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quarta-feira, 19 de agosto de 2015

O que é a crítica de cinema, afinal?

André Bazin
O que é crítica, afinal? Esta é uma pergunta oportuna nestes tempos em que qualquer pessoa pode escrever sobre um filme, um livro ou um disco. O que é preciso primeiro apontarmos é que nem todo texto que se põe a comentar uma obra artística é uma crítica. Crítica é tão somente uma das formas pelas quais é possível escrever um texto. Se dermos um passeio rápido pela internet o que encontraremos é uma proliferação de resenhas, resumos, não críticas. O que inicialmente surge como algo positivo - a democratização do acesso à obra de arte - torna-se conflituoso: muitos desses textos não são críticas, apesar de se declararem enquanto tal. Este poder que o espectador comum ganha pode ser extremamente prejudicial à arte, já que muitos dos comentaristas possuem certa popularidade. Nesta vontade de escrever sobre os filmes ou livros de que tanto gostam, os chamados "críticos" da rede assumem um trabalho abjeto iniciado pela mídia impressa: o trabalho abjeto de se dar uma nota. Por que dar nota a uma obra artística? Qual o sentido de objetivar a qualidade da obra numa mensuração quantitativa?

O primeiro aspecto que devemos abordar aqui é a subjetividade. Não do artista, mas do espectador. Sim, porque muitos destes textos criados para a internet partem de uma concepção rasa do que seja arte, baseada em muitos pré-conceitos e lugar-comum. Destes pré-conceitos um muito comum diz respeito à apreciação da obra, a obra enquanto evocativa de sentimentos. É verdade que um dos papeis das artes é provocar no espectador sentimentos, mas será que devemos basear uma crítica em minhas preferências pessoais? Quem sou eu para impor meus gostos sobre os outros, ou até mesmo, desmerecer determinadas obras porque eu não gostei dela? A crítica não pode descair para o lado sentimental de um espectador. O que eu gosto pode ser diferente do que você gosta. No filme Crítico, Kleber Mendonça entrevista um profissional da área que é certeiro em seu ofício: o trabalho do crítico é encontrar a tese do autor e ver se ele deu bom tratamento à ela. Podemos concluir com isto que o trabalho do crítico de análise do filme é objetivo? Sim.

Paulo Emílio Sales Gomes
E porque não fazer a mensuração quantitativa da qualidade do filme já que a crítica é objetiva? Em primeiro lugar, este simbolismo ganha maior poder do que deveria. Muitos são os "leitores" que abrem uma crítica, correm a página somente para ver o número de estrelas dadas ao filme. E tudo passa a se resumir a este símbolo. Por mais que o texto elogie o filme, que procure mostrar que o filme é "bom", as três estrelas significarão ao "leitor": não, este filme não vale a pena ser visto. Mas desta formulação parte outro problema: a crítica enquanto indicação de uma obra. Muitas críticas são feitas assim, e muitos são os leitores que buscam uma ajuda "competente" na hora de escolher o filme que irá assistir. A crítica, enquanto indicação do que assistir no cinema, é um tanto pueril. É verdade que bons críticos são capazes de desempenhar este trabalho de indicação de um filme. Mas lembremos que os grandes nomes da crítica de cinema mundial escreveram suas críticas mais famosas (e difundidas através das décadas) em revistas mensais, ou seja, não como indicação mas como aprofundamento. A crítica deveria fazer um serviço posterior, de fornecer uma ampliação das possibilidades interpretativas ao espectador. Assisto ao filme, leio críticas e com o auxílio delas (não necessariamente por elas) passo a desenvolver um panorama do que me foi apresentado. Crio teorias, formulo interpretações aprofundadas. O filme passa a sobreviver pós-sessão.

Voltemos: a crítica de arte não pode se ancorar em minha perspectiva do que é ou não belo. O emocional é subjetivo, ou seja, difere de pessoa para pessoa (e até mesmo de situação para situação: se não gostei de filme A anos atrás, nada indica que venha a desgostá-lo dele hoje). O maior problema de quem defende esta ideia é a limitação interpretativa das obras a que se porá a criticar. Em especial porque parte somente da trama do filme ao invés de perceber como a trama é apresentada - lembremos o comentário no filme de Kleber Mendonça citado anteriormente. E este como é muito importante para a compreensão da arte. Toda obra artística é composta entre a forma e o conteúdo. O trabalho do crítico é analisar o trato desta relação entre o que é apresentado e como é apresentado. Ao criticar uma obra fílmica devemos perceber o posicionamento da câmera, dos personagens, como a cena montada e como isso se casa com a trama. Fazer o resumo da trama como se fosse crítica e a ele adicionar uma nota é permanecer distante da obra, ou da arte. É não ver o caráter cinematográfico de uma obra de cinema.

François Truffaut
Na arte apresentam-se formas de olhar o mundo, e junto a eles a constituição de conceitos. Na simples compreensão da trama muito disso se perde. É o caso do cinema de Resnais, em especial Hiroshima, meu amor. Por muitos vista de modo simplista como uma obra de amor, a profundidade política da obra do filme se apresenta por meio da relação pautada entre o texto e a imagem. Com a constituição da montagem e a criação de uma temporalidade própria. E aquilo que primeiro se enxerga como uma "história de amor" torna-se um filme político. E para este serviço é mais que necessário, é essencial, para um crítico de cinema o conhecimento teórico profundo do cinema. Para que assim possa saber, também, separar seu modo de ler sua arte do modo como lê outras artes - e até ser capaz de reconhecer a inovação de alguns criadores. Este foi um dos grandes equívocos da crítica de cinema da primeira metade do século passado - não toda, claro. Já que o cinema conta histórias, podemos analisá-lo do mesmo jeito que uma obra literária. Terrível engano. Hitchcock passou boa parte de sua carreira sendo posto à margem do cinema "de primeira" porque filmava filmes policiais - gênero B na literatura. Para sua revitalização foram necessários críticos que assistissem cinema, ao invés de ouvidores de diálogo.

Neste sentido há ainda aqueles grupos que embebem-se de certa ideologia e passam a realizar suas críticas partindo deste ideário. Para além de permanecer somente no campo da trama - conteúdo - esta é uma forma de fazer crítica muitíssimo perigosa para a vida de uma obra de arte. Isso porque grandes artistas que não compactuam com a ideologia pregada - digamos, o marxismo ou o liberalismo - podem ser pregados numa cruz. E este, caro leitor, não é um grupo de críticos raros de se encontrar. Eles são muitos e encontram-se em todos os lugares. Os críticos que não gostam dos filmes soviéticos porque propagandeiam o comunismo, os marxistas que não gostam dos filmes hollywoodianos (não todos, mas boa parte) que defendem o "american way of life".

Serge Daney
A crítica ideológica pode trazer pontos positivos por defender novas estéticas, mas isso é muito raro de acontecer. O ideal a uma crítico é ser aberto às obras que lhes são apresentadas independente da ideologia. Porque a ideologia pode nos fazer perder a beleza de certas obras. Claro que ressalvas são sempre necessárias de serem feitas. Caso disso é o cinema nazista. Obviamente, se defender tal ideário é condenável. Mas a beleza de certos filmes não pode ser negada simplesmente porque não compactuo com o ideário ali por trás. É o caso de Olympia de Leni Riefenstahl. O importante aqui é fazermos a defesa do bom cinema e não da ideologia A ou B - e nem ressaltá-la enquanto se faz sua crítica.

Crítica imparcial é quase difícil de encontrar - e pode-se dizer que ela não existe. Até porque sempre defendemos (adotamos) uma perspectiva. Mas o que se deve ser encontrado numa crítica é esta permanência da obra mesmo depois da sessão. E se a obra não consegue se manter viva nestes momentos posteriores, será a crítica que explicitará esta falta.

As páginas a seguir são algumas das que realizam este tipo de crítica aqui defendida:


Segue a este texto, E o papel social da crítica de cinema?,  publicado em 24 de agosto de 2015.

