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domingo, 9 de junho de 2019

Notas sobre o sublime cinematográfico


Em julho de 1961, o cineasta, crítico e então editor dos Cahiers du cinéma, Éric Rohmer escreveu um dos artigos mais conhecidos de sua carreira como teórico de cinema para esta mesma publicação, intitulado O Gosto da Beleza, que mais tarde viria a figurar como título para a coleção de artigos e ensaios selecionados ao longo de sua carreira de pensador da arte em questão.
Eric Rohmer é conhecido nos meios cinematográficos como sendo um membro que politicamente se posicionaria mais à direita dentre os escritores da revista, e dentre os participantes do que ficou conhecida como a Nouvelle Vague. Em parte por isso o valor do ensaio O Gosto da Beleza foi sombreado pelo que costumeiramente foi interpretado como um lance conservador de Rohmer em buscar a retomada de vocabulário arcaico para tratar o cinema.
A proposta do crítico e cineasta em O Gosto da Beleza é o de encarar o cinema como uma arte madura, e portanto passando do ponto de os críticos e estudiosos se debruçarem unicamente nas formas de expressão das obras fílmicas para se focar na profundidade do conteúdo destes mesmos filmes - e aqui por conteúdo que seja entendido o filme em sua individualidade e singularidade, não sua temática ou roteiro. Se for para julgar os filmes como obra de arte, que os estudiosos de cinema se apropriem do vocabulário utilizado para se reportar a obras de arte.
Os esforços da crítica foram bem realizados ao longo das décadas anteriores, reconhece Rohmer, inclusive a de seus companheiros de Cahiers e de Nouvelle Vague – ocasionais críticos. Por meio dos artigos, críticas e ensaios de André Bazin, François Truffaut, André Labarthe, e alguns outros nomes muito caros à movimentação da cinefilia francesa, foi possível reconhecer algumas mudanças de perspectiva no tratamento interpretativo de uma obra fílmica. Em 1961, data da publicação do artigo de Rohmer, nem mesmo o crítico de um periódico provinciano – escreve ele – ousaria tratar os filmes somente a partir de seu roteiro, da história que conta. Um filme conta com todo um universo de possibilidades expressivas que permitem dar um tratamento ao roteiro, fazendo com que o trabalho de contar uma história em filme vá muito além do que se encontra escrito no texto entregue aos atores.
Chega então um ponto de contraposição. Se seus colegas estabeleceram estas mudanças de perspectiva de como interpretar um filme adotando o conceito de “mise-en-scène”, tomado de empréstimo do teatro e que passa a dizer respeito mais amplamente à encenação fílmica em todas as suas características (o jogo do ator com a câmera, o posicionamento da câmera, o movimento da câmera, a montagem, a colocação da trilha sonora...), Rohmer propõe uma nova mudança de perspectiva colocando sua preferência: o Belo. Para propor o uso da segunda noção em detrimento da primeira, Rohmer diz que no Belo já é possível abarcar a noção de “encenação fílmica”, mas deixa de lado o peso técnico que esta última carrega.
A incursão de Rohmer pelo trabalho que seus parceiros de crítica realizavam até então pode ser expandido para o trabalho feito pelos filósofos ao tomar o cinema como tema de investigação – num padrão que se manteve mesmo depois do artigo de Rohmer. Os comentários envolvendo o dispositivo cinematográfico por filósofos datam desde seus primeiros dias de existência, sendo que dentre os mais famosos estão aqueles de Henri Bergson, notavelmente em A Evolução Criadora. O foco exclusivo no cinema, porém, somente terá início alguns anos mais tarde desta que é a obra mais conhecida de Bergson, quando Hugo Munsterberg publica nos EUA o tratado The Photoplay: A Psychological Study, dedicando-se inteiramente ao estudo do cinema, em 1916. Contudo, o tratado de Munsterberg não ficou tão bem conhecido entre o público geral e os acadêmicos de filosofia e das artes, somente ganhando notoriedade décadas mais tarde.
Durante esta primeira fase da história da teoria de cinema, aqueles que mais tomaram a frente para pensar a arte e suas formas de expressão foram os próprios realizadores. Na União Soviética, os cineastas mais influentes não somente trabalhavam fazendo filmes, como também auxiliavam na formação de novos realizadores de cinema. Foi destas aulas que surgiram experimentos de ordem perceptiva, para notar padrões de comportamento do espectador com relação às imagens – o mais famoso dentre eles é aquele realizado por Lev Kulechov –, assim como para pensar em novos caminhos de utilizar a montagem para melhor desenvolver uma narrativa essencialmente cinematográfica – como é exemplo com os exercícios teóricos e práticos de Eisenstein com a montagem de atrações e a dialética fílmica.
Curiosamente, é na França que se pode encontrar – ainda na década de 1920, durante o período silencioso do cinema – alguns exercícios próximos à proposição de Rohmer em seu artigo. Se na Alemanha do mesmo período ficou famoso o movimento expressionista, na França semelhante movimento acontecia de cineastas desenvolverem obras vanguardistas buscando experimentar com as formas de expressão do cinema. O grupo central do cinema francês do período ficou conhecido como Impressionista, em aproximação com o movimento das artes plásticas do mesmo país. Os cineastas, assim como os soviéticos, trabalhavam também como teóricos, ainda que diferentemente dos soviéticos não tivessem uma escola de formação de novos realizadores. Logo a crítica de cinema francesa ganhou fôlego, e já no final da década de 1910 todo jornal do país carregava uma seção dedicada a crônicas sobre a nova arte. Por meio destes espaços os realizadores de cinema podiam desenvolver suas ideias a respeito do que pensavam. A ideia que mais se aproxima daquela de Rohmer envolve a noção de fotogenia.
Assim como a noção de “encenação fílmica”, a “mise-en-scène” – um conceito tão popular dentre os críticos que mesmo no Brasil é utilizado por acadêmicos sem tradução para guardar sua amplitude descritiva dentro da teoria de cinema – “fotogenia” não é um termo novo para as artes, antes sendo proveniente da fotografia, sendo apropriada pelos estudos de cinema e carregando forte peso técnico, como sua prima “mise-en-scène”. Mas Fotogenia começou a ser utilizada pelos cronistas, críticos e teóricos de cinema nos anos 1920 como um termo para poder abarcar tanto o aspecto técnico do dispositivo cinematográfico, quanto seu aspecto estético. Um exercício de cineastas para encontrar o meio termo entre a técnica e o poético que guarda esta nova arte. A poesia seria rendida no cinema através da Fotogenia. Dentre os realizadores que se dedicaram ao estudo da Fotogenia no cinema, destacam-se Louis Delluc e Jean Epstein.
Apesar das promessas da Fotogenia para o cinema, sua definição nunca foi muito bem precisada pelos realizadores, deixando-a a cargo da intuição de seus leitores e colegas realizadores para desvendar seu mistério. É o que nota, por exemplo, Jacques Aumont, ao citar um trecho de um dos ensaios de juventude de Jean Epstein, escrevendo, “a fotogenia é para o cinema o que a cor é para a pintura, o volume para a escultura: o elemento específico desta arte” – assim começa Epstein, ao que Aumont conclui, “A fotogenia é a virtus artística do cinema. não precisa portanto de nenhuma definição particular. Daí Epstein voltar ao termo dez anos depois exatamente, em 1934-1935, para anunciar uma ‘fotogenia do imponderável’. Simplesmente, a ênfase deslocou-se da fotogenia ao imponderável: o cinema tornou-se a arte do invisível” (AUMONT, p. 92).
Precisamente este invisível, ou imponderável, passou a ser levado em consideração por críticos e filósofos ao longo das décadas seguintes. O próprio Epstein, ao se ver afastado da produção fílmica depois do advento do cinema falado, passou a cada vez mais redigir ensaios sobre o cinema abordando o caráter metafísico do dispositivo cinematográfico, dando particular atenção à relação do cinema com o tempo. Durante este mesmo período, André Bazin, mentor de Eric Rohmer, escreve uma série de ensaios acerca do realismo cinematográfico em estudos de viés ontológico, também se dirigindo ao tempo, ou neste caso em seu débito com a filosofia de Bergson, duração. Assim continuam os estudos de cinema, com Edgar Morin na década de cinema com o livro O Cinema ou o Homem Invisível, Susan Sontag em suas Notas sobre Bresson.
Até que na década de 1970 uma corrente iniciada pelo cineasta estadunidense Paul Schrader, roteirista famoso pelo filme Taxi Driver, começou a chamar este invisível, o imponderável, sob a categorização de “cinema transcendental”. O ensaio de Schrader exerce grande influência sobre estudiosos, especialmente sobre a obra do filósofo francês Gilles Deleuze, ao escrever o segundo tomo de seu texto sobre cinema. Ancorado no título de Schrader que Deleuze cunha seu famoso conceito de imagem-tempo.
Apesar da importância de todas estas concepções, permanece válida a incursão de Eric Rohmer, mas desta vez com uma perspectiva filosófica. Os estudos que se preocuparam com pensar o cinema continuadamente mantiveram suas proposições voltadas para aspectos ora técnicos, ora ontológicos, recusando o vocabulário estético que a tudo isto poderia abarcar, e ainda levaria em consideração a condição do objeto de investigação: a arte cinematográfica.
Na separação dos dois tomos de seu estudo de cinema, Deleuze realiza também uma separação “histórica” – aqui figurando entre aspas porque não trata do autor nem como uma evolução (como o fazia Bazin), nem como uma progressão, ou como havendo um momento de ruptura na história desta arte. A “história” do cinema deleuzeana se divide (como fazia Bazin) entre clássico (imagem-movimento) e moderno (imagem-tempo), uma divisão que continua a causar confusões interpretativas da obra do filósofo. A imagem-tempo seria constitutiva de características muito próximas àquelas detalhadas por muitos outros teóricos de cinema antes dele: há o tempo, o espírito, o pensamento, o transcendente. Curiosamente, no entanto, é encontrar estas características na descrição de escritores clássicos ao considerar a emoção do sublime.
O sublime foi emoção considerada por muitos autores ao longo dos séculos, caída em desuso por acadêmicos próximos à arte cinematográfica antes mesmo de abordá-la. Há, assim, o perigo de tomar uma noção desenvolvida quando inserida em determinados contextos alheios àqueles da arte cinematográfica. Quando pensado por Longino, o sublime é pensado exclusivamente no contexto literário. Quando pensado por Kant, o sublime não se prende às fronteiras da experiência com as artes. Em fato, o sublime tal como tratado por Kant em sua Crítica da Faculdade de Julgar somente será mais diretamente vinculado às artes quando pensado por autores muito mais próximos à produção artística, como Schiller, mesmo assim, ainda antes da criação do cinema.
Próximo do que Rohmer já propunha a respeito do Belo, um estudo que atualize o sublime pensando-o em sua ligação com o cinema não poderá se furtar a levar em consideração as ponderações ontológico-metafísicas em torno desta arte. O objetivo desta pesquisa é o de buscar nas fontes clássicas os estudos sobre o sublime, para que assim seja possível realizar uma atualização da noção, aproximando-o de uma metafísica e de uma ontologia do dispositivo cinematográfico.



