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sexta-feira, 14 de agosto de 2015

Tabu de F. W. Murnau (tabu: a story of the south seas, 1931)

por João Bénard da Costa

"Não, não tinha pensado começar esta série sobre “os mais belos dos filmes” com Tabu. Foi idéia de última hora, quando reparei, como contei na crônica do cão amarelo, que Godard o citou para explicar o que queria dizer com o superlativo absoluto de beleza. Acaso?

Mas foi acaso por acaso que, entre a sexta-feira passada e a sexta-feira de hoje, revi Tabu duas vezes? E foi acaso por acaso que o revi na mais bela das cópias que de Tabu me foi dado ver, essa da Cinemateca de Praga que agora passou na cinemateca? E foi acaso por acaso que, com dois dias de intervalo, pude comparar Tabu com Sunrise, o filme de Murnau que, até Janeiro de 1996, era incontestavelmente o meu favorito?

E foi acaso por acaso que reli uma velha critica (1953) de Maurice Scherer (= Eric Rohmer) onde se diz: “Os referendos estão na moda. Desculpem se me deixei apanhar. Fazer listas de preferência, à hora do chá, entre amigos, é um jogo de salão agradável e que só depende da nossa disposição no momento (…) Mas não quis perder a ocasião para dizer - como uma recente visão de Tabu mo confirmou - que este filme é, na verdade, a obra-prima do seu autor, o maior filme do maior autor de filmes”. Se acaso tudo são acasos, acaso sou eu também.



Foi relativamente por acaso que F. W. Murnau decidiu, em Abril de 1929, aos 40 anos, partir para Taiti e filmar à luz dos mares do sul. Tinha chegado à América cerca de três anos antes (Julho de 1926) aclamado como o “gênio alemão”. Tinha filmado - 1927 - Sunrise, Oscar para a melhor “produção de qualidade artística”, no primeiro ano em que houve prêmios da academia. Depois (The Four DevilsCity Girl) foi forçado a vergar-se às regras da Fox. Depois, “por acaso”, conheceu David Flaherty, irmão de Robert Flaherty, que estava a tentar convencer a mesma Fox a fazer um filme em Taiti. Depois, esse filme malogrou-se. E, depois, Murnau convidou David Flaherty para jantar, no solar em que vivia, sozinho com os criados, numa das colinas mais altas de Hollywood. Parece que se sentaram os dois sozinhos, numa mesa enorme, na enorme casa de jantar de Murnau. E, à hora em que o jovem Hutter se feriu com a faca e derramou algumas gotas de preciosíssimo sangue (estou a referir-me a Nosferatu, para quem não saiba), Murnau disse baixinho ao irmão de Flaherty: “Queres vir comigo para Taiti?” No dia seguinte, antes do nascer do dia, partiram para o México, onde estava Bob. Poucos dias depois, com o muito dinheiro ganho por Murnau, formaram uma sociedade - a Colorart - para produzir uma série de filmes nas ilhas dos mares do sul. O primeiro devia chamar-se Turia e contava a história de um pescador de pérolas. “Bali é a última Thule dos meus desejos” teria dito Murnau, antes de embarcar, no fabuloso iate que comprou (vê-se no filme) e a que também deu o nome dessa ilha: Bali.

Daí por diante e até a primeira versão do argumento de Tabu se concluir (Dezembro de 1929, depois de um longo périplo de Murnau pelo Arquipélago das Marquesas e pelas ilhas Paumotu), tudo separou os dois cineastas. Flaherty sonhava encontrar o paraíso na terra e o mundo antes do pecado original. Murnau já sabia que “nessa terra / também, também / o mal não cessa, não dura o bem”. O “terror antigo”, o terror de Nosferatu, foi o que encontrou em Bora-Bora ou em Tokapoto, as ilhas de rodagem. Flaherty assombrou-se: “Como são profundas as inibições destes alemães!... Como é terrível a sua vontade de domínio!... Como é imenso o seu fatalismo!...”. Como não se assombraria? Tabu, às vezes descrito como um documentário de Murnau e de Flaherty, nada (ou pouquíssimo) tem de Flaherty e é tudo menos um documentário. Murnau, que chegou a Taiti como Nosferatu, num barco a velas (e como é terrível e ameaçadora a primeira visão do iate, apenas ou por causa da imensa beleza dele e da imensa beleza do plano), é o filme do encontro de Murnau com a Morte, essa morte com que mil vezes foi ameaçado durante as rodagens (Janeiro a Outubro de 1930), essa morte que o apanhou, numa curva da estrada, a 11 de Março de 1931, aos 42 anos, uma semana antes da estréia mundial de Tabu.


Nosferatu. “Um nome que soa como a chamada noturna da Ave da Morte”, para citar o primeiro intertítulo do filme de Murnau de 1922, não é, em Tabu, explicitamente, um morto-vivo ou um vampiro? Talvez não seja. Mas se o não for, quem é então Hitu, o prodigioso velho, de olhar inexorável, que, no iate de Murnau, chega a Bora-Bora para lançar o seu tabu sobre Reri, a virgem sagrada?

Antes, víramos planos de ofuscante beleza em que os mais belos corpos masculinos - donde logo emerge Matahi, o protagonista - pescam como se dançassem ou dançam como se pescassem. É o mar e no mar. Uma simples panorâmica (simples?) e o mundo roda 180º para os planos subjetivos das mulheres em flor, sob as cascatas. Passagem tão misteriosa como a misteriosa passagem do mundo do lago para o do carro elétrico, em Sunrise, depois de George O’Brien ter tentado matar Janet Gaynor.

É um allegro prestíssimo esse início coral, a que se sucede o adágio, no plano inadjetivável em que Reri encosta a cabeça ao peito de Matahi e para sempre fica colada a ele.


É um pouco mais tarde (precedido pelo grande, grande plano do mensageiro dos apelos) que surge o navio fantasma, com o velho Hitu.

Antes de o vermos, vemos uma grande onda preta. E Reri tapou os olhos ao ouvir o tabu. Flores para os mortos.

Matahi reaparece depois, ainda solto, ainda resplandecente. E sempre me pareceu que, logo que o viu, o velho soube tudo (se é que o não sabia antes). Há um plano - brevíssimo - em que quase podemos dizer que uma certa compaixão se apodera dele. Mas, como as nuvens, passou.

