Quando
adolescente pude comprar uma câmera digital. Uma filmadora, para ser mais
preciso. Esperava com ela saciar minhas aspirações criadoras, de contador de
histórias. Mas algo desta experiência de contato próximo com uma câmera me
incomodava. As imagens que gravava não tinham a qualidade que apresentam os
filmes que via. E eu queria fazer filmes como aqueles, claro sabendo das
limitações materiais, mas esperando que a câmera me fornecesse uma imagem
limpa. Algo que pudesse aproximar minhas produções modestas daquelas que
admirava. Aproximar meu filme feito com câmera de 900 reais dos filmes filmados
em película. Comecei a aceitar, relutantemente, a diferença. Aproveitei para
aprender alguns detalhes artísticos. Se tecnicamente pode ser que não tivesse
imagem semelhante, ao menos em composição e iluminação de quadro pudesse fazer
algo melhor. De qualquer jeito, os “problemas” que me incomodavam muito
permaneciam lá: as silhuetas de corpos em movimento se perdiam em quadriculados
típicos da imagem digital; o microfone captava o som dos fios ou o que quer
mais que estivesse solto dentro da câmera, quando filmava em movimento, com a
câmera na mão; o microfone ainda captava a alavanca de zoom sendo operada. Tudo
isto me incomodava e eu queria fazer filmes o mais profissionalmente possível.
O caso é que o “profissionalismo” que eu buscava se encontrava diretamente
ligado a uma estética do filme (que inviabiliza a câmera, mascara o fato de ser
um filme) e uma forma de produzir (os programas e profissionais que “limpam” o
filme). O que não conhecia então é a existência de vários cinemas que lutam
contra isto.
***
Em
minhas pesquisas sobre filmes, em minhas buscas cinefílicas, encontrei Prazeres desconhecidos (2002), do chinês
Jia Zhangke. Cheguei a este autor como costumo chegar a tantos outros: a
acumulação de citações e referências à sua obra nas críticas, nas colunas, nas
entrevistas sobre cinema. Pouco lembro do filme, mas lembro do impacto que
causou em mim as imagens filmadas em digital. Escolhi assisti Prazeres desconhecidos porque tinha lido
um texto em que dizia que tinha sido filmado em DV. Conhecia o formato e fiquei
curioso de ver um filme “profissional” feito em DV, que até onde sei foi criado
para ficar no lugar do VHS. E uma das coisas que mais me deixou impactado com o
filme foi exatamente a má qualidade da gravação em digital, e como isto não
parecia ser tão importante para Jia construir seu filme. Uma coisa lembro com
certa clareza: o mesmo “problema” que via em minha câmera, vi no filme de Jia.
As imagens quadriculadas, não por conta da baixa qualidade da cópia em que vi o
filme, e sim pelo formato em que o filme havia sido gravado. Porque era o mesmo
“problema” que tinha em minha câmera digital: as bordas dos corpos em movimento
não desenhando um tracejado preciso. O que me passei na época foi a relação
entre o digital e a modernização trazida à sociedade pelos mecanismos do
capital. 15 anos separam o lançamento de Prazeres
desconhecidos da data em que escrevo este texto. Nestes 15 anos as câmeras
DV deram lugar à câmera em DVD, que deu lugar ao armazenamento em cartão de
memória ou HD interno, a imagem deixou de ter qualidade de 720p, para 1080p,
hoje já se encontrando em 4k – formato que, dizem, aproxima o digital da
película de alta qualidade. O digital visto sob esta perspectiva poderia ser
considerada como um formato terrivelmente arriscado para se filmar. Um filme
gravado em digital, daqui alguns anos, estará marcado pela idade do formato em
que fora filmado (foi um dos motivos que levou Richard Linklater a optar por
filmar Boyhood em película). Em
parte, é o que acontece com Prazeres
desconhecidos. E coisa que não acontecia com o filme em película – a má
qualidade do filme se apresenta em maior granulação da imagem, o que de longe é
visto como uma má qualidade ou um aspecto datado. Prazeres desconhecidos poderá perder este caráter de “datado” caso
seja feita uma restauração tal como se costuma fazer de certos filmes –
ajustando cores, sons. O que acontece é que o objetivo de Jia não era de fazer
um filme “limpo”. O digital é parte deste mundo moderno, desta nova fase da
sociedade globalizada.