ROHMER, Eric. Le gout de la beuté. Publicado originalmente em: Cahiers du Cinéma, Julho de 1961, Tomo XXI, nº 121, p. 18-25.

(texto originalmente apresentado no seminário da pós-graduação em Filosofia da Universidade Federal da Bahia)

quinta-feira, 15 de março de 2018

Parece mágica, mas é cinema

Sobre Hugo Munsterberg e o primeiro tratado dedicado ao estudo da arte do filme

Originalmente publicado em espanhol em Revista Zahir


            Tempos atrás, quando Theda Bara era uma das estrelas mais conhecidas e quando Hollywood ainda não era um lugar nos EUA, um europeu ensinando filosofia e psicologia foi contratado pelos estúdios Paramout. Deslumbrado com as muitas possibilidades ainda por desbravar da arte do filme ainda a dar seus primeiros passos, ele começa a escrever. Não filmes, porque não era um artista. Fora contratado pela gigante do entretenimento para fazer filmes educacionais. Como bom acadêmico, desenvolveu suas ideias sobre este novo meio de expressão.
            Deste encontro do acadêmico com a arte do filme surgiu o primeiro tratado sobre cinema. Mas a arte não é nele chamado de cinema. Não, este é um termo que os franceses utilizam e que exportaram para alguns outros idiomas mais próximos. O filósofo e psicólogo, com um pé no pragmatismo de seus colegas de departamento em Harvard e outro pé no kantismo de sua educação lá na terra natal, Hugo Munsterberg escreve e publica em seu derradeiro ano The photoplay, a psychological study. Um estudo que se divide em duas partes, a primeira para comentar o aspecto psicológico do meio, outro para falar do aspecto estético.
            Por muito tempo os escritos de Munsterberg foram esquecidos pelos estudiosos dos filmes. Mas a abordagem que ele desenvolve em seus escritos é uma das mais persistentes nos estudos de teoria de cinema – tal como aponta Noel Carroll em Theorizinhg the moving image. Como bom psicólogo, Munsterberg traça a analogia mente/filme, que podemos ver ainda na teoria de Jean Epstein e em certa medida em Deleuze.
            Chegamos assim ao ponto chave de nossa breve incursão pelo mundo cinematográfico de Munsterberg. Como é feita esta analogia entre a mente e o filme? Num dos capítulos de The photoplay o filósofo retoma um dos temas mais estudados pelos autores de seu tempo: a atenção. Separa a atenção em dois tipos: atenção voluntária e atenção involuntária. Ambos os tipos podem ser encontrados nas artes teatrais, e também no cinema. Com o cinema algo de muito peculiar acontece.
            Antes de chegar à conclusão, que seria a peculiaridade da representação cinematográfica da atenção, desvendemos o que significa estes dois tipos de atenção.
            Primeiro, a atenção voluntária. Esta acontece quando selecionamos o caos do mundo externo em direção a uma conclusão que queremos tomar. Nossas percepções são direcionadas para a busca de algo em específico, porque nosso intento busca esta especificidade no mundo externo. Tudo aquilo que não satisfaz ao nosso interesse é assim descartado para que nos foquemos apenas naquilo que vemos como sendo mais importante. Aceitamos o que vem de fora apenas se nos fornecer matéria para aquilo que estamos a buscar. É o caso da leitura deste texto. Seus olhos, leitor, perifericamente conseguem captar todo o entorno, mas sua atenção, seu esforço mental, focaliza apenas as palavras que está a ler. São elas que lhe atraem e não os objetos dormentes sobre a mesa.
            Segundo, a atenção involuntária. Para esta já não estamos com uma ideia pré-concebida e não buscamos ordenar as impressões ao nosso redor. Acontece quando algo que é externo a nós chama nossa atenção com muito mais força do que podemos controlar. Por exemplo, se enquanto lê estas palavras o barulho de uma explosão ou de uma pancada muito forte retire seus olhos destas letras. Se alguém derruba um copo em outro cômodo da casa, neste momento, nossa atenção se voltará por completo para aquele ponto. Não porque queremos, porque não esperamos que o copo vá ser derrubado. Daí ser chamada de involuntária.
            As artes possuem muitas maneiras de trabalhar com estes dois tipos de atenção. No teatro, certamente o ator que fala chama mais atenção que aquele que está em silêncio, a não ser que a fala seja direcionada a alguma outra personagem no palco. Mas no caso do teatro, a atenção permanece sendo direcionada pelo próprio espectador. Uma atenção voluntária. Porque se queremos nutrir-nos ao máximo desta experiência, devemos seguir os passos que os artistas nos apresentam – a não ser em casos de obras pós-modernas. Se vou ao teatro com maior interesse em assistir à performance de um dos atores em especial, posso abandonar a ação e ficar a espiá-lo enquanto ele não é centro da cena.
            Poderíamos dizer que este é o caso também do primeiro cinema, aquele feito aos primórdios da arte do filme. Quando a câmera de filmar permanecia em frente ao cenário – no que é chamado, não elogiosamente, de “regente de orquestra” – observando os atores à distância, buscando fotografá-los de corpo inteiro. O cenário aparece em aberto para o espectador que pode muito bem distinguir os diferentes atores e pode direcionar seu olhar para diferentes pontos do quadro. Olhar para o que acontece fora do centro da ação, longe de onde acontece o conflito.
            Mas no caso deste cinema temos uma particularidade. Porque o cinema, diferente do teatro, ao filmar possui apenas uma perspectiva daquela ação. E assim o autor de uma película pode filmar de modo a direcionar o olhar do espectador por meio do reposicionamento dos atores no cenário. Como escreve David Bordwell em Figuras traçadas na luz, são muitas as possibilidades estéticas que o jogo de cobrir e revelar tem a fornecer ao cineasta. Um grupo de personagens surge numa sala, e todos eles cobrem a entrada. Movem-se em direção a uma mesa e junto com eles levam nossa atenção. Permanecem de pé a observar algo sobre a mesa, quando o herói adentra em cena. Apesar da falta de obviedade de uma cena como esta, trata-se de um jogo de encenação muito eficaz para direcionar o olhar do espectador. Porque nosso olhar e nossa atenção caçam os movimentos, a ação. Algo que possa alimentar nosso interesse.
            Munsterberg está mais interessado em outros truques possíveis com o cinematógrafo. E, tal como Méliès, encontra-se fascinado com as possibilidades da trucagem. Os efeitos possíveis pelos cortes, os saltos temporais – como Eisenstein escreveu pouco depois, antes somente possíveis pela literatura. O cinema, num piscar de olhos, é capaz de saltar dez, vinte anos no tempo. Se inserir na mente de suas personagens e concretizar seus sonhos, suas lembranças. Quão maravilhosa não é esta máquina que consegue nos apresentar nossos próprios sonhos! Fazer fadas dançarem sobre as mãos de um homem, como antes era possível somente nos mais fantásticos delírios!
            Dentre estas trucagens, a que mais chama atenção de Munsterberg no capítulo citado é o close-up. Por meio dele é possível aumentar imensamente alguns detalhes da cena. Fazer com que todo cenário desapareça na escuridão da sala de projeção. Quando o homem toma o revolver de cima da mesa, vemos com clareza seu gesto. A mão cresce e a vemos em detalhes. Está ali em toda agonia e efervescência do momento que leva àquela ação.
            “É aqui que começa o cinema!”, vibra Munsterberg. Quando a mão cresce e toma toda a tela. Quando o cinema toma para si as possibilidades que antes somente eram possíveis para a mente humana. Tal como selecionamos com nossos olhos aquilo que nos é mais caro ver, também faz o cinema por meio do close-up. O cinema externa esta que é uma competência da mente humana, apenas. Está transposto para o mundo da percepção um ato mental. Nada mais podemos ver dentro da escuridão da sala de cinema, na tela nos é dada apenas a mão a segurar o revolver.
            Este elogio de Munsterberg ao close-up é próprio aos autores dos primeiros tempos. Autores fascinados com as diversas capacidades de expressão por meio do filme. E quão fantástico não deve ter sido para este psicólogo e filósofo sentar-se a uma sala de cinema e descobrir o close-up! Esta técnica que para os espectadores contemporâneos parece a mais comum das técnicas cinematográficas, mas que possui a competência de dar vida às menores coisas (aqui numa evocação dos escritos de Epstein).
            O caso é que a analogia entre a mente e o filme não termina somente na atenção. Como já colocamos, o filme é capaz de saltar no tempo, tal como podemos fazer com o auxílio de nossa memória. Daí que a obra de Munsterberg tenha sido retomada em meados da década de 1970. Àquela altura, muitos de seus leitores traçaram paralelos entre os escritos de Munsterberg e os filmes que estavam a surgir nos anos 1960. Alguns chegaram a tratar Munsterberg como profeta de tais filmes.
            Não é o caso. Não devemos tratar Munsterberg como um profeta do “cinema moderno” (se é que existe tal coisa). Os filmes de Alain Resnais e Fellini se assemelham em muito a seus escritos, mas não devemos nos esquecer de que em seus escritos Munsterberg também se posiciona contrário aos experimentos que levaram ao cinema falado. O que não era uma particularidade sua, muitos dos teóricos de cinema até os anos 1930 enxergavam o som como uma adição que decairia a qualidade estética das imagens.
            Retomar a analogia mente/filme de Munsterberg hoje é muito interessante para os estudos de cinema. Os escritos sobre a arte do filme se encontram em larga medida embriagados pela ideia de que o cinema oferece uma réplica do mundo real. Os ideários do realismo, que conclamam os deveres morais dos realizadores em representar seus filmes da forma mais realista possível. A analogia filme/mente abre as portas para um pensamento de cinema e de formas de se expressar por meio do cinema mais amplo, dentro deste espectro. Tal como fizeram Resnais com seu L’anée dernière à Marieband e Fellini com seu 81/2.