Se não é Nosferatu, quem é aquele velho sempre recortado contra o vulcão de Paia? Gauguin, que tantas vezes Murnau evocou em Tabu e expressamente no plano de Matahi, sentado na cabana, tão farto de esperar bem, contou-nos que o Deus Ora desceu do alto dessa montanha à procura de uma mulher transformada em coluna de fogo. E Reri - a mulher que vemos a chorar no lancinante ritual da despedida da mãe - como fogo se acende quando, na dança sagrada, Matahi, despertado pela música, subitamente se lhe vem juntar, afastando todos os corpos para dominar com a sombra dele a sombra da mulher. Se não é Nosferatu, quem é Hitu, o velho que retira a grinalda e corta o amor?


À luz de Hina, a lua, vem depois a noite em que Matahi arranca Reri ao barco da morte e a leva com ele para a ilha dos chineses e das pérolas.

Mas, senão é Nosferatu, quem é esse velho que um tempo, algum tempo, muito tempo depois, desembarca na ilha, em que os amantes se supunham a salvo, para cumprir a maldição?

Não o vemos chegar. Tudo o que vemos é, nessa noite, Reri acordar na cabana, como as crianças acordam dos pesadelos, soltar-se dos braços de Matahi e olhar para a porta, deixada aberta. Todo o terror do mundo nos olhos dela. Depois, tapa-os com as mãos. Contraplano e vemos, no portal, o velho, de branco e de pé. A câmera volta a Reri, que lentamente tira os braços dos olhos. Contraplano e não está lá ninguém. Visão? Sonho? Premonição? Quem souber decidir, sabe o segredo da arte de Murnau.

No dia seguinte, um dos pescadores da ilha é comido por um tubarão. As autoridades declaram essas águas tabu. A palavra TABU aparece no filme. O que aparece é sempre menos do que o que não aparece. Que é esse tabu, decretado pelos homens, face ao outro, que veio do fundo dos mares e dos tempos?


Nessa noite, há a luz sobre os amantes. Matahi dorme, de novo, dorme sempre quando Reri vela, como ela dormiu, depois, quando ele foi pescar a pérola negra. E se não é de Nosferatu, de quem é essa sombra esguia que, como uma seta, deixa a mensagem que anuncia a morte de Matahi se, passados três dias, ela não o seguir? Os corpos parecem agora as pietás de Antonello. A fuga de ainda, gora-se. Em montagem paralela, o desafio ao tubarão da pérola negra e a carta de Reri do imenso adeus.





E se não é Nosferatu, quem é o Caronte que conduz o barco que leva Reri de volta? E se não é Nosferatu, quem é o velho que corta a corda da vida no momento em que Matahi atinge o barco para lhe roubar Reri?


E o maior milagre que já vi no cinema é a perseguição final, quando Matahi se lança atrás do barco. A pé, numa embarcação e, depois, finalmente, a nado, a câmera voa em planos fixos, atravessando terras e mares, para figurar o impossível - possível: Matahi a atingir a velocidade do vento que sopra as velas e a tocar na barca, onde Nosferatu acabou de sepultar Reri. Mas, quando a corda é cortada, tudo se torna de uma lentidão imensa, enquanto o barco se afasta e Matahi se afunda nas águas, nadando, nadando sempre, como se esse movimento já sem razão fosse a última razão possível.


Numa carta à mãe, escrita no final da rodagem, Murnau disse: “Estou enfeitiçado por estes lugares (…) Às vezes, sonho que gostava de voltar a casa. Mas a minha casa não é em parte nenhuma (…) Em casa nenhuma, em terra nenhuma e com nenhuma pessoa.”

Cumpriu-se a maldição que uma lenda antiga atribui a um feiticeiro de Bora-Bora: “Quando o homem branco ouvir o grito da Ave da morte, o Diabo Oramatua-hiaro-rorua o levará.”


Se o cinema, como disse Henry Miller, é “a consciência visual da morte” nunca a vimos de tão perto como em Tabu de Murnau. Depois deste filme, nenhum outro pode ser “o mais belo dos filmes”.


Contraplano. E repito: nenhum outro."



disponível em: Foco Revista de Cinema.

quinta-feira, 30 de julho de 2015

A um passo da liberdade de Jacques Becker (le trou, 1960)


É muito curioso quando nos deparamos com clássicos do cinema que não são famosos. Tornaram-se clássicos sobrevivendo num submundo do cinema de culto, sendo admirados por grandes nomes, muito mais conhecidos. Grandes nomes que por vezes põem sobre o filme uma admiração tal que nos faz perguntar: por que este filme não é mais conhecido? Lembro de uma fala de Peter Biskind muito significativa para este caso. Na fala (na verdade, na escrita) ele se refere a Hollywood, mas serve para qualquer lugar do mundo: o pior negócio em Hollywood é morrer. Pois é, morrer é um mau negócio para qualquer cineasta. Quem é o melhor militante de sua própria obra senão o próprio criador?

Jacques Becker, que conseguira iniciar seu trabalho como diretor de cinema ainda na segunda guerra mundial, parecia crescer artisticamente quando se abate de uma doença que o leva aos braços da inevitável. Se não bastasse, o faz quando Becker estava filmando Le trou, ou A um passo da liberdade. Havia filmado, montado, mas não havia feito a montagem de som. Morreu sem ver o filme ser lançado e aclamado. E exatamente por ter morrido, não houve ninguém para pô-lo entre os grandes - a película que dividiu o prêmio de melhor filme do sindicato dos críticos de cinema com Acossado de Godard. E não é exagero algum colocá-lo lado a lado ao debute do grande Godard.


Carlos Reichenbach, em entrevista à Contracampo, ressaltava as qualidades deste filme desconhecido da cinefilia brasileira. A entrevista data do milênio passado: calma, é 1999. Na época, Reichenbach havia conseguido uma cópia em terras francesas e trouxe a película até nós. Fez algumas exibições e conseguiu alguns defensores para a obra. Seu elogio ao filme na entrevista realizada por Ruy Gardnier e Daniel Caetano, o cineasta se refere tão somente a uma cena para poder captar o fascínio do leitor para com a película. Com as devidas aspas: "fica vinte minutos filmando o cara quebrando uma pedra! Fica o cara quebrando o assoalho e você não desgruda o olho da tela! Isso aí é coisa de gênio."