Talvez, o melhor exemplo que se encontre aqui no blog: Adeus, Dragon-Inn | O pão nosso de cada dia

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Recordações da casa amarela por João Bénard da Costa

[texto retirado da Foco Revista de Cinema]

Recordações da Casa Amarela. Mesmo quem não leu muito, lembra-se logo de Dostoiévski e das Recordações da Casa dos Mortos. Sabe que não o vão levar para o canto da lareira e que a viagem não vai ser agradável. Casa Amarela por quê? A legenda seguinte - ainda estamos mergulhados no negro mais negro - esclarece: “Na minha terra chamavam casa amarela à casa onde guardavam os presos. Por vezes, quando brincávamos na rua, nós, crianças, lançávamos olhares furtivos para as grades escuras e silenciosas das janelas altas e, com o coração apertado, balbuciávamos: ‘Coitadinhos’...”.

Decorre o genérico. Ouvimos uma flauta, sons estranhos, gritos. A casa amarela não é uma prisão. É um manicômio. João de Deus já nos está a falar de lá, quando diz em off um texto de Céline (Mort à Crédit). Mas a luz chega à tela, e o que se inicia é um flashback. Vagaroso travelling sobre Lisboa, filmada do Tejo, descobrindo a parte mais bela da cidade, do Terreiro do Paço à Madre de Deus. Casas velhas? Como depois corrigirá Dona Violeta “barrocas Senhor João. Isto foi casa de marqueses e marquesas, de príncipes de Portugal”. Ninguém está a brincar, muito menos o realizador. Durante o filme, vezes sem conta, mergulhamos nestes bairros, em ruas, praças e becos. Tudo tão estranho, tão nosso desconhecido. Lisboa tem um verso e um reverso. O verso vê-se do rio e é bom para os poetas. O reverso vê-se em terra e é bom para os pintores. A cidade é secretíssima. Quem vê caras não vê corações. Para lá das fachadas, começam as surpresas. Fiquem os turistas com a ville blanche. Quem cá morrer sabe como tudo é escuro. Tão escuro que, no final - quando João de Deus reencarna em Nosferatu - João César não precisou de qualquer efeito para o enquadrar em décor expressionista. Murnau - para já não falar de Robert Wiene - precisou de estúdios e de grandes decoradores. Para João César, bastou-lhe colocar a câmera, enquadrar rigorosamente, e esperar pela luz. Os milagres acontecem. O pôster do filme - uma reprodução do quadro de Grosz John der Frauenmöde pintado em 1918 - não foi modelo do filme. Parece, antes, cópia dele. As artes têm, às vezes, coincidências singulares.

travelling do rio, não acaba, por acaso, na Madre de Deus. Também não é por acaso que a seqüência seguinte se passa numa capela, dedicada a Nossa Senhora, e que a primeira imagem que vemos nela é a de Nossa Senhora. Vemos mesmo Nossa Senhora antes de vermos João de Deus. É queRecordações da Casa Amarela é também - eu tenderia a dizer é sobretudo - um filme sobre a Mãe. A Mãe é o tema central destas Recordações. Por isso, o final do travelling faz raccord com a imagem barroca de Nossa Senhora. Grande plano, levemente em contre-plongée. Corte e contraplano. Quem vê a Virgem é João de Deus que conhecíamos de voz (o longo monólogo dos percevejos) mas só agora conhecemos em carne e osso. Está sentado na penumbra da igreja “ancestral, silenciosíssima e vazia”. Levanta-se devagar e vai-se embora, com paragem pela pia de água benta e pela caixa de esmolas. Depois de muita palavra, muito silêncio. É possível que o espectador levado pela provocação - ou pela truculência - do verbo abra mais os ouvidos do que os olhos. Será nossa culpa, não do realizador. Não se abre um filme com uma igreja por acaso. Descobriremos porquê muito mais adiante.



Mais adiante. Após a seqüência da leiteria com o Pom-Pom e Mimi, ou seja com o cãozinho e com a pega. João de Deus não abriu a boca durante essa conversa de bairro, supostamente realista (até se fala do “nosso Benfica”). Gente tacanha não vê mais nada, senão fado e futebol. Mas quando João de Deus se vai embora, Mimi, refletida num enorme espelho oval, dirige o olhar na direção dele e fica muito tempo a vê-lo sem que ele a veja. Mais tarde, dirá: “Vejo-o quase todos os dias na rua ou na leiteria. Reparei em si porque anda sempre muito metido consigo. Não fala com ninguém”. “Falo, mas não se dá por isso”, responde João de Deus. Nesse plano do espelho, tivemos o primeiro sinal de atenções sem palavras. Aquela que depois dirá, em tradução da Bohème, “chamam-me Mimi”, é a primeira pessoa no filme a reparar em João de Deus, a protegê-lo maternalmente (o espelho oval), imagem recorrente dos filmes de César Monteiro.

E aqui faço um parêntesis cinéfilo. Se os críticos mais atentos descobriram (está no filme a rima entre estas Recordações e Quem Espera por Sapatos de Defunto Morre Descalço, o primeiro filme de João César Monteiro), não li em parte nenhuma referências à continuidade com o filme de 1975 Que Farei com Esta Espada? Nosferatu, citado nas duas obras? Não só. Mimi é irmã gêmea dessa outra puta do Cais do Sodré que se confessava depois da Butterfly. Filhos dela passa por insulto. Andamos muito esquecidos dos Evangelhos. Estas entraram com certeza à frente dos outros no Reino dos Céus.

João de Deus sai da leiteria. E a discretíssima alusão materna, evidencia-se na banda sonora, quando começamos a ouvir o Stabat Mater de Vivaldi. Houve um corte e João de Deus, filmado em plongée, detém-se no átrio de uma casa setecentista, forrada a azulejos e com um chão lindíssimo. O plano tem a duração e a solenidade para ser sacral. É uma entrada num templo. “Eia, Mater fons amoris / Me sentire vim doloris / Fac ut tecum lugeam” canta-se e ninguém está a jogar com palavras ou com música. João de Deus começa a subir as escadas - grande escadaria de pedra - em plano de conjunto aproximado. A câmera move-se da esquerda para a direita (raccord ao eixo) e dá-nos a ver o patamar. À direita, um anjo com uma tocha e aos pés dele uma mulher velha a esfregar o chão com uma barra de sabão amarelo. Mais ao longe, à esquerda, um reposteiro com as armas de Portugal. Vivaldi continua e todos os sinais estão reunidos para a encenação sacral. Falta nomeá-la. A câmera recua e enquadra João de Deus, em pé, de costas, no alto do lance de escadas, a certa distância da mulher. É então que diz duas vezes: “Mãe, Mãe”.



O diálogo dos dois é cru e seco (da parte do filho). João de Deus foi ali para pedir dinheiro à mãe, todo o dinheiro da mãe, que lho dá. Situação escabrosa, abjecionismo, etc.? Quem se ficar por isso, não tem olhos, nem coração, nem gosto. Está é a ver a mais bela das Pietá. Quis est homo, qui non fleret?

A mesma sacralidade preside à encenação do encontro de Mimi com João de Deus na boite: a auréola vaneyckyana e nada de coiso[1]. Preside, depois, à via crucis do canil (“Estou consigo”) ou ao almoço da cabidela, com aquele final sublime (“mais luz geral se possível”) sobre o grande plano das mãos de Mimi a dizer: “Bastar-me-á, então, enterrar ambas as mãos na teia para sentir que tudo nasce dela”.