segunda-feira, 25 de julho de 2016

A alma em câmera lenta


Negligenciei voluntariamente ao curso de A queda da casa de Usher todos os efeitos plásticos que poderiam permitir o ultra-cinematográfico. Não procurei – se ouso me exprimir assim tão pretensiosamente – o ultra-drama. Em algum momento do filme, o espectador poderá reconhecer: a câmera lenta. Mas penso que, como eu à primeira projeção, ele se surpreenderá com uma dramaturgia assim tão minuciosa. Porque é a dramaturgia a alma própria do filme, de onde provém seu interesse. Estamos, tão sutilmente como em literatura, próximos de reencontrar o tempo perdido.

Não conheço nada de mais comovente como o retardamento de um rosto fornecendo uma expressão. Toda uma preparação anterior, uma lenta febre, que não se sabe se se compara a uma incubação mórbida, a uma maturidade progressiva ou, mais grosseiramente, a uma gestação. Enfim, todo este esforço transborda, rompendo a rigidez de um músculo. Um contágio de movimentos anima a face. As asas dos cílios e o tufo do queixo batendo nele mesmo. E quando os lábios se separam, enfim, para indicar o grito, assistimos a toda sua longa e magnífica aurora. Um tal poder de separação do olho mecânico e ótico fez aparecer claramente a relatividade do tempo. E é verdade que os segundos duram horas! O drama está situado fora do tempo comum. Uma nova perspectiva, puramente psicológica, é obtida.

Creio nisso mais e mais. Um dia o cinematógrafo, o primeiro, fotografará o anjo humano.

(publicado em Écrits sur le cinéma, tomo I, p. 191)

segunda-feira, 11 de julho de 2016

Ritmo e montagem


            É a este problema da inscrição cinematográfica do tempo a que se relacionam as questões relativas ao ritmo cinematográfico, ao que foi reconhecida hoje como fonte de força estética.
            Se chama passagens ritmadas de um filme, de passagens compostas num tablado onde as lonjuras são estritamente determinadas umas com relação às outras. Para que uma passagem ritmada produza um efeito agradável ao olho, é preciso, para além de suas qualidades dramáticas, que as distâncias das passagens tenham entre elas uma ligação simples. É sobretudo necessário para uma montagem rápida, onde as extremidades de 2 – 4 – 8 imagens criem um ritmo que seja forçadamente destruído pela introdução de um corte de 5 ou 7 imagens. Há aí uma analogia muito evidente com as leis dos acordes musicais.
            Este ritmo das imagens, é preciso dizer, não é mais que o aspecto mais exterior do ritmo cinematográfico. Pondo-o de lado, para além dela, mais importante ainda, é o ritmo psicológico que se traduz pelo ritmo da vida das personagens no écran e pelo ritmo do próprio roteiro.
            Creio que se obriguei meus atores em Auberge rouge a estes gestos lentos, a este olhar de vida sonhadora, foi justamente para buscar um ritmo psicológico condizente com o romance de Balzac. Este ritmo lento, mantido, forçado, que me foi naturalmente muito criticado, não foi, portanto, um erro porque ele contribui em muito, creio, para criar, e desde o princípio de Auberge rouge, uma atmosfera de espera, de mistério, de inquietude, na qual a maioria dos espectadores se deixou levar.
            Esta é a primeira chave da fotogenia: a mobilidade simultânea seguinte às quatro dimensões do espaço-tempo, não se aplica somente aos aspectos exteriores das coisas; está lá também a chave da mais profunda dramaturgia cinematográfica, da qual ainda resta muito a realizar. A pobreza lamentável dos roteiros vem em primeiro lugar da ignorância desta regra primordial: não existem sentimentos inativos, que não se movam no espaço, não existem sentimentos invariáveis, que não se movam no tempo.
         Um drama cinematográfico deveria sempre ser conhecido em vista unicamente desta perspectiva dramática: uma ação determinada por um sentimento que segue seu curso, tanto que o sentimento evoluído por sua vez, tende a se encontrar em contradição com a ação primitivamente determinada. É desta forma que se pode e deve utilizar, no plano mental dramático, a nova perspectiva dos quatro elementos do cinema.