A admiração de Reichenbach quanto ao filme de Becker não passa despercebida por seu entusiasmo no elogio. Admiração e entusiasmo que também se apresentaram (e continua a apresentar) em mim. E quão espantosa é a cena em que, com plano fixo, Becker nos mostra a quebra do assoalho da cela de uma prisão! Somos envolvidos nela de modo tão profundo quanto inquietante. Para além do bater no cimento, do cavar a terra e os detritos, do revezamento entre os prisioneiros, a cena consegue nos demonstrar a dor, a exaustão da tarefa. Aliada à imagem do cavar está o som do esforço dos presos. A respiração ofegante. É doloroso, mas acompanhamos atentos como se fossemos um dos presos. Esperamos ansiosamente o outro lado, finalmente enxergar a finalidade: um vislumbre da liberdade.


Tudo começa com um jovem prisioneiro entrando na cela. Estava sendo transferido de uma para outra. Motivo? Não nos é dado, nem nos interessa. Os presos de sua nova cela são muito companheiros uns com os outros. Demonstram muita intimidade - e os atores conseguem demonstrar o mesmo, o que ajuda a nos conectar rapidamente com os personagens. O motivo pelo qual estão ali também não nos é dito, nem teremos interesse em saber. Tudo o que sabemos é que eles passarão uma longa temporada presos. E por isso querem fugir. O novato, Gaspard, é o único cuja história e motivo de estar preso nos será revelada. A única história frágil o suficiente para poder resultar numa posterior liberdade antecipada - coisa que os seus parceiros de cela parecem ignorar. E então o colocam junto no plano de fuga.

O que acontece no resto do filme é esta documentação precisa do processo de construção de uma fuga da prisão. Não acompanhamos a criação do projeto. Chegamos com tudo já bolado. Roland é o sujeito encarregado de liderar o grupo. É ele quem possui o plano em mente e guia o resto dos presos em suas ações. Ele é o primeiro a pegar o ferro da cama inutilizada pelo excesso de presos na cela e a bater no chão. É uma crueza documental. Câmera fixa, sempre. Campo/contracampo aqui e ali para acompanhar o movimento dos personagens. Por fim eles chegam ao esgoto. Cavando no esgoto para chegar à rua, um desmoronamento. Geo é enterrado, mas sobrevive. Episódio que poderia ser acentuado dramaticamente não passa de um percalço - como o aparecimento inesperado de um policial na rota de fuga.


Esta característica documental é pontuada pela primeira imagem do filme. Roland, agora livre e consertando um carro no que parece ser seu trabalho numa oficina mecânica, volta-se à câmera e anuncia que a história a seguir é baseada em eventos reais vividos por ele no ano de 1947 - 13 anos antes do lançamento do filme. Esta ideia de documentação de uma memória será feita a risca, mas não enquanto desvendamento de algum dos envolvidos no caso - descobrir porque fulano fez isso, ou aquilo. A documentação do passado volta-se para a ação. Existe um fato que merece ser captado pela câmera. Mais do que simplesmente visto, sentido. E o trabalho de escavação das paredes é extremamente significativo. É um trabalho penoso, mas vale mais a pena produzi-lo do que ficar longe da rua.

Por outro lado, dentro da prisão, não são postos grandes problemas que possam demonstrar a motivação aguda dos presos de querer sair de lá. O único deles que manifesta não querer sair, Geo, o faz por não ter família do lado de fora. Para ele, tanto faz ficar dentro como fora da prisão. A motivação da fuga dos demais não é dada. E nem Becker procurará. Os policiais não são maus - e o episódio dos encanadores diz muito nesse sentido. Este não buscar as causas poderia ser visto por alguns como sendo defeito do filme. Mas é, na verdade, sua maior virtude. Becker mostra-nos os fatos. O que se apresenta perante sua câmera é o movimento - aspecto primordial do dispositivo cinematográfico. Se é o movimento que mais importa ao cinema, é o movimento que surgirá em Le trou. E o movimento aqui é lento e gradual, mas em momento algum cansativo - por vezes doloroso.

sábado, 6 de dezembro de 2014

Travelling enquanto questão moral: um estudo em três partes

[continuação]

Texto originalmente publicado em Revista Filosofando - UESB.

CINEMA POLÍTICO-HUMANISTA

Após a guerra surge a necessidade de tornar o cinema um meio consciente e que torne o espectador consciente dos processos político-sociais que estava a acontecer na Europa. Na Itália, o cinema ganha as ruas[1]. As câmeras seguem o desejo e a urgência de captar as transformações de um mundo ágil. Elas já haviam perdido a construção dos campos de concentração, agora não podem perder mais nada.

Num cinema político feito no pós-guerra, a representação seguindo os ditames puros do cinema de ficção já não são mais aceitos (GARDNIER, s/d). Isto não se dá, claro, para todas as formas de cinema, mas para um em específico: o cinema político-humanista que visa apresentar um momento real da história recente. Por estes motivos este é um cinema que não deve funcionar como um mecanismo de ilusão. Houve um fato e ele deve ser assim apresentado, sem adornos. É um grande problema quando o cinema, quando faz a representação de um momento, como o holocausto, dá-se a tentar mudar o que aconteceu. Porque quando isto é feito, banaliza-o, transformando o holocausto em um produto, enquanto a real importância de manter a memória deste momento recente da história aparece de forma remota para quem está a assistir ao filme. E quando não se é mais vista a gravidade de uma barbárie do passado, é o momento em que abrem-se as portas da possibilidade de que ele volte a acontecer.

É desta visão do cinema como responsável frente à história e formação do homem que devemos fazer uma crítica. Porque, ao contrário do que coloca Ruy Gardnier em seu texto sobre cinema político, a questão da representação num cinema político-humanista é, sim, uma questão de moral. Talvez seja nesse sentido em que devamos ler a frase cunhada por Godard há cinquenta anos. O travelling é uma questão de moral porque deve ser usado com a devida consciência pelo diretor que se propõe a fazer o filme. “O cinema julga o que mostra e é julgado pela forma como mostra. A moral não é apenas uma questão de conteúdo. É também, ou, sobretudo, uma questão formal” (BEZERRA, 2010). Em Kapò, o travelling notado por Rivette em sua crítica é o momento em que a escolha do diretor de fazer de seu filme político um drama nos moldes tradicionais atinge seu ponto máximo. O travelling torna-se, assim, a síntese do espetáculo cinematográfico, quando não se deve ser feito espetáculo algum sobre aquele tema. Nas palavras de Ruy Gardnier sobre Kapò:

É nojento colocar o campo de concentração como cenário de uma love story trágica, e é especialmente nojento de uma hora para outra retirar o foco de uma coisa maior (aquilo que faz o diferencial do filme, o de querer retratar os campos) para uma coisa menor. (GARDNIER, s/d).