Até que chega a noite dos anos de João de Deus. Ele só pensa no clarinete da menina. Mas, quando esta finalmente o toca (salvo seja e é o K.622 de Mozart), desata a chover e todos fogem. Fica sozinha a menina, o clarinete e Mozart. Mas durante toda a “festa”, Mimi seguiu sempre de longe João de Deus. E é pelo sopro de Mozart (como pelas gárgulas jorrantes das fontes) que vamos até ao grande plano de Mimi, já dentro de casa. Um “plano louisebrookiano” (foi João César quem lhe chamou assim). E diz oferecendo-se: “É a minha prenda de anos”. Mozart cede a Schubert. Primeiro o violoncelo, depois o violino, por fim o piano. Ela tira as meias. A câmera enquadra João de Deus contra a parede, sentado na cama do quarto dele. João de Deus pequeno, à esquerda. Sobre a cama, as botas da fotografia de Stroheim. E enquanto continua o Trio, a câmera sobe muito devagar, largando o protagonista para nos dar a ver Stroheim em corpo inteiro, vestido de oficial de cavalaria. Ouvem-se em off suspiros e por fim o silêncio. “O que foi?”, pergunta Mimi em off. E é então que sabemos, pela direta resposta de João de Deus, que Mimi é mãe. De novo, a Mãe de Deus.

Na seqüência seguinte já ela morreu. Depois, há a visita ao quarto dela, tão sacral e tão sacrílega como a visita à Madre. A boneca é a figura de substituição que a menina Julieta não pode ser.

Perdidas todas as mães, todas as mulheres, João de Deus assume-se como pária (fabulosa seqüência no banco de jardim, com a descrição da morte da Madre de Deus) e depois assume-se como esse Stroheim que contemplara a sua única noite de amor. É Stroheim quem domina uma Lisboa em ruínas, onde o Carmo do Tanhäuser rima com o Chiado esventrado.

E, na corrida circular do manicômio, João de Deus faz o percurso que liga Lívio (Luís Miguel Cintra) ao realizador, que o dirigira vinte anos antes, nos Sapatos, “Nunca me tinha ocorrido como a eternidade pode ser tão amarga”. “O que tens feito nestes anos todos?”. “Tenho estado por aqui à tua espera”. “À minha espera?”.



O maior dos homens de teatro da geração de 60 e o maior dos homens de cinema da mesma geração, reencontram-se dois, não mais sendo um só. Inventaram o espaço para matar o tempo e inventaram o tempo para dominar o espaço. O bom senso acabou por prevalecer. Deus dar-lhes-á vida. E o plano mais comovente sobre uma geração é esse de Luís Miguel Cintra, vendo João de Deus afastar-se, com um movimento de garganta, como se engolisse em seco.

Vinte anos vivemos na casa dos mortos, ou na casa amarela João César Monteiro/João de Deus ressuscitou dela para contar a todos nós. É uma “comédia lusitana”. É uma tragédia portuguesa? É um filme de gênero? Como João de Deus responde a Henrique Viana que lhe pergunta se A Morte de Empédocles (a de Hölderlin, ou a de Straub?) é policial, a réplica exata é a dele: “Não! É celestial”. Desse gênero é que é o filme.

Sozinho diante das estrelas, como no final de Silvestre, este é um filme sagrado. É também - uma vez mais - um grande filme romântico. Esgotaram a imaginação a inventar-lhe parentescos. Leiam o Cesário, o do Sentimento de um Ocidental: “A dor humana busca os amplos horizontes / tem marés, de fel, como um sinistro mar”. É possível viajar por estas Recordações com o poema de Cesário como lâmpada de bolso. Quem se desorientar, orienta-se com ele. Para chegar ao mesmo verso e à mesma conclusão. O lençol de Dreyer e a sombra de Murnau. Meus filhos, são filmes destes que, pousando, vos trarão a nitidez às vidas. A todas as vidas.

terça-feira, 30 de setembro de 2014

O sangue de Pedro Costa por João Bénard da Costa


Reproduzo abaixo parte do texto de João Bénard da Costa sobre o filme O sangue de Pedro Costa. Mesmo se tratando de um trecho é possível notar a beleza do texto de João Bénard.

"De O Sangue se tem falado como de um filme obscuro. Melhor seria falar de um filme escuro, nome do cão que quase logo no princípio conhecemos. Alguma atenção - mas já estamos tão desabituados que no-la peçam assim - dissipará as aparentes obscuridades do filme. A mesma atenção só lhe reforça o lado escuro, que, neste caso nada tem que ver com o lado negro. É escuro porque é noite - é quase sempre noite - e é em noites destas que há sonhos e pesadelos e vem lá o lobo mau. De noite - em noites dessas - não vemos as cores e por isso este filme - contra quaisquer modas, modernismos ou pós-modernismos - só podia ser um filme a preto e branco, ou a escuro e claro, no escuro tão escuro e no claro tão claro da prodigiosa fotografia de Martin Schäfer.


[...] 
Antes, muito antes, tentara Vicente suportar sozinho o peso do seu sangue (seqüência da farmácia) quando procura ocultar de Clara a ferida da primeira solidão. E só quando esta lhe agarra a mão - porventura o mais belo grande plano do filme, ou o mais belo plano do filme - se lhe entrega com o pedido de salvação, precedendo a noite do cemitério.


É a seqüência mais onirizante do filme (durante ela, Nino dorme); é também a seqüência mais elíptica, como se os dois tentassem redimir uma culpa oculta, sabendo já da impossibilidade da mancha do corpo não alastrar. “Os sonhos existem mesmo?” E a resposta é a árvore assombrada, a dívida reclamada, e as figuras de substituição paterna (credores, tio) minando o incesto sangrento. O homem com um grande termômetro no chapéu, sonhar e inventar são coisas muito diversas. Não há mundos sem dívidas, como não há mundos sem culpas. Na noite mítica do amor, Vicente e Clara descobrem-se sós e têm medo. Se ninguém será como eles, tudo e todos existem para o mal. “Estás a tremer... Pede-me coisas... Mais perto... Mais”. Depois só resta a névoa da festa, a profundidade de campo e a posse por Clara do corpo de Vicente, enquanto um outro fio de sangue - ferida do tio - os conduzirá para a cidade junto de bichos mais antigos e mais famintos (as piranhas e as tartarugas do aquário, Isabel de Castro) que nos ritos da magia negra ofuscam a magia escura dos juncos e dos pântanos e da noite em que Nino dormiu com a cabeça pousada no colo de Vicente e Clara. São os décors de Alphavillevisitados pelos foragidos da noite, em termos de cinema outra aliança secreta dos mundos de Ray e de Godard, dos amantes assustados do primeiro plano de They Live by Night ao Rimbaud citado por Belmondo, junto ao mar, no último plano de Pierrot le fou."

sábado, 21 de junho de 2014

Hiroshima, Meu Amor de Alain Resnais (Hiroshima, mon amour - 1959)


direção: Alain Resnais;
roteiro: Marguerite Duras;
fotografia: Michio Takahashi, Sasha Vierny;
edição: Jasmine Chasney, Henri Colpi, Anne Sarraute;
estrelando: Emmanuelle Riva, Eiji Okada.

Hiroshima, meu amor foi lançado no Festival de Cannes de 1959 em um momento que pode ser considerado o ápice da chamada nouvelle vague. O longa-metragem de estreia de Alain Resnais criou em torno de si um burburinho que se tornou, muito rapidamente, um estrondo demorado. Tão logo de seu aparecimento na sala de cinema do festival ele fora comentado e analisado por muitos críticos que ficaram boquiabertos com uma obra peculiar. De fato, Resnais se apresenta com este filme como um dos cineastas mais criativos da nouvelle vague. Junto a Jean-Luc Godard, ele procurou desenvolver uma estética diferenciada para um cinema particular que visava desenvolver. É muito interessante neste sentido nos depararmos com alguns textos escritos na época, quando o cineasta era ainda uma novidade e ninguém sabia que aquela obra ainda ganharia algumas parceiras para acompanhá-la pelo percurso da história do cinema. A tentativa dos críticos e estudiosos de desvendar o mistério que é Hiroshima, meu amor é prazerosa para todos aqueles que também ficaram atormentados com o filme. Digo o mistério que é Hiroshima, meu amor porque mesmo hoje, depois de diversos filmes feitos pelo cineasta - desde os mais palatáveis como Ervas daninhas até os mais complexos como O ano passado em Marienbad - este filme continua um filme belíssimo para os olhos, mas dificílimo para se escrever alguma coisa sobre. 