(publicado em Écrits sur le cinéma, tomo I, p. 121)

segunda-feira, 4 de julho de 2016

A essência do cinema


Sendo, um dia, entrevistado por um jornalista, respondo a muitas questões destinadas, creio, ao espírito deste jornalista, para elucidar o mistério da identidade do cinema. E a primeira destas questões era: “Seria, para você, o cinema, sobretudo documentário?”. E eu respondo: “Não. O documentário não é mais que um lado acessório do cinema”.
            A segunda questão do jornalista foi: “Seria para você a grande direção um lado essencial do cinema?”, e respondi a esta segunda resposta do jornalista: “Não, a direção não é mais que um lado acessório do cinema, ao qual credito pouca importância”. O jornalista continua suas questões, porque um jornalista nunca deixa de ter questões, ele pergunta então o seguinte [p. 119]: “Seriam os filmes estilizados ao gosto cubista ou expressionista a essência do cinema para você?”.
            Nesta ocasião, minha resposta foi ainda mais categórica: “Não. Estes não são mais que acessórios do cinema e quase que uma doença deste acessório”. Creio que podemos considerar esta estilização extrema da decoração como capaz de destruir o equilíbrio de um filme para o lucro de um só elemento, de todo modo secundário de um filme: a decoração, para a qual toda atenção é atirada a despesa do cinema propriamente dito. Lembre-se desta palavra que fez parte do programa do teatro de arte livre, em seu princípio: “A palavra cria a decoração, como o resto”. Bem, creio que o cinema de arte, que está nascendo, possui o dever de inserir, em seu programa, esta fórmula: “O gesto cinematográfico cria a decoração como o resto”.
            O jornalista me pergunta ainda: “Seriam os filmes realistas a essência do cinema, para você?”. Nesta ocasião, nada respondi ao jornalista, porque não sei o que seja o realismo em matéria de arte. Me parece que se uma arte não é simbólica, não é uma arte...
            Disse, então, que nem o documentário, nem a grande direção, nem o expressionismo, nem o realismo são a essência do cinema. Não quero dizer com isso que certos filmes, classificados nestes diversos gêneros, não sejam realmente belos filmes. Quero dizer simplesmente que este lado documental, expressionista, realista não é mais que um lado acessório na estrutura cinematográfica destes filmes. Este lado, ainda que acessório, é, para os olhos pouco exercitados, mais aparente que a própria substância cinematográfica e pode enganar, assim, acerca de sua importância real. Quando um prato está muito apimentado, é a pimenta que você mais sente, mas não é a pimenta que o alimenta.
            Passamos em revista alguns condimentos cinematográficos, alguns condimentos da fotogenia. Voltamos ainda e sempre à questão: “quais são os aspectos das coisas, dos seres e das almas, que são fotogênicas, aspectos estes que a arte cinematográfica possui o dever de se limitar?”.
            O aspecto da fotogenia é um composto variante do espaço-tempo. Esta é uma fórmula importante. Se vocês querem uma tradição mais concreta, ei-la: um aspecto é fotogênico se ele se desloca e varia simultaneamente no espaço e no tempo. [p. 120]

1923.


(fragmento de conferência dada em 1923. Publicado em Écrits sur le cinéma, tomo I, p. 119-120.)