Para criar uma história de amor não é necessário que ela seja ambientada num campo de concentração. Uma história de amor é totalmente livre, pode acontecer em qualquer ambiente – e o uso do campo de concentração torna-se, então, um ato imoral. Imoral porque transforma aquele cenário de uma tragédia real – a matança de milhões de pessoas – em um espetáculo. Imoral porque transforma aquela tragédia em algo menor: é como se o diretor de um filme como este não fosse capaz de enxergar a dramaticidade vivida por aquelas pessoas, podendo até parecer que está a menosprezar aquela tragédia, retirando dela sua seriedade, transformando-a em brincadeira (ou em último caso transformando-a em produto).

CONCLUSÃO

A forma do filme torna-se, assim, um meio de discussão para uma moral dos modos de representação no cinema. A ficção não deve ser aceita quando torna o assunto do qual trata algo menor frente aquilo que está a tratar – isto se reflete em outro filme recente: A vida é bela. Não deve ser aceita porque o cinema de ficção também possui o seu papel dentro da sociedade. O cinema de ficção, ao mostrar o passado sob suas próprias regras faz deste uma banalidade mais próxima da ficção do que de uma realidade realmente vivida: torna-se o equivalente a um esquecimento. Este filtro que o cinema-espetáculo cria separando a ficção da realidade faz do espectador um ser cada vez menos consciente da seriedade daquilo que o filme deveria estar a tratar exatamente porque é tratado com naturalidade, como um artifício dramático.

“Você não viu nada em Hiroshima”, repete o personagem de Eiji Okada em Hiroshima, meu amor. Esta frase é tanto dita para a personagem de Emanuelle Riva quanto para nós, espectadores. Dizemos que vimos o terror de Hiroshima, ou dos campos de concentração, mas na verdade nada vimos. O que vimos foram imagens que contavam com a visão de outra pessoa e do olho artificial da câmera. O que temos são imagens que formam uma memória artificial daquele evento. Vimos os filmes dos corpos empilhados nos campos, vimos os corpos queimados pela explosão da bomba. E ao mesmo tempo nada vimos. Filmes como A vida é bela e Kapò nos levam para dentro dos campos de concentração, mas nada vemos. É a representação que desrespeita o passado. Pior. Que ignora o passado. Transforma um fato histórico em um produto de comercialização. A representação “justa” de Noite e neblina se refere a isto. Não podemos voltar no tempo. Aquelas imagens dos campos que nos são mostradas fazem parte de um passado que é nosso, mas cuja memória não possuímos: um passado que precisamos reconhecer para não repeti-lo. De fato, nada vimos em Hiroshima.

REFERÊNCIAS:
BEZERRA, Julio; A moral da memória: quando o cinema vai ao Holocausto; Revista Fronteiras, vol. 12 n° 1, jan/abr, 2010; disponível em: http://www.fronteiras.unisinos.br/pdf/82.pdf, acessado dia 04 de julho de 2014 às 21:54.
DANEY, Serge; O travelling de Kapò; disponível em: http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:oj8_0RbvkqYJ:www.geocities.ws/ruygardnier/daneyotravellingdekapo.doc+&cd=1&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br  acessado no dia 04 de junho de 2014 às 10:57.
GARDNIER, Ruy; O cinema faz política (1): Gillo Pontecorvo; Revista Contracampo; disponível em: http://www.contracampo.com.br/22/kapoepolitica.htm , acessado em: 18 de junho de 2014 às 21:41.
MARTIN, Marcel; A linguagem cinematográfica; tradução: Paulo Neves; 2. Ed. – São Paulo: Brasiliense, 2011.
OLIVEIRA JR., Luiz Carlos; Alain Resnais e a memória do mundo; Revista Contracampo; disponível em: http://www.contracampo.com.br/88/artresnaisjr.htm, acessado em: 02 de julho de 2014.
PONTECORVO, Gillo; Kapò; França - Itália, 1959; duração: 1h58min.
RESNAIS, Alain; Noite e neblina; França, 1955; duração: 30min.
RESNAIS, Alain; Hiroshima, meu amor; França, 1959; duração: 1h30min.



[1] Esta urgência das câmeras estarem nas ruas para captar a realidade influência o cinema de diversos locais do mundo, tais como do Egito, da Índia, e o cinema brasileiro, no momento em que surge o cinema novo com Nelson Pereira dos Santos.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Travelling enquanto questão moral: um estudo em três partes

[continuação]

Texto originalmente publicado em Revista Filosofando - UESB.

NOITE E NEBLINA E A REPRESENTAÇÃO JUSTA

Quando o fim da II Guerra completou dez anos, as cicatrizes ainda não haviam cicatrizado. Na Itália, o cinema não deixava a população esquecer. O povo começava a ganhar consciência do que acontecia, e isso não agradou à burguesia. Na França, que fazia um cinema mais sentimental e menos visceral do que os italianos, surge um filme para sacudir as estruturas de quem o assistisse. E muitos foram os que viram. Noite e neblina (1955), curta-metragem de Alain Resnais, surge no cenário cinematográfico como uma das provocações mais interessantes sobre como fazer um filme sobre aquilo que é tão difícil de se filmar: o holocausto. Como filmar os campos de concentração? Como reagir frente aquelas imagens de arquivo que nos apresentam montanhas de óculos, de sapatos, de cabelos, de cadáveres...? Como fazer uma representação justa daquilo?

Em texto para a revista Contracampo, Luiz Carlos Oliveira Jr. Faz um questionamento que ele atribuí ao já citado Godard: “o cinema, ao não filmar os campos de concentração e extermínio no momento mesmo em que eram construídos, teria cometido um erro imperdoável?” (OLIVEIRA JR, s/d). Esta lacuna que surge na representação moderna, em que o cinema apresenta-se como frente absoluta no registro do real, poderia ter aberto espaço para as representações equivocadas deste que talvez seja o trágico mais lembrado na sétima arte. O cinema não viu o início dos campos, mas viu o que deles resultou (esta lacuna poderia fazer com que este fato parecesse irreal, uma fantasia do cinema?). Surge neste momento a necessidade de se fazer uma representação justa. “Em Noite e Neblina, Resnais inaugura esta justeza do olhar, esse reconhecimento de que o cinema chegou depois” (idem).