Bom
lembrar que Jia não foi único no uso do digital, muito menos pioneiro. Devemos
lembrar de Lars von Trier, que para além de seu uso do plano do dogma por ele
desenhado junto a outros cineastas dinamarqueses, adicionou à conta a filmagem
de longas-metragem em digital. Coisa que cabia perfeitamente dentro do novo
mundo que Trier queria trabalhar em seus filmes pós-dogma. O digital permite
maior liberdade para a câmera de entrar na ação, de dar ar frenético. É o que
Trier faz em seus filmes, mesmo naqueles em que não mais utiliza uma tecnologia
menor para produção (seu constante e nem sempre justificado uso da câmera na
mão). Jia faz o contrário em Prazeres
desconhecidos.
***
Uma
dos usos que mais me chamou atenção com o uso do digital partiu de um filme que
não esperava ter esse discurso tão bem desenvolvido. E num filme realizado não
muito distante cronologicamente de Prazeres
desconhecidos. De 2000, Catadores e
eu é um filme a primeira vista bastante singelo de Agnes Varda. Mais uma
vez Varda nos convidando para o seu mundo, sua paixão pelos gatos, para dentro
de sua casa, para suas viagens, para sua vizinhança. Mas desta vez há algo de
diferente: o uso do digital. Coisa que ela deixa bem claro, desde o início. Se
se mostra carregando a câmera, consideravelmente mais simples, mais leve, mais
maleável que as outras em película – e de menores gastos. Para os projetos de
Varda, nada poderia casar melhor do que uma câmera digital.
Antes
de continuar o comentário sobre o filme de Varda, voltemos um pouco no tempo,
para aquele 1994 em Lisboa com Wim Wenders. O
céu de Lisboa se dirige diretamente a esta transformação no fazer fílmico.
A passagem da película para o digital. O cineasta em crise que desaparece e
arma crianças da vizinhança com câmeras digitais que filmam inúmeras
inutilidades. Verdade, o lixo imagético produzido pelo digital é enorme! (Demos
uma olhada breve na internet). Ao momento em que Wenders faz este filme duas
coisas se somavam: a má qualidade dos equipamentos digitais e a incapacidade
dos profissionais de cinema em saber trabalhar com digital. O que nos traz de
volta a Varda. Um filme sobre as pessoas que catam o que é jogado fora pelos
outros é tema interessante para um filme: mais interessante ainda é fazer este
filme em digital, quando a capacidade e falta de culpa em filmar tudo, jogar
fora muito, utilizar de fato pouco, é muito mais fácil (e barato). Assim como
suas personagens que se alimentam do que sobra nas feiras, do que os
supermercados jogam fora porque “não parece mais bonito para o comprador”,
Varda recupera as imagens que seriam imediatamente descaradas por qualquer
montador com algum senso estético. Um senso estético desenvolvido ao longo de
décadas de fazer cinema. Daí aparecer em Os
catadores e eu imagens em que Varda, supostamente, deixou a câmera
filmando, e na tela vemos o chão e a tampa da tela pendurada por uma cordinha.
Um plano naturalmente descartável – não para Varda, seguindo a lógica do
discurso de suas personagens.