Alain Resnais é um cineasta que muito admiro. Gostaria de que houvessem mais diretores como ele mundo afora, mas não existem. Talvez este seja o lado positivo da coisa, é o que o faz único e tão impressionante. Nesta sua estréia o filme é difícil de ser analisado, mas muito fácil de ser sentido. É o resultado da parceria de Resnais com a escritora Marguerite Duras. Resnais parece neste ponto ter noção de seu cinema cerebral e para poder combater o tédio que poderia causar uma obra somente racional ele chama para acompanhar-lhe nesta empreitada uma escritora, para adicionar a este trabalho uma história. É o que faz deste filme tão espetacular e o mais famoso da carreira de Resnais. Ele consegue aquilo que muitos diretores de vanguarda não conseguem entender: o cinema é antes de qualquer coisa um entretenimento, logo deve contar uma história. Aliar uma história a uma forma cuidadosamente pensada e milimetricamente executada confere à obra o caráter de obra de arte.

Mais ainda do que seu filme seguinte, devo dizer. O ano passado em Marienbad, apesar de ser um filme espetacular que mesmo hoje, em 2014, não envelheceu, é somente uma obra para apaixonados por um cinema provocativo. Hiroshima, meu amor, é um filme que também não envelheceu porque não procura ser datado. É algo que muito facilmente acontece com outros filmes que procuram fazer de sua representação uma denúncia social. São filmes que ficam marcados com o espírito de um tempo, não causando o mesmo impacto décadas depois. É um filme sobre pessoas de qualquer período. Mais do que ser um filme sobre pessoas é um filme que procura quase uma resposta filosófica a um tema que Alain Resnais viria a buscar em outros filmes de sua carreira (como o já citado O ano passado em Marienbad): a memória.


Partindo de um tema tão diferente para a construção de um filme é que Alain Resnais consegue encontrar o trunfo que faz dele um mestre. A memória é um tema muito pouco trabalhado no cinema e quando trabalhado os diretores se valem de lugares-comuns que fazem de suas obras muito parecidas com todas as outras que trabalham com o tema. É no cinema de Resnais que encontramos toda a complexidade do tema que podemos encontrar em estudos filosóficos. E, neste século do cinema, não existira veículo melhor para poder apresentar uma reflexão sobre tema tão importante. Importante porque a memória se apresenta por meio de representações imagéticas que nos remetem a um passado vivido. É por meio destas representações imagéticas que também trabalha um cineasta, e é por meio delas que Resnais procura desvendar os mistérios por trás da memória.

Hiroshima, meu amor nos apresenta uma atriz francesa que se encontra em Hiroshima para fazer um filme sobre a paz. Lá ela encontra um jovem morador da cidade que não sofreu com o tormento da bomba atômica atirada sobre a cidade, porque estava a lutar pelo exército nipônico durante a guerra. Eles se encontram na cidade e iniciam um romance. O conflito das memórias dos personagens, em especial dela, se encontram desde os primeiros momentos do filme. É neste primeiro momento, em que ela diz ter lembranças de Hiroshima enquanto ele nega que fica a pergunta no ar: poderíamos criar lembranças de coisas que não vivemos? A memória pode trabalhar com aquilo que é apresentada àquele que irá reter a lembrança. Por isso é possível que a atriz francesa, quando confrontada com as imagens das vítimas da bomba no museu criado na cidade para manter viva esta lembrança (porque é para isto que os museus servem), tenha visto as imagens de arquivo do museu e transformado-as em suas próprias memórias. Ela as viu, e é como se tivesse vivido-as. 


Transforma-se neste caso um embate com o próprio cinema (e esta provocação pode ser notada quando, em meio a cenas reais dos feridos pela bomba, Resnais insere um filme de reprodução, com atores reproduzindo as pessoas feridas no momento logo após a explosão da bomba). Se assisto a um filme, a lembrança do que nele se passou é de fato minha? Não vivi o filme, apenas estive em frente a ele. As imagens que nele aparecem são impressas em minha mente, mas não são vividas por mim, mas pelos personagens na tela. Seriam as lembranças de um filme que assisti memórias minhas, de algo que vivi (o filme que assisti) ou seria uma memória criada a partir de algo com que me deparei (uma obra de ficção)? Ah!, Hiroshima, meu amor, um filme que nos deixa com mais perguntas do que respostas...

[leia também: Você não viu nada em Hiroshima e O esquecimento começa pelo olho]

terça-feira, 17 de junho de 2014

Lírio Partido de D. W. Griffith (broken blossoms or the yellow man and the girl, 1919)


direção: D. W. Griffith;
roteiro: D. W. Griffith, Thomas Burke (baseado em sua obra);
fotografia: G. W. Bitzer;
estrelando: Lilian Gish, Richard Barthelmess, Donald Crisp.

Em sua série sobre a história do cinema, Mark Cousins coloca o cineasta D. W. Griffith em seu devido lugar no mundo do cinema. O cineasta estadunidense normalmente é tido como o criador da linguagem cinematográfica, quando na verdade ele foi quem conseguiu, em seus épicos mudos, juntar a terminologia do cinema (diferentes planos em uma cena, a forma da montagem...) em um mesmo filme. Isto foi feito em Nascimento de uma nação e Intolerância, dois filmes que contam com algo em torno de três horas de duração nas quais o cineasta consegue estruturar todas as formulações da linguagem cinematográfica e sua montagem que possibilitava uma continuidade da narrativa apresentada não necessitando permanecer em um mesmo plano ou em um mesmo ambiente.

Mas não é nenhum destes dois filmes clássicos que é considerado por grande parte da crítica como sendo o melhor filme do cineasta, mas sim Lírio partido, um filme sentimental em que o melhor de Griffith se apresenta de maneira poética, casando com uma apresentação magnífica de sua colaboradora corrente: Lilian Gish. É neste filme em que todo o poder da câmera pode ser demonstrado já que, por saber até onde era capaz de ir seguindo a gramática cinematográfica, Griffith sabia como conseguir o resultado esperado. E a escolha por filmar um melodrama é mais do que simbólica, porque é no melodrama em que reside a linha mais tênue de todos os gêneros a serem trabalhados no cinema. O risco que um cineasta corre ao filmar um melodrama é enorme, de ter como produto final um filme enfadonho e cansativo com pessoas chorosas. O risco de o público não conseguir se identificar com as personagens apresentadas e de, até mesmo, repudiá-las é maior do que em qualquer outro gênero. Passar pelo desafio de filmar um melodrama é um risco que Griffith aceita e do qual obtém êxito.


Um dos trunfos de Griffith ao saber utilizar a linguagem cinematográfica (sendo melhor termo para defini-lo não de criador, mas o sistematizador da linguagem cinematográfica) é a sua capacidade de contar história se valendo de caracteres fílmicos para poder contar o seu drama e criar toda a atmosfera emocional exigida pala história contada. Saber pontuar os momentos em que seria inseridos os close-ups em um filme é a sua marca registrada. É conhecida a história de que o filme era inicialmente montado e, depois de assistir a esta primeira versão do filme o diretor pontuava em quais momentos necessitaria incluir os close-ups. Os close-ups no cinema de Griffith servem, assim, como sinais de pontuação que exclamam um determinado sentimento que o protagonista da história está a sentir e, por conseguinte, o espectador.

Quando Lucy (Lilian Gish) está encurralada no armário para se proteger de seu pai abusivo, o diretor se vale de um close-up não apenas para mostrar mais nitidamente para o espectador como está o personagem, mas para que este possa sentir como está aquele personagem que ele vem acompanhando há pouco mais de uma hora. O close-up serve como uma ponte entre o emocional do espectador e do personagem, e aquele sentimento que é representado arrebata a quem assiste ao filme tal como se estivesse a viver a história. É o momento em que sentimos pena de Lucy, queremos salvar, queremos gritar para alguém salvá-la, mas somos impotentes. O close-up nos aproxima de uma realidade que não existe, nos mergulha nela. 