A câmera de Resnais passeia pelos campos de concentração. O travelling executado sobre os trilhos do trem que outrora trazia ao campo prisioneiros, agora é um eco dos fantasmas daqueles que não podemos esquecer. E este é o trabalho do cinema. Não é transformar o holocausto num espetáculo, mas fazer-nos lembrar para que ele não se repita. Esta câmera que percorre os muros dos prédios agora abandonados, pede para que eles não se percam no caminho da história. “A principal característica da exterminação nazista dos judeus na Segunda Guerra foi sua invisibilidade, sua obscura e historicamente mal explicada invisibilidade” (idem). Esta invisibilidade que agora, por meio daquele canal que uma vez se cegara e não fora capaz de enxergar o que acontecia, tenta se redimir e apresentar para o mundo que aquilo, um dia, realmente aconteceu.

Noite e neblina apresenta-se, assim, como um documentário de curta-metragem que une as imagens de arquivo às imagens atuais e em cores dos campos de concentração (atuais do seu ano de produção, 1955). Por meio da montagem que liga o presenta ao passado, mostrando ao mesmo tempo sua união e sua distância cruel, Resnais monta um discurso visual para dizer-nos que não podemos voltar ao passado, mas também não podemos esquecê-lo. As paisagens que hoje apresentam flores, outrora foram palco de um espetáculo tenebroso. Resnais liga também aquilo que é mostrado à voz de Jean Cayrol, escritor sobrevivente do holocausto, que nos narra um texto que não se prende por meio de metáforas e que diz:

Mesmo uma paisagem tranquila, mesmo uma pradaria com voo de corvos, messes e jogos de ervas, mesmo uma estrada onde passam carros, camponeses, casais, mesmo uma aldeia para férias com um campanário, podem levar simplesmente a um campo de concentração. (RESNAIS, 1955).

O TRAVELLING DE KAPÒ

O famoso travelling de Kapò parece muito simples quando visto na tela, de um ponto de vista prático. Mas na época em que fora feito, 1959, dependia de enorme maquinário para que fosse possível mover a câmera pelo cenário até o enquadramento desejado. Esta simplicidade que aparenta para um espectador do século XXI se dá pelo seu contato com câmeras pequenas, portáteis. A construção de um travelling, na época da produção do citado filme, se fazia difícil e dispendiosa. Necessitava-se que o cineasta, para fabricar este movimento, o ter idealizado por um longo tempo e ter a convicção do que estava a fazer com seu filme.

A recém-reformulada escola crítica de cinema francesa estava a ganhar cada vez mais adeptos. Numa atitude rara até então, discutia-se a forma dos filmes e não o seu conteúdo, tão somente. Esta geração, que sofreu crescendo em meio à guerra, agora procurava juntar os cacos de uma Europa destruída. Da parte destes jovens que se dedicavam integralmente ao cinema – muitos deles que enxergavam no dispositivo cinematográfico a potencialidade de mudar a sociedade –, coube discutir a forma como se representava o irrepresentável: o holocausto, a bomba de Hiroshima... Noite e neblina surgiu em 1955 mostrando como o assunto deveria ser abordado: com a distância de quem não pode voltar no tempo e mudar o que aconteceu. Mas nem todos escutaram o que Jean Cayrol disse, ou o que Alain Resnais mostrou. E num texto curto, com menos de uma página, Jacques Rivette encheu uma edição da revista Cahiers du Cinéma de raiva contra um filme numa crítica que tomava menos que uma página. A força deste golpe foi tamanha que até hoje ecoa (como é o caso deste estudo). Em um de seus últimos escritos, o também crítico de cinema Serge Daney escreve:

Em seu artigo, Rivette não contava o filme. Ele se contentava, em uma frase, descrever um plano. A frase, que ficou na minha memória, dizia assim: “Vejamos agora, em Kapò, o plano em que Riva se suicida, se jogando sobre o arame farpado eletrificado: o homem que decide, nesse momento, fazer um travelling para frente para reenquadrar o cadáver em contra-plongée[1], tomando cuidado para inscrever exatamente a mão levantada num ângulo do enquadramento final, esse homem só tem direito ao mais profundo desprezo.” Dessa forma um simples movimento de câmera poderia ser um movimento a não se fazer. (DANEY, s/d)

Kapó é o filme que ficou famoso pelos motivos que nenhum outro deseja. O “ato abjeto” promovido por Gillo Pontecorvo em seu filme fez com que esta obra em particular fosse vista com olhares de desaprovação, mesmo por quem nunca chegou a vê-lo. Porque não é necessário ver um filme quando há algo de tão claro em sua construção (sua forma) que o torna horrendo. E não foi o travelling, somente, que mudou o destino de Kapò. O tão citado travelling de Kapò é, na verdade, apenas o ápice do horror promovido pelo diretor em seu filme. O travelling torna-se a representação de algo maior. Mas ainda assim permanece sobre aquela câmera que corre em direção ao rosto de uma moribunda Emanuelle Riva a expressão mais grave da abjeção. Este termo dito aqui mais de uma vez refere-se ao título do texto escrito por Rivette sobre Kapò, “Da abjeção”.

A abjeção a Kapò nos dá as bases de uma discussão acerca da representação de um cinema de viés político, surgido após a guerra. Seria moral, da parte do cineasta, moldar o seu filme sobre o holocausto partindo de princípios dramatúrgicos comuns? Como já havia sido colocado por Noite e neblina, não podemos voltar no tempo, retornar àquele momento e mudar o que aconteceu. O cinema deve manter distância daquele momento, porque como ele não o mostrou chegando ele também não pode mais tentar mudar o que aconteceu. Mas quais seriam os motivos que poderiam fazer de um filme sobre o holocausto como Kapò ser tão abjeto?




[1] Plano em que a câmera apresenta-se mostrando algo de baixo para cima.

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

A palavra e seu império


Vimos em A palavra e o invisível como a palavra pode ser utilizada em conformidade com o espetáculo cinematográfico. Com o advento do cinema falado poucos foram os cineastas e estudiosos que se posicionaram de modo a enxergar a estranheza da palavra nesta arte. Foi assim que se criou e deixou crescer o império da palavra.

Foi André Bazin que, em A evolução da linguagem cinematográfica, se posicionou nesta discussão. Ele enxergava dois tipos de cinema, aquele da imagem e o realista. Este segundo, de sua preferência, estaria unido à palavra por ser este um modo realista de representação cinematográfica. Na vida cotidiana as pessoas conversam quando se encontram e nada mais natural ao cinema (que é a arte realista por excelência) que mostrar este cotidiano na tela. Mas será que este realista trazido ao cinema pela palavra (pela fala) não faria uma subversão de seus valores ao invés de “avançar” em sua linha evolutiva como propõe o título do texto de Bazin?