sábado, 2 de janeiro de 2016

O cinema e o tempo criado

Originalmente publicado em Revista Sísifo.
Este texto é um ensaio. Como o próprio nome já diz, aqui não será apresentado nenhum dado definitivo, mas algumas implicações que nos levarão a uma conclusão. Nosso objeto de estudo é o tempo cinematográfico. Enquanto espectador de um filme, percebo que o tempo passa enquanto assisto à obra. Enquanto cinéfilo, percebo que diferentes cineastas trabalham de formas diferentes para nos fazer perceber o tempo. Ora ele é alongado, ora ele parece curto. Trata-se de um ensaio escrito, antes de qualquer coisa, por um cinéfilo, e por isso muitos serão os filmes abordados aqui, neste que é um ensaio de introdução a um pensamento. Comecemos, então, com uma história:
Em Turim, no dia 3 de janeiro de 1889, Friedrich Nietzsche deixa a residência no número 6 da Via Carlo Alberto, talvez para dar um passeio, talvez para ir até o correio para recolher sua correspondência. Não longe dele, ou realmente bastante longe dele, um cocheiro tem problemas com seu cavalo teimoso. Apesar de sua premência, o cavalo resolve empacar, o que faz com que o cocheiro - Giuseppe? Carlo? Ettore? - perca a paciência e comece a chicoteá-lo. Nietzsche avança até a multidão e põe um fim ao brutal espetáculo do cocheiro, que está espumando de raiva. O forte e bigodudo Nietzsche repentinamente pula na carroça e abraça o pescoço do cavalo, soluçando. Seu vizinho o leva para casa, onde ele fica deitado por dois dias, imóvel e silencioso, em um divã até que finalmente murmura suas últimas palavras: "Mutter, ich bin dumm." ("Mãe, eu sou idiota."). Ele vive ainda por 10 anos, meigo e demente, sob os cuidados de sua mãe e irmãs. Do cavalo, nada sabemos.[1]
As palavras acima são enunciadas pelo narrador do filme O Cavalo de Turim (A torinói lódo cineasta húngaro Béla Tarr. Elas soam para o espectador enquanto este mergulha na escuridão da sala de cinema proporcionada pela tela preta que mantém o filme sem qualquer representação espacial daquilo que é retratado pelo narrador. Perante esta falta, o espectador se vê obrigado a construir a cena em sua mente, afinal de contas todas as ferramentas lhes são dadas para que ele o faça. Ele sabe em que momento histórico do evento (a data do evento lhe é informada), ele sabe quem são os personagens, sabe a localidade e a ação lhe é detalhada. Tudo isto faz com que a cena, embora não seja apresentada na tela surja em sua mente.
La Jetée é um filme de Chris Marker que nos apresenta uma humanidade frágil perante as destruições causadas pela terceira guerra mundial, onde a humanidade tem que se refugiar no subterrâneo das grandes cidades (o filme se passa em Paris), mas vivendo de maneira precária. O curta em questão é todo construído por uma sucessão de fotografias que apresentam a história que está a ser narrada por um narrador que não participa da trama.
Alfred Hitchcock desenvolveu durante sua carreira algumas das mais importantes noções de construção cinematográficas que hoje possuímos, além de ter acrescentado alguns termos importantes para o dicionário cinematográfico [2]. Eis sua explicação sobre a diferença entre suspense e surpresa:
A diferença entre suspense e surpresa é muito simples, e costumo falar muito sobre isso. Mesmo assim é frequente que haja nos filmes uma confusão entre essas duas noções. Estamos conversando, talvez exista uma bomba debaixo desta mesa e nossa conversa é muito banal, não acontece nada de especial, e de repente: bum, explosão. O público fica surpreso, mas, antes que tenha se surpreendido, mostram-lhe uma cena absolutamente banal, destituída de interesse. Agora examinemos o suspense. A bomba está debaixo da mesa e a plateia sabe disso, provavelmente porque viu o anarquista colocá-la. A plateia sabe que a bomba explodirá à uma hora e sabem que falta quinze para a uma - há um relógio no cenário. De súbito a conversa banal fica interessantíssima porque o público participa da cena.[3]
Tomemos a mesma cena descrita por Hitchcock: um grupo de pessoas conversa em torno de uma mesa, e debaixo dela existe uma bomba com um relógio em contagem regressiva. O espectador sabe da presença daquela bomba, o que o deixa bastante apreensivo, porque um daqueles personagens é o mocinho da história. Em certo momento da conversa uma das pessoas sentadas à mesa deixa um papel cair no chão e se abaixa para pegá-lo. Ao fazê-lo descobre a bomba e informa aos demais. Um deles decide desarmá-la. O relógio continua em contagem regressiva. Faltam agora alguns segundos para que a bomba exploda nas mãos de nosso herói, que ainda não conseguiu desligá-la. Os segundos começam a passar lentamente. De repente o relógio mostra que faltam dez segundos para a explosão. O diretor prefere fazer um passeio pelo rosto dos presentes para mostrar a apreensão estampada no rosto de todos. Esta cena dura mais do que um segundo, mas quando ele volta para o relógio da bomba ele contabiliza nove segundos. O tempo continua passando e o diretor resolve agora, aos cinco segundos, fazer um flashback com o personagem e vemos todos os momentos felizes que haviam sido mostrados no filme. Com isto ele assegura o afeto do espectador para com o personagem deixando quem assiste mais nervoso, não querendo que aquele sujeito morra. Este flashback pode durar até vinte ou trinta segundos, mas quando voltamos o relógio da bomba ainda está em quatro segundos. Em um plano/contraplano o diretor mostra o personagem e o objeto que o aflige, e esta pode ser uma das poucas cenas em que o segundo é respeitado, mas a preferência pelo aumento do tempo em uma cena de suspense é aconselhável para aumentar a tensão do espectador. Por fim ele consegue desarmar a bomba e o espectador respira aliviado.