Interessante nesta aspecto podermos fazer a comparação entre dois cineastas contemporâneo (na verdade até mesmo sócios de um mesmo estúdio): D. W. Griffith e Charles Chaplin. Enquanto Griffith se vale de close-ups para criar esta pontuação do sentimento que a cena apresentada expressa, Chaplin não se utiliza desta técnica em seus filmes, mesmo em um filme tão sentimental como O garoto. Talvez o único close-up da obra chapliniana seja o close final no rosto de Carlitos quando ele reencontra a garota cega e ela o reconhece. Mas para Chaplin a movimentação do ator em cena poderia dizer muito mais do que a proximidade da câmera de seu rosto poderia mostrar. Chaplin por possuir uma formação do teatro passou grande parte de sua obra em construções como esta, ao passo que Griffith exercitou seu fazer cinematográfico apenas por trás da câmera. 

E o que seria de Lírio partido sem Lilian Gish? A atriz, quando da filmagem tinha 22 anos, mas interpretava uma adolescente de 14 ou 15 anos, consegue arrebatar a atenção do espectador se destacando frente a todos os demais atores que com ela contracenam. É belíssima as imagens que Griffith faz dela, seu rosto sofrido, seu caminhar penoso, seu olhar sem esperanças e sempre guardando algumas lágrimas no canto. Não é a toa que o cineasta sempre esteja pronto para fazer um close-up dela. De um rosto frágil como o de Gish, Griffith conseguiu extrair o significado do que foi, é e será o cinema de melodrama, e a beleza que pode ser extraída da tragédia humana.

sexta-feira, 13 de junho de 2014

Eu, Um Negro de Jean Rouch (moi, un noir - 1958)


direção: Jean Rouch;
roteiro: Jean Rouch;
edição: Catherine Dourgnan, Marie Josèph, Yoyotte;
estrelando: Oumarou Ganda, Gambi, Petit Touré.

O cinema de Jean Rouch se apresenta com certas particularidades que o destacam frente ao cenário cinematográfico mundial. Neste filme em especial, além da busca pelo contato com outras civilizações, temos uma construção fílmica interessante que viria a influenciar, em especial, Jean-Luc Godard. Rouch em Eu, um negro dá a seus personagens a total liberdade para criarem uma história e narrarem aquilo que vemos na tela. A desconexão entre a narração e as imagens não faz com que o filme perca sua qualidade e sim ganhe força partindo de uma história contada por quem aparece na tela contando as histórias que vive no lugar em que as vive. Esta busca pela identidade dos lugares, dos personagens e das tramas narradas no cinema é o motor principal do cinema europeu do pós-guerra até metade da década de 1960, e é em busca desta identidade conjunta que parece buscar a câmera de Rouch.

Jean Rouch, antes mesmo de querer contar uma história por meio das imagens, tem como principal motivação um estudo etnológico de seus retratados. Por isso ele dá liberdade para que seus personagens possam se criar e crescer na tela. Eles começam por criar o nome de seus personagens, o que a partir deste momento já diz muito sobre quem são e as influências que ditam suas ações. Os nomes de seus personagens são baseados em personagens da cultura estadunidense que por meio de seu império capitalista se apoderou e modificou os quereres e não-quereres de quase todo o ocidente. Neste meio encontram-se os africanos, que vivem em situações miseráveis, tais como são apresentados pelas lentes de Rouch, mas que sonham em crescer, prosperar, dentro desse sistema econômico, mesmo que a cidade em que vivem não lhes ofereça muito. Nesta vida sem motivações eles se agarram à religião. Não é mais sua religião original, mas a religião que lhes fora imposta pelos europeus, em que no centro da cidade se ergue imponente uma igreja católica. Do outro lado estão os islâmicos, cada vez mais populosos em terras africanas e que no ano em que o filme fora filmado já ocupavam toda uma vasta rua da cidade de Treichville. Esta influência proveniente de terras estadunidenses é logo pontuada por Rouch no princípio do filme quando ele nos apresenta os personagens que seguiremos nos 70 minutos seguintes de projeção: a influência exercida pelo cinema hollywoodiano e pelo boxe norte-americano nos jovens afircanos faz com que eles escolham para seus personagens nomes como Edward G. Robinson e Eddie Constantine.


A liberdade que é dada aos jovens retratados é proposital para que por meio dela eles possam libertar seus sonhos, seus desejos, e mais além, o que eles pensam do mundo em que vivem. Os sonhos deles já são, se não os mesmos, muito parecidos com o de diversas outras pessoas que vivem no ocidente. É o sonho de ter uma casa própria, constituir uma família, ter um carro. Essa tríade família-carro-casa pontua o sonho que fora implantado na mente de toda uma civilização para sustentar um modelo de mundo que hoje está vigente. Mas nem todo mundo pode ter tudo isso, e mais ainda um jovem africano que não tem muitas perspectivas de ascender num mundo que coloca as pessoas em uma pirâmide, os mais pobres que estão na base da pirâmide nunca chegarão a vislumbrar a vista do topo. E esta lição é deixada quando vemos um italiano roubar a garota de um dos personagens do filme com quem este sonhava em se casar e construir sua família. Outro personagem é preso. Eles podem até sonhar com uma vida melhor, mas a realidade sempre lhes dará um banho frio e lhes cortará as asas.

Do lado da construção do discurso fílmico encontramos uma pérola. É o filme que influenciou diretamente Godard e seu Acossado e a sua montagem com saltos temporais curtos ou longos se baseando em um mesmo cenário com os mesmos personagens. Os saltos são realizados para que nada do que acontece nos momentos retratados fujam ao espectador, para que este possa ter a impressão de que o filme conseguiu ser o mais abrangente possível ao buscar imagens daquela localidade (com uma câmera estática não poderíamos acompanhar os personagens e sua movimentação frenética e com a câmera em movimento não poderíamos abarcar toda a extensão espacial que é retratada quando podemos simplesmente pular de um lugar para outro). Além destes saltos temos um filme que foi completamente narrado, mostrando para o jovem aspirante a cineasta quanta liberdade esse processo poderia lhe dar - isso levaria Godard mais tarde a fazer suas "brincadeiras" com as linguagens cinematográfica e falada.

quinta-feira, 5 de junho de 2014

Nas Garras do Vício de Claude Chabrol (le beau Serge, 1958)


direção: Claude Chabrol;
roteiro: Claude Chabrol;
fotografia: Henri Decae;
estrelando: Jean-Claude Brialy, Gérard Blain, Michèle Méritz, Bernadette Lafont.

Tal como Robert Bresson conseguira alguns anos antes levantar a produção de Um condenado à morte escapou, Claude Chabrol conseguiu, frente à Companhia Nacional de Cinematografia (CNC), uma premiação em dinheiro para poder levantar seu primeiro longa-metragem. Este prêmio em muito estimulou o cinema francês, mas somente ele não era motivo para garantir a distribuição dos filmes. Nas garras do vício, o tal primeiro filme de Chabrol, fora filmado numa comuna no interior da França no inverno de 1957-1958, mas somente fora lançado nos cinema em fevereiro de 1959, exatamente um mês antes de Os primos, seu segundo longa. Foi devido ao sucesso deste seu segundo filme no festival de Berlim, em que Akira Kurosawa levou o urso de prata de melhor diretor, que o jovem estreante saiu coroado com o urso de ouro - o melhor filme do festival.

