Em julho de 1961, o
cineasta, crítico e então editor dos Cahiers du cinéma, Éric Rohmer escreveu um
dos artigos mais conhecidos de sua carreira como teórico de cinema para esta
mesma publicação, intitulado O Gosto da Beleza, que mais tarde viria a figurar
como título para a coleção de artigos e ensaios selecionados ao longo de sua
carreira de pensador da arte em questão.
Eric Rohmer é conhecido
nos meios cinematográficos como sendo um membro que politicamente se
posicionaria mais à direita dentre os escritores da revista, e dentre os
participantes do que ficou conhecida como a Nouvelle Vague. Em parte por isso o
valor do ensaio O Gosto da Beleza foi sombreado pelo que costumeiramente foi
interpretado como um lance conservador de Rohmer em buscar a retomada de
vocabulário arcaico para tratar o cinema.
A proposta do crítico e
cineasta em O Gosto da Beleza é o de encarar o cinema como uma arte madura, e
portanto passando do ponto de os críticos e estudiosos se debruçarem unicamente
nas formas de expressão das obras fílmicas para se focar na profundidade do
conteúdo destes mesmos filmes - e aqui por conteúdo que seja entendido o filme em sua individualidade e singularidade, não sua temática ou roteiro. Se for para julgar os filmes como obra de arte,
que os estudiosos de cinema se apropriem do vocabulário utilizado para se
reportar a obras de arte.
Os esforços da crítica
foram bem realizados ao longo das décadas anteriores, reconhece Rohmer,
inclusive a de seus companheiros de Cahiers e de Nouvelle Vague – ocasionais
críticos. Por meio dos artigos, críticas e ensaios de André Bazin, François
Truffaut, André Labarthe, e alguns outros nomes muito caros à movimentação da
cinefilia francesa, foi possível reconhecer algumas mudanças de perspectiva no
tratamento interpretativo de uma obra fílmica. Em 1961, data da publicação do
artigo de Rohmer, nem mesmo o crítico de um periódico provinciano – escreve ele
– ousaria tratar os filmes somente a partir de seu roteiro, da história que
conta. Um filme conta com todo um universo de possibilidades expressivas que
permitem dar um tratamento ao roteiro, fazendo com que o trabalho de contar uma
história em filme vá muito além do que se encontra escrito no texto entregue
aos atores.
Chega então um ponto de
contraposição. Se seus colegas estabeleceram estas mudanças de perspectiva de
como interpretar um filme adotando o conceito de “mise-en-scène”, tomado de
empréstimo do teatro e que passa a dizer respeito mais amplamente à encenação fílmica
em todas as suas características (o jogo do ator com a câmera, o posicionamento
da câmera, o movimento da câmera, a montagem, a colocação da trilha sonora...),
Rohmer propõe uma nova mudança de perspectiva colocando sua preferência: o
Belo. Para propor o uso da segunda noção em detrimento da primeira, Rohmer diz
que no Belo já é possível abarcar a noção de “encenação fílmica”, mas deixa de
lado o peso técnico que esta última carrega.
A incursão de Rohmer
pelo trabalho que seus parceiros de crítica realizavam até então pode ser
expandido para o trabalho feito pelos filósofos ao tomar o cinema como tema de
investigação – num padrão que se manteve mesmo depois do artigo de Rohmer. Os
comentários envolvendo o dispositivo cinematográfico por filósofos datam desde
seus primeiros dias de existência, sendo que dentre os mais famosos estão
aqueles de Henri Bergson, notavelmente em A Evolução Criadora. O foco exclusivo
no cinema, porém, somente terá início alguns anos mais tarde desta que é a obra
mais conhecida de Bergson, quando Hugo Munsterberg publica nos EUA o tratado
The Photoplay: A Psychological Study, dedicando-se inteiramente ao estudo do
cinema, em 1916. Contudo, o tratado de Munsterberg não ficou tão bem conhecido
entre o público geral e os acadêmicos de filosofia e das artes, somente
ganhando notoriedade décadas mais tarde.