É curioso tratarmos o alongamento do tempo partindo de Hitchcock. O cineasta inglês em momento algum promove tal feito. É ação que poderíamos ter creditado, antes, a Michelangelo Antonioni. Mas preferimos guiar este ensaio por meio de imagens, afinal estamos a falar de cinema, e as criações de Antonioni não nos dariam esta impressão se transcritas da imagem à palavra escrita. O caso é que Hitchcock se baseia numa criação de um tempo próximo ao fenomênico. Lembremos duas cenas de diferentes filmes seus. A primeira de Os pássaros (the birds): um pássaro ataca num posto de combustível, o frentista deixa a mangueira cair e a gasolina escorre pela rua. Um homem de costas não percebe esta ação e acende um cigarro, deixando o fósforo cair ao chão, causando a explosão. Mélanie, a protagonista do filme assistia a tudo da janela de uma lanchonete ali perto. A montagem de Hitchcock busca capturar sua reação, e nada mais faz que por uma fotografia do rosto dela a olhar aquela cena macabra. Outro momento de sua filmografia em que isso pode ser percebido é na cena da morte do investigador em Psicose (Psycho), esta sendo quando o homem entra na mansão de Norman Bates, que surge de detrás de uma porta e o esfaqueia. A cena poderia ter sido alongada quando o investigador chega ao topo das escadas para criar sentimento mais profundo de suspense: Norman poderia estar atrás de qualquer uma destas portas. Mas a rapidez confere ao filme a sua agilidade nos dando a impressão de algo real. É a busca de um tempo realista. Hitchcock não quer que seu espectador imagine estar assistindo a um filme e por isso não lhe dará tempo de perceber que está assistindo a um filme.
Em 8 1/2, Federico Fellini apresenta Guido Anselmi, seu alter-ego, um diretor de cinema que se vê em crise de criatividade pouco antes das filmagens de seu próximo filme, o qual ainda não possui uma história, mas que já possui equipe e elenco contratada. É em meio a esta crise do personagem que Fellini nos permite uma viajem em sua mente. Vemos o mundo por meio do personagem, o que significa que percebemos aquilo que Guido capta dela. Saímos da realidade e passeamos por seus sonhos, desejos e lembranças. Todas estas cenas são tratadas com igualdade ao longo do filme, nenhuma cena é discriminada por um fade, fusão ou transformação estética do filme (tal como modificar a cor da cena) e cabe ao espectador distingui-las. 
Já em Cantando na Chuva (Singin’ in the rain) são os números musicais que nos dão esta discriminação entre a imaginação e realidade. Os números musicais são sempre postos quando o personagem demonstra uma ideia, uma emoção, uma memória. É o caso da famosa cena da dança na chuva que dá nome ao filme. Don Lockwood, nome do personagem de Gene Kelly, sai da casa de sua amada, Kathy Selden, feliz pelo encontro que tiveram e por nele ainda surgir uma ideia que os faria colocá-la no mundo do cinema. A cena da dança na chuva não seria nada além do que a forma com que os diretores (Kelly e Stanley Donen) encontraram para demonstrar por meio de imagens o quão feliz está seu protagonista. 
Tudo o que até agora foi posto abraça a mesma ideia: a importância do tempo para a construção cinematográfica. O tempo é a principal fonte da construção fílmica, daí começar o texto por O Cavalo de Turim (A torinói ló). As palavras, quando faladas, não se encontram no espaço, mas no tempo. Elas, quando assim surgem, não podem ser representadas por meio do espaço, mas por meio de sua sucessão e duração, categorias temporais que nos fazem compreender, entre outras coisas, o espaço. Somente o tempo ordenava alguma coisa no filme naquele momento (não existia qualquer representação espacial para que pudéssemos colocar o contrário). Neste ponto podemos até mesmo dizer que Kant e seu seguidor na teoria de cinema, Jean Epstein, estão certos, o tempo seria a primeira das categorias de nossa mente para que possamos conhecer a realidade[4][5]. A cena de abertura de O Cavalo de Turim (A torinói ló) mais que explicita isso, mas quanto ao cinema. Podemos fazer um filme somente com o tempo, mas não podemos fazer um filme com espaço, sem tempo.
La Jetée segue um padrão muito parecido com a abertura do filme da Tarr, mas neste caso, ao paralisar o espaço, paralisa-se também um momento da realidade. As micronarrativas se perdem com a ausência da liberdade que o espaço normalmente possui e cede lugar para que a macronarrativa possa acontecer. Estas micronarrativas ficam escondidas nos movimentos de câmera e na movimentação dos personagens em cena[6]. Isso tudo se perde aqui. Desta maneira percebe-se que é por meio do tempo que se pode contar uma história no cinema (primordialmente), mesma conclusão a que chegou Bela Tarr quase cinquenta anos depois.
Daqui, pode-se perceber que o tempo cinematográfico não respeita um tempo fenomenológico. Ele é construído à revelia dos fatos dados para que melhor se apresente na tela de cinema e para que melhor tenha efeito ao espectador que intui o tempo (a não ser quando é escolha do cineasta criar um filme realista, como acontece com Hitchcock). Citando Jacques Aumont:
O cinema é, em primeiro lugar, mecanicamente, ou melhor, “maquinicamente”, um instrumento para produzir tempo. Tem seus próprios procedimentos temporais, distintos dos procedimentos habituais[7].
Aumont faz este comentário acerca da teoria do cineasta Jean Epstein, que na década de 1940 passou a direcionar suas atenções às questões temporais do cinema. A partir dos exemplos práticos postos acima, somente podemos concordar com o que diz Aumont/Epstein. Tarr, por exemplo, produziu tempo para fazer a abertura de O Cavalo de Turim (A torinói ló) – ele não fez a reprodução de qualquer ato fenomênico, o tempo apresenta-se intelectivo, tanto em sua construção quanto em sua percepção (como se estivesse a compor uma música). Já no caso de La Jetée, esta questão fica mais clara quando notamos que o tempo do filme não possui qualquer ligação com a temporalidade dos fenômenos externos à película. Ele segue o tempo que lhe é ditado pela permanência e sucessão das fotografias. Uma fotografia pode permanecer na tela por mais tempo do que a narração levaria para explicá-la ou para chegar até ela. E uma fotografia não respeita a temporalidade com a qual os fenômenos acontecem, ela congela o tempo e torna um momento eterno. Mas neste momento ainda não chegamos a nos posicionar no cinema enquanto imagens em movimento, que será o verdadeiro alvo da teoria de Jean Epstein.