Os discípulos cineastas do crítico francês foram que melhor apresentaram este equivoco de seu mestre. François Truffaut rasga elogios a Hitchcock quando de sua famosa entrevista. Nela os dois cineastas entram em comum acordo de que o cinema é uma arte imagética e por isso deve ser ela a melhor pensada e trabalhada, os diálogos surgem como um adendo. Jean-Luc Godard – autor de filmes de falatório – trilha caminho semelhante ao de seu antigo parceiro de Cahiers. Em Acossado Godard apresenta ao público uma montagem que não pretende ser realista ou sugerir coisa alguma, ela simplesmente nos lembra do fato de estarmos assistindo a um filme e o corte é o modo mais explícito de se demonstrar isso.


Como vimos no citado texto anterior, a palavra surge no cinema falado e logo passa a fazer parte constituinte de sua formação (no sentido da forma do filme). Quando o invisível, aquilo que aparece no extracampo nos é apresentado somente pela fala dos personagens, será que não estaria ali, naquelas palavras de quem aparece em cena um constituinte da imagem? Em parte sim, mas não acontece com todo cinema. Como vimos, isto acontece em No tempo das diligências porque aquela ameaça que não vemos e que nos é sugerida pela palavra paira nas imagens do filme. Esta ameaça que está sempre presente necessita estar fora de quadro para que a potência do filme possa surgir.

Mas isto não acontece com todos os filmes, ainda que todos eles insistam em se basear nas palavras dos personagens. Porque este realismo que a palavra emprega ao cinema faz ser mais crível a relação entre os personagens que se apresentam na tela. Mas esta busca pelo realismo cotidiano no cinema faria uma subversão de seu princípio próprio: a história contada por imagens. O que levaria uma figura a preferir contar uma história no cinema ao invés de escrever um livro, um artigo para jornal ou mesmo uma peça de teatro? Muitos dos filmes que são lançados hoje em dia provocam esta dúvida: será que eles deveriam ter sido transformados em filme? Será que eles não estariam melhor alocados em diferentes formas de comunicação ou expressão artística?

O realismo óbvio alcançado pela objetividade fotográfica faz do cinema o meio mais fácil para que um sujeito que tenha menor inspiração criativa possa contar uma história. Porque para alcançar o realismo por meio da prosa é necessário muito trabalho e inventividade por parte do escritor. No caso do cinema é dada a possibilidade de deixar de lado todo este trabalho intelectual excessivo e desenvolver algumas frases – cujo brilhantismo ficaria por conta da capacidade do ator de expressá-las – e simplesmente pôr a câmera em frente aos personagens e deixá-los surgir. Estaria em nossa frente o realismo? Sim, em parte. Porque ninguém poderia negar que aquelas duas pessoas estão conversando uma com a outra ou que seu diálogo é, no mínimo, interessante.


É aí que surge um ponto interessante da teoria de Bazin: a duração. Tomando de empréstimo o termo central da filosofia de Henri Bergson, o crítico de cinema nos dá algo de muito interessante: o filme realista deve conseguir captar esta duração do mundo. Será que todo filme que se propõe realista porque coloca dois atores muito bons conversando torna-se por isso realista? Não é porque dois personagens trocam farpas em cena que isso vá ser ser realista. Nem porque o espectador reconhece aqueles sentimentos expressados em tela. Mais do que isso, é necessária que haja a interação com a câmera.

É a câmera que vai buscar esta duração presente no mundo e expressá-la no cinema. Isso por meio do plano-sequência em que se filma o fluxo de acontecimentos em seu desenrolar natural. Richard Linklater faz isso. Eric Rohmer também. E nem todo cineasta que se propõe a colocar a câmera em frente a seus personagens ou a segui-los por um longo tempo sem cortes que consegue expressar a tal “duração dos fatos”. Sua cena pode simplesmente ficar longa e chata ao invés de envolvente.

Chamando Richard Linklater para dentro desta argumentação retornamos ao primeiro texto desta série, A palavra no cinema. O cineasta estadunidense faz uma provocação muito interessante em seus filmes. Seus personagens falam muito e o diretor os deixa a vontade para que possa conversar e se expressar. A câmera não irá perturbá-los, nem a montagem irá quebrar o desenrolar de suas ações. E ainda assim não serão as palavras que contarão a história. Estas surgiram em cena de modo desconexo, os personagens poderão falar do que lhes será preferível – tal como fazem os personagens de Tarantino – sem ligação com aquele momento presente que vivem ou com o sentimento que aflora. Estará impresso nas imagens o sentimento entre aqueles personagens ou o sentimento dos personagens por si. Em Antes do amanhecer está lá na cena da cabine de música ou mesmo no gesto imperceptível de Jesse querendo ver o rosto de Celine e interrompendo seu ato de retirar o cabelo dela de cima do rosto. São estes gestos, mais que as falas, que traduzem o sentimento que nasce entre os dois personagens.


A palavra pode, sim, fazer parte das imagens, mas em momentos muito particulares, como no citado filme de John Ford. Ela, mesmo não sendo material, consegue transbordar para o exterior e fazer-se presente na imagem. Mas não são todas as obras que conseguem isso. O realismo do cinema pode ser buscado por uma obra que preze pelo falatório, e nem por isso estará lá uma grande obra. Como dissemos no primeiro texto, não adianta colocar um ator sentado em frente a uma câmera lendo Hamlet que ainda assim será um filme ruim. É necessário que parta do cineasta a motivação que o leva a contar aquela história no cinema, ou seja, por meio de imagens.

Nesse sentido a abertura do ultimo filme de Béla Tarr, O cavalo de Turim, é muito significativa. Nela Tarr coloca um narrador para contar determinado episódio na vida do filósofo Friedrich Nietzsche. O narrador nos oferece todos os elementos para que possamos compor a cena, lugar, tempo histórico, personagens..., mas a imagem nos é subtraída. O que temos é somente uma tela em preto e a voz do narrador. Com o auxílio de nossa própria imaginação construímos a tal cena, e por isso se faz desnecessária a presença de uma figura em quadro nos contando a tal fábula. Semelhante aspecto se encontra em Era uma vez na Anatólia. Os personagens conversam dentro do carro, mas não precisamos vê-los. Vemos somente os carros que cortam a paisagem da Anatólia. Em determinado momento, os carros parados, as pessoas do lado de fora, e um dos personagens decide contar uma história. Ouvimos suas palavras, mas não vemos seu rosto se mover. Ou vemos o rosto de mais ninguém se mover.