Durante esta primeira
fase da história da teoria de cinema, aqueles que mais tomaram a frente para
pensar a arte e suas formas de expressão foram os próprios realizadores. Na
União Soviética, os cineastas mais influentes não somente trabalhavam fazendo
filmes, como também auxiliavam na formação de novos realizadores de cinema. Foi
destas aulas que surgiram experimentos de ordem perceptiva, para notar padrões
de comportamento do espectador com relação às imagens – o mais famoso dentre
eles é aquele realizado por Lev Kulechov –, assim como para pensar em novos
caminhos de utilizar a montagem para melhor desenvolver uma narrativa
essencialmente cinematográfica – como é exemplo com os exercícios teóricos e
práticos de Eisenstein com a montagem de atrações e a dialética fílmica.
Curiosamente, é na
França que se pode encontrar – ainda na década de 1920, durante o período
silencioso do cinema – alguns exercícios próximos à proposição de Rohmer em seu
artigo. Se na Alemanha do mesmo período ficou famoso o movimento
expressionista, na França semelhante movimento acontecia de cineastas
desenvolverem obras vanguardistas buscando experimentar com as formas de
expressão do cinema. O grupo central do cinema francês do período ficou
conhecido como Impressionista, em aproximação com o movimento das artes
plásticas do mesmo país. Os cineastas, assim como os soviéticos, trabalhavam
também como teóricos, ainda que diferentemente dos soviéticos não tivessem uma
escola de formação de novos realizadores. Logo a crítica de cinema francesa
ganhou fôlego, e já no final da década de 1910 todo jornal do país carregava
uma seção dedicada a crônicas sobre a nova arte. Por meio destes espaços os
realizadores de cinema podiam desenvolver suas ideias a respeito do que
pensavam. A ideia que mais se aproxima daquela de Rohmer envolve a noção de
fotogenia.
Assim como a noção de
“encenação fílmica”, a “mise-en-scène” – um conceito tão popular dentre os
críticos que mesmo no Brasil é utilizado por acadêmicos sem tradução para
guardar sua amplitude descritiva dentro da teoria de cinema – “fotogenia” não é
um termo novo para as artes, antes sendo proveniente da fotografia, sendo
apropriada pelos estudos de cinema e carregando forte peso técnico, como sua
prima “mise-en-scène”. Mas Fotogenia começou a ser utilizada pelos cronistas,
críticos e teóricos de cinema nos anos 1920 como um termo para poder abarcar
tanto o aspecto técnico do dispositivo cinematográfico, quanto seu aspecto
estético. Um exercício de cineastas para encontrar o meio termo entre a técnica
e o poético que guarda esta nova arte. A poesia seria rendida no cinema através
da Fotogenia. Dentre os realizadores que se dedicaram ao estudo da Fotogenia no
cinema, destacam-se Louis Delluc e Jean Epstein.
Apesar das promessas da
Fotogenia para o cinema, sua definição nunca foi muito bem precisada pelos
realizadores, deixando-a a cargo da intuição de seus leitores e colegas
realizadores para desvendar seu mistério. É o que nota, por exemplo, Jacques
Aumont, ao citar um trecho de um dos ensaios de juventude de Jean Epstein,
escrevendo, “a fotogenia é para o cinema o que a cor é para a pintura, o volume
para a escultura: o elemento específico desta arte” – assim começa Epstein, ao
que Aumont conclui, “A fotogenia é a virtus
artística do cinema. não precisa portanto de nenhuma definição particular.
Daí Epstein voltar ao termo dez anos depois exatamente, em 1934-1935, para
anunciar uma ‘fotogenia do imponderável’. Simplesmente, a ênfase deslocou-se da
fotogenia ao imponderável: o cinema tornou-se a arte do invisível” (AUMONT, p.
92).