Quando Aumont coloca que o cinema “tem seus próprios procedimentos temporais” ele se refere ao que Epstein se prende quando constrói sua teoria, que são os efeitos de câmera: aceleração das imagens e câmera lenta, por exemplo[8]. É comumente aceito de que um filme, ou qualquer produto audiovisual, quando é montado ele recebe a visão do realizador, de que este irá manipular as imagens e moldar o discurso fílmico de acordo com a sua visão. Por isso quando temos uma imagem que não sofreu com um corte é aceito como possuindo a verdade – é o exemplo de Bazin da montagem proibida. Mas pode ser que ela também esteja embebida do olhar poético do cineasta que captou aquelas imagens. Exemplo disso seria a aceleração da gravação do crescimento de uma árvore. Em alguns segundos poderíamos ver o crescimento de alguns meses de uma árvore, claramente manipulando a construção temporal ou o tempo tido como real.
Mas não somente com a manipulação de uma imagem que pode ser feita a construção do tempo no cinema. É aí que reside uma das maiores críticas à montagem no cinema. Andrei Tarkovski, cineasta soviético, criticava o cinema de seu compatriota Sergei Eisenstein por causa da temporalidade que não possuía qualquer semelhança com a realidade. As cenas ganhavam um peso desconfortável na vontade do cineasta de mostrar mais do que poderia ser mostrado simplesmente seguindo o tempo dado por um relógio. Em uma cena de batalha, por exemplo, ele poderia mostrar o confronto entre dois inimigos lutando com espadas até a morte de um deles e, logo em seguida, mostrar outros dois soldados lutando na mesma batalha, exatamente no mesmo momento que os personagens anteriormente apresentados lutavam – a montagem de ações simultâneas.
Esta crítica de Tarkovski pode valer para a montagem cinematográfica, mas ela não enxerga os benefícios de criar um tempo para um filme – algo que vai um pouco além do esculpir o tempo a que Tarkovski se refere. O exemplo dado anteriormente da cena que segue o padrão de suspense seria um ótimo exemplo disso. O tempo é alterado para que o cineasta possua a atenção do espectador em sua obra e isso tudo promovido por uma série de plano/contraplano e outras técnicas comuns para quem se utiliza da montagem para contar uma história em um filme. O tempo é construído para que possa servir de ponte entre as imagens e a emoção do espectador.
Fellini em 8 ½, ao tratar as imagens reais e mentais com igualdade (os sonhos e os fatos), brinca com o tempo e criando uma temporalidade subjetiva, ou melhor, faz a representação de seutempo subjetivo no filme. Durante toda a duração da película passeamos pela mente deste personagem como se a câmera tivesse o superpoder de nos mostrar o fluxo mental de um sujeito, e durante pouco mais de duas horas víssemos parte daquilo que ele tem em mente. 
O filme abre com um sonho. Guido, preso dentro de um carro em um congestionamento, começa a sufocar até que consegue se libertar pela fresta da janela e sair voando por cima dos carros, dos prédios, até sair da cidade e chegar no mar. Durante grande parte desta cena, Guido não é mostrado, vemos aquilo que ele consegue captar daquele sonho. A câmera nos apresenta o ponto de vista de Guido, não necessariamente tomando a posição de seus olhos durante toda a cena (somente em alguns momentos). Mesmo quando ele sai do carro, e não mais estamos neste posicionamento privilegiado de sermos os olhos do personagem, a câmera fica atrás dele, mostrando qual seria a perspectiva deste mesmo personagem, mas dando o espaço necessário para que ele possa voar. 
Jean Epstein, uma década e meia antes do filme de Fellini já tinha feito esta relação entre a manipulação/criação do tempo do filme e a possibilidade de mostrar um sonho em uma obra cinematográfica:
do mesmo modo que o sonho, o filme pode desenvolver um tempo próprio, capaz de diferir amplamente do tempo da vida exterior, de ser mais lento ou mais rápido do que este. Todas essas características comuns desenvolvem e apoiam uma identidade fundamental de natureza, uma vez que ambos, filme e sonho, constituem discursos visuais. Donde se pode concluir que o cinema deve transformar-se no instrumento apropriado à descrição dessa vida mental profunda[9].
Do mesmo modo que o sonho, escreve Epstein, o cinema é capaz de desenvolver um tempo próprio. Outro exemplo, ainda no filme de Fellini, é a cena em que Guido encontra seus pais, ambos já falecidos. A reprodução da temporalidade mental do cineasta faz com que esta cena seja apresentada de maneira peculiar, com os devidos saltos comuns de serem notados nos sonhos. Em um momento Guido está a conversar com sua mãe e com o auxílio de um corte ele está em frente ao túmulo do pai e o ajuda a descer. Este salto temporal, que modifica até mesmo o espaço (antes ele estava em uma parte do cemitério, depois do corte foi para outra), é o exemplo mais claro de como, cinema e sonho, desenvolvem uma temporalidade própria para a criação de uma história, afinal de contas
o trabalho do cinema sobre o tempo nada tem a ver com a simples reprodução idêntica. O cinema sugere um mundo diferente do mundo fenomenal e mesmo do mundo real [...] porque desconecta o espaço de seu tempo-suporte[10].
É ainda nesta visão subjetiva do tempo que podemos retomar o ultimo filme citado no inicio do texto, Cantando na Chuva (Singin’ in the rain). A felicidade do protagonista não poderia ser demonstrada em sua real forma, em seu real “tamanho” se não fosse com um número musical. É o tempo dado pela música que dá a tonalidade da cena, a música que é levada pelo sentimento de felicidade do protagonista. É deste modo que os diretores preferiram, ao invés de mostrar um ator sorrindo caminhando pela rua - mostrando que ele está feliz, mas com a felicidade visivelmente contida – explodir o sentimento em um número musical. A música faz um constructo temporal da cena em que o dançar do ator passa a ser guiado por ela. E toda a cena volta para este par música-dança. Os cortes e movimentos internos ao plano são guiados de acordo com o bailar ritmado pela música. O tempo fílmico torna-se, também, um tempo musical. Mas neste caso, servindo ao desnudar emocional de seu personagem. O tempo apresentado no filme difere radicalmente do fenomênico para poder desvelar o tempo subjetivo. 
O cinema é uma máquina de criar tempo. O cinema não faz a simples reprodução do tempo dos fenômenos, porque estes são apresentados de acordo com a temporalidade criada pelo realizador para que eles possam se adequar ao discurso fílmico em construção. Cada filme possui um discurso e todo filme tem em sua base o tempo que por sua vez é variável de filme para filme, como também, de cineasta para cineasta.