A palavra ganhou bastante espaço no cinema depois do surgimento do cinema falado, mas isso não quer dizer que um filme deva ser feito somente baseado nas palavras falada ou escrita. Quando o entendimento ficar mais complexo nas imagens, é necessário o uso das palavras, mas caso contrário não. Era uma vez na Anatólia nos mostra isso. O “era uma vez” do título que nos remete ao ato de contar uma história nos faz pensar nos diferentes modos de contar uma história que aparecem no filme. Existe aquela história principal que é contada por meio da câmera e outras menores que são contadas pelos personagens em suas conversas. A fala, neste momento, adquire um sentido especial: ele pode servir de adendo ao entendimento daquilo que nos mostra a câmera.

Era uma vez na Anatólia se torna muito semelhante a No tempo das diligências. Ambos os filmes fazem a palavra incorporar as imagens porque estaria ali presente um sentido nesta relação. Mas a palavra não possuiria o maior poder no filme em nenhum dos dois casos. Ela torna-se subalterna ao que é mostrado. Ainda assim é parte constituinte da imagem.

Um filme deve ser construído primando por suas imagens. O cinema é uma arte de imagens e assim deve ser pensado e feito. O que dizem os personagens não deve ser mais que um adendo àquilo que é mostrado. 



[este texto faz parte da série a palavra no cinema publicada aqui no blog em novembro de 2014. Este texto é precedido por A palavra no cinema e A palavra e o invisível]

terça-feira, 11 de novembro de 2014

A palavra no cinema


Com o passar dos tempos o homem desenvolveu e aperfeiçoou suas formas linguísticas, escritas e faladas. Hoje é muito mais simples nos expressarmos por meio da linguagem do que por meio de imagens. Existem determinados conceitos que são de extrema dificuldade de serem expressos (e entendidos) se não o for por meio da escrita ou da fala - e nem pensamos em fazê-lo de outra forma. O desenvolvimento da filosofia, por exemplo, se dá exatamente sobre este solo. Muitos dos embates filosóficos são desenvolvidos tomando como ponto de partida uma questão linguística, desenvolvendo-a em busca de um correspondente realista, no mundo.

Aqui se trata de falar de cinema. Neste caso, a linguagem escrita (em especial) exerce papel principal num quesito posterior do cinema: a teoria. Nela são desenvolvidas questões sobre os meios estéticos representativos e ontológicos do cinema que seriam de particular complexidade se não tivéssemos desenvolvido uma linguagem tão sofisticada quanto esta que utilizamos. Imagine se ainda nos servíssemos de caracteres de comunicação como de nossos antepassados que desenhavam nas paredes das cavernas: talvez não tivéssemos avançando tanto intelectualmente e nossa compreensão de mundo seria muito mais limitada.

Mas ainda assim o homem sempre buscou uma formulação imagética em que fosse desnecessário o uso linguístico para que fosse compreendido. É o caso, por exemplo, da pintura. Qualquer homem, de qualquer lugar do mundo, que fale a língua que for, terá compreensão semelhante a de outros homens acerca de determinada pintura – conquanto ela não seja abstrata. Ao nos depararmos com um quadro que apresente um homem sentado numa cadeira, compreendemos o que ele faz, o cenário em que está. E provavelmente compreenderemos até mesmo a significação de sua expressão facial.


No caso do cinema, em particular em seu período mudo, viu-se como uma das principais questões guiadoras desta nova forma artística era a de, como nas artes plástica, se libertar da palavra escrita para que pudesse se expressar somente por meio das imagens. Como é de conhecimento geral, no período do cinema mudo aqueles pontos mais complicados de serem expressos na imagem (como a fala dos personagens) apareciam em letreiros que interrompiam o fluxo contínuo da ação que se desenrolava. Era um processo pouco criativo do qual os cineastas cada vez mais tentaram se desvencilhar até o fim do período mudo.

Neste momento a palavra era vista como sendo inimiga do cinema. Era uma saída fácil que fazia o cineasta fugir de um meio mais criativo, e por consequência mais artístico. Era a transição de um pensamento, de uma ideia, para as imagens. Por meio de sobreposições e cortes que davam significação a determinadas cenas, o período mudo foi um dos momentos de maior efervescência criativa da história do cinema. O cineasta que se contentava a se curvar aos letreiros era visto como pouco artístico. Daí surge a genialidade de uma figura como Murnau e Chaplin. Ambos tentavam fazer seus filmes com o mínimo possível de letreiros, e ainda assim seus filmes são compreensíveis e envolventes, souberam reconhecer a essência da forma artística com a qual trabalhavam.

Mas no meio do caminho surge o cinema falado, e com ele todas as aspirações de um “cinema puro” – que seria um cinema feito sem a influência das outras artes, feito partindo de suas próprias particularidades – desmoronam. Os atores que, até então, tinham que se valer de inúmeras caretas para se fazerem entender, agora podiam resolver seus problemas falando algumas linhas escritas no roteiro. O cinema falado foi visto como o fim de um cinema poético, artístico, por grande parte dos entusiastas do cinema mudo. Mas até mesmo estes se curvaram às falas dos atores. Mesmo Chaplin que tentou o máximo que pôde manter acesa a chama da criatividade de outrora.


Com o cinema falado veio a preguiça. O cineasta não precisa mais pensar um meio de mostrar que o personagem está angustiado, ele simplesmente simplesmente o faz dizer que está angustiado. O espectador comum não se preocupa com esta questão porque está mais interessado na história que se desenrola. É assim que surgem os filmes de “teste de cadeira”, em que os personagens passam o filme inteiro a conversar, sentados. O espectador tem a impressão de ter visto um bom filme porque estes se assemelham muito com suas próprias vidas em que os problemas são resolvidos por meio de conversas, sem muitas ações. O cotidiano os acostuma a esta falta de inventividade do filme.

A palavra seria, assim, um conteúdo estranho ao mundo cinematográfico, que tende ao imagético. Um filme de ficção deve se resolver por meio de suas imagens, e é nesta inventividade que se encontra o traço mais característico de um cineasta-artista. Carlitos nunca precisou falar para ser engraçado. Nem mesmo em O grande ditador, quando as piadas eram todas feitas por meio dos gestos dos atores e não por falas engraçadinhas. O mesmo se dá com os filmes de Hitchcock. Ao entrevistá-lo, foi precisamente este o ponto que mais chamou atenção de Truffaut quanto à obra do mestre do suspense: não são necessárias palavras para a compreensão de seus filmes. Mesmo um espectador que não fale o idioma do filme seria capaz de entendê-lo somente pelo que se apresenta na tela.

