para encerrá-lo, temos um cinema comercial cujas “fórmulas” são tão simples que foram reutilizadas por sua, até então, prima pobre: a tevê. Mas ao contrário do que dizem por aí, o cinema não vai tão mal. É verdade que não há nenhuma vanguarda em ação, mas também não há na tevê. Mas a criatividade dos cineastas se mantém. Michael Haneke, Aleksandr Sokurov, Richard Linklater, Abbas Kiarostami, Kleber Mendonça Filho e Pedro Costa, para citar alguns, continuam na ativa fazendo filmes muito bons e provando que o cinema não foi nem está tão próximo de ser destronado. Talvez o que esteja acontecendo seja uma queda do sistema tradicional de comercialização “audiovisual”. Como diria o argentino Juan José Campanella: o cinema pode perder grande parte do público, mas não deixará de existir, pode passar a ser uma arte somente para os amantes de cinema.


Este não é um texto definitivo, tão somente um aglomerado de provocações para o leitor pensar a questão trabalhada.