Referência bibliográfica:
AUMONT, Jacques; As Teorias dos Cineastas; Tradução: Marina Appenzeller; Papirus Editora, Campinas, 2008.
XAVIER, Ismail (org.); A Experiência do Cinema; editora Graal, São Paulo, 2008.
TRUFFAUT, François; Hitchcock/Truffaut – entrevistas; tradução: Rosa Freire D’Aguiar; Companhia das Letras, São Paulo, 2010.

Filmes:
CAVALO DE TURIM; Bela Tarr; Hungria; 2011.
La Jetée; Chris Marker; França; 1962.
8 ½; Federico Fellini; Itália; França; 1963.
Cantando na Chuva; Stanley Donen; Gene Kelly; EUA; 1952.

Site:
SUPPIA, A. L. P. O.; La Jetée, “documentário” do futuro. Disponível em:http://www.studium.iar.unicamp.br/14/2.html


[1] TARR, B. O cavalo de Turim2011.
[2] TRUFFAUT. HITCHCOCK. Hitchcock/Truffaut, p. 137-138.
[3] TRUFFAUT. HITCHCOCK. Hitchcock/Truffaut, p. 77.
[4] AUMONT, J. As teorias dos cineastas, p. 41.
[5] KANT, I. Crítica da razão pura, p. 79, B 46.
[6] Disponível em: http://www.studium.iar.unicamp.br/14/2.html. Acessado dia 02/09/2013 às 10:05.
[7] AUMONT, J. As teorias dos cineastas, p. 38.
[8] AUMONT, J. As teorias dos cineastas, p. 38.
[9] EPSTEIN, J. O cinema do diabo, p. 297.
[10] AUMONT, J. As teorias dos cineastas, p. 37.