O sucesso de Chabrol com seu segundo filme não somente abriu caminho para os demais cineastas estreantes como para ele mesmo, como já fora colocado acima. Neste filme acompanhamos François (Jean-Claude Brialy) que morou em um vilarejo no interior da França durante sua juventude, saíra alguns anos antes para fazer universidade e agora retorna para poder descansar depois de ter tido alguns problemas de saúde. Nele encontra algumas figuras que fizeram parte de sua juventude, incluído Serge (Gérard Blain). Serge teve a oportunidade de ter feito o mesmo percurso de François, mas não o fez quando uma namoradinha sua ficou grávida, o que o impediu de deixar o vilarejo. Na trama fica implícito o marasmo da vida em um lugarejo como o apresentado no filme, em que somente pode-se crescer caso o indivíduo saia deste lugar. E por ter voltado para ele François irá pagar por este retorno.


Este é considerado o primeiro filme da nouvelle vague, embora não apresente nenhuma novidade estética como seriam apresentados mais tarde por Jean-Luc Godard e Alain Resnais em suas obras de estreia - o que define o movimento como um movimento que não possuía uma definição estética, mas que havia surgido devido a diversos artigos que eram constantemente publicados pela imprensa francesa frente a uma nova geração de pensadores de cinema que nascia no país. Esta geração de pensadores aos poucos começava a deixar seus lápis de lado para pegar a câmera e escrever em película. Entre 1957 e 1958 muitos dos diretores que vieram a mais tarde formar a "geração nouvelle vague" estavam em seus primeiros curtas-metragens: Jacques Rivette terminava O truque do pastor, Truffaut filmava seu curta Os pivetes, e Godard filmava Operação concreto.

O filme apresenta sua história embebido pela estética neorrealista, seguindo seus personagens pelas ruas do vilarejo em que decidiram filmar a história, sem o uso de luz adicional e com atores estreantes - deveriam ser rostos que não fossem facilmente reconhecíveis pelo público, e mesmo se tratando de atores, eles deveriam ter o rosto de pessoas normais, que transparecesse que o filme fora filmado com não atores. Esta perspicácia de Chabrol neste primeiro filme da nouvelle vague francesa foi seguida por seu companheiros porque, embora buscassem uma naturalidade que não era encontrado naquilo que Truffaut chamava depreciativamente de "cinema francês de qualidade", suas histórias possuíam um peso dramático extremamente pesado para poder ser trabalhado com não-atores. Estes dramas deveriam ser sentidos pelo espectador e somente por meio do trabalho dramatúrgico eles poderiam surgir na tela com todo seu poder. Neste filme, Serge é alcoólatra, e o poder da atuação de Gérard Blain é o que imprime na película toda a sensibilidade da trama que está a ser apresentada. Por exalar todo este peso é que parte da direção de Chabrol ter cuidado com o que filmar e de que forma filmar. 


Serge quando enxerga François, vê aquilo que ele poderia ter sido, mas não é. Ele devolve esta frustração em agressões a todos aqueles que o cercam. Sua esposa Yvonne (Michèle Méritz) é quem mais sofre. Ela o quer por perto, está grávida novamente e espera não perder este filho (a criança que impedira Serge de sair do vilarejo para estudar morrera no parto). O cuidado do diretor ao filmar tais personagens é o que deve ser observado atenciosamente, porque é a visão do sujeito cineasta neste momento que separa o filme de ser um filme sentimental de um filme sadista (tomando o termo sadista da maneira mais pejorativa possível). O olhar de Chabrol sobre aqueles personagens não procura julgá-los, mas humanizá-los, mostrar que eles agem da forma como agem por determinados motivos, motivos estes que ele busca durante todo o filme. Trata-se de mais um filme que busca humanismo, tal como fará de forma mais bela por Truffaut em Os incompreendidos, e que marca a obra de alguns dos diretores do movimento de rejuvenescimento do cinema francês. Atenção para a fotografia de um dos maiores fotógrafos do cinema nouvelle vague, Henri Decae.

quinta-feira, 29 de maio de 2014

O Grande Golpe de Stanley Kubrick (the killing, 1956)


direção: Stanley Kubrick;
roteiro: Stanley Kubrick, Jim Thompson, Lionel White (baseado em seu livro);
fotografia: Lucien Ballard;
edição: Betty Steinberg;
estrelando: Sterling Hayden, Coleen Gray, Vince Edwards, Jay C. Flippen, Marie Windsor.

Depois que A morte passou perto ficou pronto, Stanley Kubrick conseguiu uma reunião com a United Artists para conseguir um acordo de distribuição de seu filme. O contrato fora feito e Kubrick ainda conseguiu um acordo: o estúdio pagaria cem mil dólares para financiar seu próximo filme. A quantia era mais que o dobro daquela que o jovem diretor havia utilizado em seu filme anterior. Enquanto buscava uma história para transformar em seu próximo longa-metragem, o cineasta - que então contava com 26 anos - conhece James Harris, um jovem e ambicioso produtor de cinema. Ambos se interessam por um romance sobre o roubo de um hipódromo. Sua competição pelos direitos da obra são grandes: Frank Sinatra também estava interessado em transformar o livro em filme. Quando Sinatra declinou da ideia de filmá-lo, Kubrick e Harris partiram para ação, e conquistaram o filme que selaria sua primeira colaboração e o nascimento da produtora que fundaram juntos.

O grande golpe foi o segundo filme de Kubrick distribuído pela United Artists. Foi o filme que lhe mostrou para o mundo. A revista Times, quando do lançamento do filme, comparou esta obra a Cidadão Kane e Kubrick a Welles. Não é para tanto quanto comparar O grande golpe a Cidadão Kane, exagero que foi repetido a exaustão nas décadas seguintes nos EUA enquanto os críticos e entendidos de cinema buscavam uma obra tão inovadora quanto a obra de estreia de Orson Welles. Mas da perspectiva inovadora, O grande golpe se apresenta como um filme que nos trás uma construção incomum para a época em que fora feito. O filme não se centra em uma narrativa que obedeça uma sequência temporal dos fatos. São muitos os personagens envolvidos no já citado roubo ao hipódromo e a narrativa não se furta de voltar no tempo para mostrar o que o personagem fazia horas antes.


É um filme que obedece a diversas regras do cinema noir incluindo-se aí a sua femme fatale loira. Trata-se de um filme que segue um grupo de pessoas que se juntam para roubar o dinheiro de um hipódromo em um dia em que as apostas serão altas. São muitos os membros do grupo e a narrativa tem que dar atenção a todos. Mas atenção especial é dada ao caixa do hipódromo cuja esposa (a loira femme fatale) infiel será o ponto principal do motivo pelo qual o plano poderá não dar certo e para o idealizador do plano Johnny Clay (Sterling Hayden). Um narrador que não participa da história nos conta o desenrolar da ação, dando-nos detalhes e sempre começando seus relatos com o horário das ações dos envolvidos do roubo. É importante prestar atenção no horário dado pelo narrador porque será ele por meio dele que veremos o ponto inovador do filme.

Em Cidadão Kane a inovação estava por conta do uso da profundidade de campo permitida pelas lentes utilizadas no filme. Com a profundidade de campo é permitido ao cineasta poder filmar sem pausas, fazer seus personagens passearem pelos cenários sem necessidade de corte porque o foco não seria perdido. Embora esta técnica já tivesse sido utilizada por Jean Renoir, por exemplo, em A regra do jogo, foi com Welles que ela alcançou seu maior sucesso, sendo mostrado pelo cineasta estadunidense tudo aquilo que poderia ser feito com o uso de tal técnica. Embora Stanley Kubrick se valha de uma construção narrativa não tão comum quanto a narrativa não linear, ela não fora utilizada em sua forma mais brilhante. Aqui já se apresentava um cineasta que começava a esboçar um trabalho com o tempo cinematográfico que mais tarde chegaria ao seu ápice com 2001: uma odisseia no espaço.