Precisamente este
invisível, ou imponderável, passou a ser levado em consideração por críticos e
filósofos ao longo das décadas seguintes. O próprio Epstein, ao se ver afastado
da produção fílmica depois do advento do cinema falado, passou a cada vez mais
redigir ensaios sobre o cinema abordando o caráter metafísico do dispositivo
cinematográfico, dando particular atenção à relação do cinema com o tempo.
Durante este mesmo período, André Bazin, mentor de Eric Rohmer, escreve uma
série de ensaios acerca do realismo cinematográfico em estudos de viés
ontológico, também se dirigindo ao tempo, ou neste caso em seu débito com a
filosofia de Bergson, duração. Assim continuam os estudos de cinema, com Edgar
Morin na década de cinema com o livro O Cinema ou o Homem Invisível, Susan
Sontag em suas Notas sobre Bresson.
Até que na década de 1970 uma corrente iniciada
pelo cineasta estadunidense Paul Schrader, roteirista famoso pelo filme Taxi
Driver, começou a chamar este invisível, o imponderável, sob a categorização de
“cinema transcendental”. O ensaio de Schrader exerce grande influência sobre
estudiosos, especialmente sobre a obra do filósofo francês Gilles Deleuze, ao
escrever o segundo tomo de seu texto sobre cinema. Ancorado no título de
Schrader que Deleuze cunha seu famoso conceito de imagem-tempo.
Apesar da importância
de todas estas concepções, permanece válida a incursão de Eric Rohmer, mas
desta vez com uma perspectiva filosófica. Os estudos que se preocuparam com
pensar o cinema continuadamente mantiveram suas proposições voltadas para
aspectos ora técnicos, ora ontológicos, recusando o vocabulário estético que a
tudo isto poderia abarcar, e ainda levaria em consideração a condição do objeto
de investigação: a arte cinematográfica.
Na separação dos dois
tomos de seu estudo de cinema, Deleuze realiza também uma separação “histórica”
– aqui figurando entre aspas porque não trata do autor nem como uma evolução
(como o fazia Bazin), nem como uma progressão, ou como havendo um momento de
ruptura na história desta arte. A “história” do cinema deleuzeana se divide
(como fazia Bazin) entre clássico (imagem-movimento) e moderno (imagem-tempo),
uma divisão que continua a causar confusões interpretativas da obra do
filósofo. A imagem-tempo seria constitutiva de características muito próximas
àquelas detalhadas por muitos outros teóricos de cinema antes dele: há o tempo,
o espírito, o pensamento, o transcendente. Curiosamente, no entanto, é
encontrar estas características na descrição de escritores clássicos ao
considerar a emoção do sublime.
O sublime foi emoção
considerada por muitos autores ao longo dos séculos, caída em desuso por
acadêmicos próximos à arte cinematográfica antes mesmo de abordá-la. Há, assim,
o perigo de tomar uma noção desenvolvida quando inserida em determinados
contextos alheios àqueles da arte cinematográfica. Quando pensado por Longino,
o sublime é pensado exclusivamente no contexto literário. Quando pensado por
Kant, o sublime não se prende às fronteiras da experiência com as artes. Em
fato, o sublime tal como tratado por Kant em sua Crítica da Faculdade de Julgar
somente será mais diretamente vinculado às artes quando pensado por autores
muito mais próximos à produção artística, como Schiller, mesmo assim, ainda
antes da criação do cinema.
Próximo do que Rohmer
já propunha a respeito do Belo, um estudo que atualize o sublime pensando-o em
sua ligação com o cinema não poderá se furtar a levar em consideração as
ponderações ontológico-metafísicas em torno desta arte. O objetivo desta
pesquisa é o de buscar nas fontes clássicas os estudos sobre o sublime, para
que assim seja possível realizar uma atualização da noção, aproximando-o de uma
metafísica e de uma ontologia do dispositivo cinematográfico.
ROHMER,
Eric. Le gout de la beuté. Publicado
originalmente em: Cahiers du Cinéma, Julho de 1961, Tomo XXI, nº 121, p. 18-25.
(texto originalmente apresentado no seminário da pós-graduação em Filosofia da Universidade Federal da Bahia)
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