É estranho que com o passar do tempo a palavra tenha ganho tanta atenção no cinema. Filmes que não são bons, que não possuem qualquer inventividade no modo de contar uma história (não necessariamente inventando algo de novo, pode usar as velhas fórmulas, contanto que seja criativo ao apresentar a história, abolindo o simples campo/contracampo das cenas de diálogos) são tidos como grandes obras de arte. Mas o que eles têm, na verdade, é um grande texto. Será esta característica o suficiente para que consideremos um filme como uma obra de arte? Não seria esta uma particularidade da literatura ou, quem sabe, do teatro?


A excelência do fazer cinematográfico encontra-se exatamente neste “como” contar a história, e não no simples “contar uma história”. É aí que se encontra, por exemplo, a genialidade de Godard ao filmar Acossado. A história de seu filme-debute é extremamente banal, semelhante a de tantos outros filmes, mas como Godard resolve conta-la é diferente de tudo o que se havia tentado fazer até então. Temos em frente a nossos olhos um filme que baila ao som do movimento da película que corre dentro da câmera: seus falsos raccord e seus planos-sequência são memoráveis.

Este ato de deixar a palavra escrita e falada de lado é um conhecimento que provém, em parte, dos curiosos de cinema que iam à cinemateca francesa conhecer a cinematografia de todo mundo. Os filmes nem sempre precisavam ser legendados para que eles assistissem, mesmo que não soubessem o idioma nele falado. Não necessitamos compreender espanhol para poder compreender a obra de Picasso. De sentir algo quando nos deparamos com ela. O mesmo deve acontecer com um filme. Aquele olhar choroso de Nana para a tela de cinema em Viver a vida, também de Godard, traduz isso. Se virmos uma pessoa chorando, de imediato nos simpatizamos por ela. Um bom cineasta deve saber traduzir este sentimento por meio das imagens de seu filme e não coloca-las na boca de algum ator. As lágrimas possuem mais valor que as palavras: "estou triste".

Alguns anos atrás um filme me chamou atenção. Wall-e era o mais novo lançamento da Pixar, e um dos lançamentos mais comentados do ano. A proposta é interessante, no aspecto fílmico. Como pode um cineasta desenvolver um filme centrado num robô solitário que não fala? O filme deveria se desenvolver todo por meio de imagens, dos atos limitados de um robô que não tinha articulações ou músculos expressivos como os que possui o homem. Ainda assim – talvez por se tratar de um filme infantil – os cineastas caem no lugar-comum de colocar alguns telões explicando o que até então as imagens poderiam por si só terem deixado implícito, esforçando o trabalho cooperativo do espectador com o filme.


Existe ainda uma saída que fora encontrada nos tempos do cinema mudo: o jornal. Era posto um personagem em cena lendo um jornal que logo seria posto em close-up quase como um letreiro. Mas não se tratava esta cena como sendo um letreiro, mas como uma saída inventiva. Na verdade, trata-se de uma trapaça. Um jornal em close-up é um letreiro, são palavras escritas sendo utilizadas para explicar alguma parte do filme de grande complexidade para ser executada por meio de imagens – ou muito longa. É escolhido o menor caminho em direção à saída.

Novamente, não podemos tomar um filme como uma obra artística por sua trama e pelo diálogo travado por seus personagens. Como o diretor se esforça para resolver os problemas da história que tem em mãos? Neste sentido, Hitchcock era gênio. Genialidade que provinha do fato de pensar seu filme em imagens e não em acontecimentos. Quando o cineasta se bate com o segundo ele deixa o primeiro (que é a essência do cinema) de lado. Os acontecimentos podem ser resolvidos sem qualquer inventividade. Ao invés de colocar um ônibus pegando fogo numa rua da cidade o cineasta prefere colocar um personagem comentado o fato.

O roteiro pode ser muito bem estruturado, muito bem escrito, mas não servir um bom filme. Poderíamos filmar um homem lendo Hamlet por uma hora e meia sentado em uma cadeira. O texto é maravilhoso, o filme ruim. Parte da inventividade do diretor saber traduzir Hamlet em imagens, sem que necessariamente se retire o belo texto de Shakespeare - e assim justifique a sua motivação de transformá-lo em filme. Mas como fazê-lo? Cabe a um grande artista pensá-lo.


É possível escrever por meio de imagens e se fazer entendido. É possível fazer passar uma ideia (Eisenstein, Vertov) ou uma emoção (Murnau, Hitchcock) sem o uso de palavras. Daí a ideia de que o cinema possui uma linguagem própria – se ele possui uma linguagem própria não seria necessária outra, como os livros que geralmente não necessitam de ilustrações para se fazer entendido. Daí, também, intitularmos este texto por "a palavra no cinema", já que na sétima arte existem dois tipos de linguagem. Concluímos que a palavra é uma substância estranha dentro do cinema.

Isto em nada impede o uso das palavras por parte dos atores. Hitchcock fez grande parte de seus filmes durante o período falado, mas nem por isso ele se curvou às palavras para contar suas histórias. É aceita a palavra no cinema, contanto que ela não substitua a imagem. O realismo almejado pelos cineastas do cinema falado se dá com a presença da palavra, mas isto não significa que seus filmes devam ficar submissos ao uso da palavra escrita ou falada. É o que nos mostra Richard Linklater em Antes doamanhecer: o filme é constituído de longas conversas, mas nem por isso a paixão que cresce entre os personagens passa despercebida pela imagem. Muito pelo contrário. Os personagens não falam de seu desejo um pelo outro até o fim do filme, e quando chegamos a este momento já sabemos tudo aquilo que eles externam por meio das falas. A cena em que o casal escuta um disco dentro da cabine da loja de música é um exemplo do sucesso do filme enquanto filme (cinema).

O cinema é a arte das imagens em movimento e deve ser pensado e feito como tal.



[Este texto faz parte da série a palavra no cinema, publicada aqui no blog em novembro de 2014. Seguem este texto: 
A palavra e o invisível
A palavra e seu império]

[as imagens: 1- Acossado (Godard); 2 - Encouraçado Potemkin (Eisenstein); 3 - Janela indiscreta (Hitchcock); 4 - Luzes da cidade (Chaplin); 5 - Aurora (Murnau); 6 - Antes do amanhecer (Linklater).]