Aqui se encontra outra grande qualidade de Kubrick, que já havia sido notada em seu filme anterior, que é o seu trabalho com a luz. Em especial o jogo entre luz e sombras. Este jogo entre luz e sombras tão caro a um filme noir - o mal que se esconde na escuridão dos quadros e que contamina os personagens da trama - se apresenta com maestria neste O grande golpe. Desta vez Kubrick já não assinou a direção de fotografia, mas desde este momento já se percebia sua exigência técnica referente aos enquadramentos, movimentos e câmera, e como iluminar as cenas partindo destes posicionamentos (é conhecida a história de que em seu filme anterior o cineasta desistira de gravar o som direto nas gravações porque o microfone atrapalhava a iluminação).

domingo, 25 de maio de 2014

Os Esquecidos de Luis Buñuel (los olvidados, 1950)


direção: Luis Buñuel;
roteiro: Luis Alcoriza, Luis Buñuel;
fotografia: Gabriel Figueroa;
montagem: Carlos Savage;
estrelando: Alfonso Mejía, Roberto Cobo, Alma Delia Fuentes, Mario Ramírez.

O cinema mexicano se destaca no cenário cinematográfico latino pelo número de filmes que produzem anualmente. Desde a década de 1940 o número de longas-metragens que são lançados em salas de cinema no país chega a cem. Em meio a este mercado ativo chega um Luis Buñuel que há muito tempo não conseguia fazer um filme próprio. Trabalhou durante algum tempo em Hollywood, mas não poderia se dar muito bem por lá. Chega no México e consegue dirigir alguns filmes, de início comédias comerciais. O sucesso de uma destas comédias lhe possibilita fazer filmes próprios, a exemplo deste Os esquecidos. Trata-se novamente de uma película em que o diretor poderia colocar o dedo na ferida que a sociedade ignorava, tal como fizera no início de sua carreira com os filmes surrealistas.

Para quem conhece somente o trabalho de Buñuel da fase surrealista quando o diretor filmava na França - seus filmes que ficaram mais famosos: A bela da tarde, Esse obscuro objeto do desejo, O discreto charme da burguesia..., já na década de 1960-70 - terá uma surpresa ao descobrir que os filmes do cineasta em sua fase mexicana eram filmes com uma sequência narrativa tradicional, diferente das suas construções surrealistas que aboliam a narrativa. Aqui a opção do cinema narrativo é feita para que a denúncia social realizada pelo diretor possa ser compreendida em sua plenitude pelos espectadores. 


O filme abre com um texto que quase faz do filme uma propaganda política. O texto dito por um narrador ausente da trama que será construída a seguir apresenta o problema que será mostrado no filme e que o mesmo não tem qualquer pretensão de apresentar uma solução. O filme é sobre as crianças pobres que vivem desamparadas, sem qualquer auxílio de quem quer que seja. Uma película que apresenta um fato, não uma teoria político-social. A rua aparenta ser um lugar mais acolhedor do que os lares - para aqueles que têm um lar. Na rua estão seus amigos, os parceiros de todos os momentos. São com estes parceiros que estas crianças buscam conforto, são elas que dão uns aos outros comida, dinheiro e cigarros. Eles não tem futuro, mas sonham que um dia serão ricos, mesmo que nenhum deles saiba ler. 

Buñuel é muito cuidadoso no trato com estas crianças. Não são elas as culpadas de seus atos odiosos - que chegam a culminar na morte de um adolescente -, mas os adultos. As crianças são pessoas em formação e não possuem qualquer auxílio de seus familiares sendo que o caso maior é de Jaibo, o delinquente mor do grupo que fugiu do reformatório e busca vingança contra quem o mandou para lá. Jaibo não é descrito por Buñuel como sendo um completo delinquente, ele é assim porque nunca conheceu seus pais, não tem uma imagem em quem se espelhar, ninguém para lhe dizer o que é certo e o que é errado. Neste grupo temos ainda Pedro que em diversos momentos tenta retornar para casa, tenta entrar na linha, mas em nenhum deste momentos recebe o apoio da mãe que o trata como um caso perdido preferindo que o filho fique na rua. Ele procura ajuda para melhorar seu comportamento, mas quem deveria lhe servir de guia prefere não desempenhar tal trabalho.


Quanto a estética do filme. Trata-se de um filme que talvez tenha sido influenciado pelo neorrealismo italiano, mas pode ser também da formação de Buñuel enquanto documentarista em seus últimos anos na Espanha. No filme surge este lado de tentar passar através das imagens o mais real possível, e para isso o filme se vale desde os cenários destruídos e sujos da periferia da Cidade do México como dos rostos de seus personagens - crianças sem dentes, rostos enrugados... É a autenticidade que buscam os filmes deste período sendo este um dos motivos que os fazem tão especiais, filmes que colocam como atores personagens daquele mundo que está a ser representado em tela. Os garotos apresentados no filme poderiam estar vivendo aquelas histórias se não fosse pelo set de filmagem.

A realidade cruel retratada pela câmera de Buñuel segue de perto estas crianças a ponto de até mesmo mostrar um pesadelo de um deles. Pedro volta para casa na calada da noite para dormir. Está atormentado com o assassinato que presenciara e a imagem continua a perturbá-lo. Sua mãe não o quer por perto e nega-lhe até mesmo um sanduíche. Neste pesadelo juntam-se todas estas características que perturbam o personagem fazendo desta uma cena peculiar dentro do filme, mas que ajuda a criar o emocional do garoto para nós espectadores. O pesadelo apresenta-se também de forma narrativa, diferente do que poderia parecer para aqueles que estão acostumados com o Buñuel de Um cão andaluz. Mas nele o tempo apresenta-se de forma diferente, a câmera lenta mostra que o tempo do sonho difere do tempo dos fenômenos. O cinema, como possui uma temporalidade própria - tal como o sonho - é o melhor meio de fazer uma representação do sonho. Ambos criam temporalidades próprias e ambos se constituem de discursos visuais.

É um filme forte que tem bem definido para quem dirige seu discurso. A câmera dura que mostra a realidade dos garotos que vivem na rua também mostra compaixão por seus personagens e não procura dar as respostas muito definidas para o espectador. Tal como no mundo real, somos nós quem devemos dissecar o que acabamos de ver e tirar desta visão um veredicto. 

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Era Uma Vez na América de Sergio Leone (once upon a time in america, 1984)


direção: Sergio Leone;
roteiro: Harry Grey (baseado em seu livro), Leonardo Benvenuti, Pierro De Bernardi, Enrico Medioli, Franco Arcalli, Franco Ferrini, Sergio Leone;
direção de fotografia: Tonino Delli Colli;
estrelando: Robert De Niro, James Woods, Elizabeth McGovern, Joe Pesci, Tuesday Weld.

Nestes tempos corridos, em que a pressa faz com que até mesmo pretensas obras de arte se percam devido à pressa, um filme que se apresenta com quase quatro horas de duração torna-se um desafio a muitos cinéfilos. Esta duração prejudica o visionamento de muitos filmes porque o espectador não acostumado a assistir películas com tal metragem, pausa-o e parte para fazer outra atividade. Este é um crime contra a arte presente em uma obra cinematográfica - especialmente em um filme como Era uma vez na América

Sergio Leone, cineasta mítico que remodelou um gênero (o faroeste), desenvolveu para consigo uma trilogia sobre "a América". Começou com o clássico Era uma vez no oeste, filme de 1968, mas a trilogia dos sonhos do diretor nunca chegou a ser concluída. Leone passaria mais de uma década batalhando para tirar dos papeis este projeto, sem ter muito sucesso. Ainda no início da década de 1970 lhe fora oferecida a direção de O poderoso chefão, à qual ele recusou. Queria filmar a sua própria história sobre gangsteres, sobre a "evolução da América". Foram muitos anos de tentativas e negociações, até que finalmente, no início da década de 1980, o filme viria a ser realizado.