O
que me remonta a um dado curioso que lembro de ter apreendido ainda
adolescente, quando de minha crise com a câmera digital que tinha comprado,
incapaz à época de fazer a associação. Sem
destino (1969) trouxe para o cinema hollywoodiano algo de novo para sua
estética, que até então seria encarado como “problema”, “defeito”, ou mesmo
falta de “profissionalismo” dos envolvidos. Quando se filma um pôr-do-sol um
problema frequente é a luz batendo nas lentes da câmera e criando manchas
(vários círculos que aparecem na imagem final). Até os anos 1960 este tipo de
imagem seria descartada de imediato da montagem. Seria uma imagem defeituosa
que não merece fazer parte do filme. Isso porque não coaduna com a estética
realista que o cinema tradicional prefere passar: enganar o espectador o máximo
de tempo possível do realismo dos eventos que ocorrem a sua frente. Não devemos
nos dar conta de que há cortes no filme, muito menos de que há uma câmera. Os
cortes devem ser invisíveis (daí as regras de sequência), assim como a câmera
(nada de imagens de sombra ou reflexo da câmera). As manchas da luz do sol nas
lentes é sinal de que o que estamos assistindo é um filme e quebraria a
“ilusão” do real – tão cuidadosamente trabalhada por todos os outros
departamentos que cuidam da aparência de um filme (figurino, cenários). Para
uma rebelião, uma nova estética. Sem
destino queria apresentar ao mundo o cinema da contracultura, certamente
não poderia fazê-lo sob a forma do velho cinema.
***
Assistir
a Os catadores e eu despertou em mim
a ciência de que o digital é uma nova forma de fazer cinema. Nada de muito
original de minha parte. Um momento em que o cinema se abre mais amplamente
para a independência dos cineastas. Abre as portas para que mais pessoas possam
fazer cinema. Para que possam fazer seus filmes. Ampliara as fronteiras da
estética cinematográfica. Varda entendeu isso. Em parte porque seu cinema já se
desenhava neste sentido, o digital foi um adendo. Seu cinema de caráter
coletivista, familiar. Feito em casa, não em estúdio. O que é mais importante
de Os catadores e eu, sob esta
perspectiva, é que o digital não deve ser utilizado simplesmente como mais um
formato de filmar. Deve ser enxergado como meio para construção de uma nova
estética do cinema. Em que os restos podem (e devem) ser reaproveitados. Não é
defeito deixar a câmera aparecer, não é defeito o microfone captar mais do que
o movimento dos atores e suas falas. É próprio do digital. Antes mesmo do
digital Abbas Kiarostami já fazia filme em que ficava explícito ser um filme.
Em Close-up, a câmera segue suas
personagens e o diretor e operador de câmera conversam. Microfones são
instalados nas personagens. O microfone deixa de seu escutado numa cena
externa. Isto Kiarostami fez ainda em película. Em digital, as opções se
ampliam. Não é por qualquer “defeito” técnico que o espectador deixará de
acompanhar o filme – esta parece ser uma das principais considerações dos
defensores do realismo do filme de ficção, em que a técnica deve estar
invisível. A tentativa de fazer a ficção “credível”. Mas o digital passou a ser
abraçado pelos cineastas, mesmo pelo grande cinema de Hollywood. E assim, os
realizadores menores, independentes, passaram a se valer de técnicas avançadas
(em alguns casos de alto custo para o tipo de filme que fazem, para o tipo de
investimento que podem fazer) buscando aproximar-se da estética padrão corrente
no cinema mundial. Foi esta busca pela padronização com o que faz o grande
cinema que me deixou em conflito com o digital. Este conflito não era só meu.
Porque há a possibilidade de tachar um filme de “amador” simplesmente pelo
abraçamento do digital em sua crueza. Uma câmera de película 35mm não era
viável para qualquer realizador, e a maioria alugava o equipamento. O digital é
acessível a todos. O que não é acessível a todos é a estética final empregada
nos filmes. O que tende a universalizar os filmes. Criar uma estética padrão do
que é o “bom cinema”. O filme de cores controladas, de som trabalhado
exaustivamente em pós-produção para inserir detalhes ínfimos com maior clareza.
O digital deveria ser o momento de assumir riscos por parte do realizador. De
mostrar os restos como alimentos de boa qualidade. Quiçá adotar algumas
características do primeiro cinema? (Como o duplo pouso na lua em Viagem à lua, de Méliès).
***
Isto
dito, chegou a hora de fazer as pazes com minha velha câmera. Pena, ela não
funciona mais. Males do século XXI.
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