Trata-se de um projeto ambicioso. Transita por três décadas diferentes, com cenários grandiosos para que o período que está a ser retratado pudesse ser bem representado nas telas e soar crível ao espectador. O roteiro demorou um longo tempo para ser concluído, necessitando-se de sete roteiristas diferentes - incluindo-se aqui o próprio Leone - para que ele finalmente chegasse ao ponto certo. Mas ainda assim estava ali um grandioso épico de proporções colossais. Eram mais de trezentas páginas, o que daria mais de quatro horas de projeção. Depois de filmado, os primeiros cortes contavam com algo em torno de oito a dez horas.

Mas a longa duração do corte final é justificável. A construção daquela fábula sobre os EUA necessitava de um filme com uma longa duração. Esta fábula nos é narrada através dos olhos de Noodles (Robert De Niro), que passa pelos mais diversos períodos da história recente daquele que viria a ser o país mais poderosos do planeta. É uma fábula sobre como um país que age sem piedade sobre os demais se ergueu, tendo sua base nos criminosos mais simples que favorecem os criminosos mais poderosos - e os criminosos menores podem chegar a se tornarem criminosos maiores. Este argumento está presente também em Era uma vez no oeste e que, como já coloquei, constituiriam juntos a trilogia sobre a América (a ascensão da "América" por meio da violência, portanto).


Deixemos de lado o tocante político do trabalho que nos é apresentado e foquemos no lado cinematográfico: no filme enquanto filme. Leone possui um estilo muito interessante de filmar e me pergunto sempre que assisto a um filme seu se seria ele um devedor do Dreyer de O martírio de Joana D'Arc. Seus close-ups e super-close-ups que buscam sugar dos personagens a verdade, o que sentem, o que desejam, ou o desnudar dos sentimentos dos outros personagens presentes em cena. Neste Era uma vez na América, o personagem de De Niro se vê de volta à um cenário de sua juventude e começa aquele involuntário processo de reminiscência dos tempos idos. Aqui, Noodles retira um bloquinho do banheiro, espaço este em que ele outrora via a jovem Deborah - sua grande paixão da juventude - dançar. Sergio Leone filma Noodles em um de seus típicos super-close-ups em que vemos apenas os olhos do personagem em uma tela em scope, arrancando dele suas lembranças e expondo-as na grande tela.

Estes close-ups constantes desnudam os personagens a todo momento, fazendo de Sergio Leone um cineasta atípico - e ciente de suas capacidades enquanto diretor. Ele filma seus personagens tentando retirar deles algo mais do que aquilo que o simples roteiro poderia proporcionar. Esta é uma das capacidades que o tornaram um diretor tão querido. Trata-se aqui da derradeira obra do cineasta italiano - um testamento de sua capacidade artística para a humanidade.

sábado, 17 de maio de 2014

Um Condenado À Morte Escapou de Robert Bresson (un condamné à mort s'est échappé ou Le vent souffle où il veut, 1956)


direção: Robert Bresson;
roteiro: Robert Bresson, André Devgny (memórias);
fotografia: Léonce-Henri Burel;
edição: Raymond Lamy;
estrelando: François Leterrier, Charles Le Chainche, Roland Monod.

O cinema de arte sempre nos apresenta algo de extraordinário. São artistas nos apresentando novas formas de ver o mundo ou de enxergar o espetáculo cinematográfico. Os chamados filmes de arte não costumam atrair atenção do grande público nem de encher as salas de cinema quando são lançados. Passam despercebidos pela maioria que não sabe creditar o real valor de tais obras. Mas mesmo assim são grandes obras, sendo elas as responsáveis por podermos utilizar um termo como "espetáculo cinematográfico" como já utilizado neste mesmo parágrafo. São filmes conscientes de ser filmes, mas que possuem uma ambição maior: a de ser cinema. Ou neste caso de ser cinematógrafo.

Robert Bresson é um grande nome do cinema mundial porque fez filmes conscientes de sua condição de filmes, mas que tinham a vontade de ser obras cinematográficas (e que alcançavam seu objetivo). Os grandes nomes não surgem sem motivo. Como diria Jacques Aumont: "todo cineasta francês um pouco interessante deve algo a Bresson". E não só os cineastas franceses possuem este débito, também Michael Haneke já algumas vezes, ao enumerar seus filmes preferidos, coloca uma obra de Bresson. O cineasta francês nem sempre pode se orgulhar desta visão favorável de seu cinema - muitos eram os críticos que não enxergavam com bons olhos os filmes que ele fazia. Mas isto estava prestes a chegar ao fim. François Truffaut foi um dos principais membros daquilo que poderíamos intitular "partido pró-Bresson" e que enxergava e provava em suas análises a arte do cinema de Bresson.


Como constantemente acontece ao cinema de arte, os primeiros filmes de Bresson não foram bem sucedidos. Os distribuidores não acreditam nos filmes de arte, nem o público - que em grande parte enxerga no espetáculo cinematográfico somente um meio de entretenimento (e a arte nem sempre é para ser divertida). A distribuição de seus filmes não são bem feitas o que interfere no sucesso das mesmas. Logo após o lançamento de Diário de um pároco de aldeia, Bresson desenvolve alguns projetos, mas nenhum deles é financiado. Passa, assim, cinco anos sem lançar nenhum filme nos cinemas. Neste meio tempo, o Centro Nacional de Cinematografia (CNC) desenvolve algumas formas de financiamento, além de prêmios para obras de pretensões mais artísticas e empresas em nascimento. É graças a um destes prêmios que Bresson consegue viabilizar a produção de seu próximo filme: Um condenado à morte escapou

O filme é produzido e distribuído graças a um prêmio que recebe da CNC. O prêmio lhe permite um lançamento digno o que lhe possibilita alcançar o sucesso de público. Foi um grande choque para o cinema francês o sucesso do filme de Bresson. O público poderia se interessar por um filme que não visasse somente a agradá-lo, que tivesse algo a dizer, e que rompesse com a estrutura tradicional da forma do filme. O que realmente é necessário é uma distribuição que apresentasse (e não o mantivesse nas trevas como costuma ser feito até hoje) o filme, que possibilitasse a sua exibição em diversas salas. Esta será uma lição importantíssima para a geração nouvelle vague que acompanhava o desdobramento do cenário cinematográfico francês com olhos atentos.


Quanto ao filme: Bresson parte de um ponto que já era trabalhado com sucesso pelo cinema italiano, a exemplo de Umberto D., que era o uso de atores não-profissionais nos filmes (incluindo protagonistas). Os atores costumam criar uma realidade própria, que se assemelha à realidade que vivemos, mas que não é ela. A proposta de Bresson ao utilizar estes não-atores era o de fugir deste mundo de "realidade ficcional" tão comum de ser encontrada no cinema. Ele forçava seus atores a perderem qualquer maneirismo e que agissem com maior simplicidade possível, sem caretas ou alteração exagerada no tom de voz. É assim que Bresson guia seu elenco liderado por François Leterrier, que aqui é Fontaine, o preso que escapou e agora nos conta sua história.

Outra característica da teoria de Bresson que se apresenta neste filme é a separação entre som e imagem. O cineasta, um dos poucos a teorizar o som no cinema, propõe que a trilha de sons e imagens não devem nada uma à outra, sendo que a construção de cada uma deve ser feita à parte. Assim, Um condenado à morte escapou surge como um filme narrado por inteiro pelo protagonista que nos conta a história de sua fuga enquanto as imagens nos mostram o que suas palavras expressam. Mas em determinados momentos a palavra não é o suficiente para dizer o que o personagem está a fazer, e as imagens dominam o filme. Em outros momentos a palavra já apresenta o que as imagens já dizem, dando muito mais informações ao espectador. 


Devido ao processo de desdramatização utilizado por Bresson, suas imagens tornam-se incapazes de mostrar o subjetivo de seus personagens de maneira tão simples como acontece para a maioria dos cineastas - que por vezes abusam do close-up para desnudar as emoções de seus personagens - e por isso a trilha sonora com a narração do protagonista vem tão bem a calhar, dizendo-nos o que sentia ele em determinados momentos durante o processo de planejamento e execução de fuga.