por João Bénard da Costa
"Não, não tinha
pensado começar esta série sobre “os mais belos dos filmes” com Tabu.
Foi idéia de última hora, quando reparei, como contei na crônica do cão
amarelo, que Godard o citou para explicar o que queria dizer com o superlativo
absoluto de beleza. Acaso?
Mas foi acaso por
acaso que, entre a sexta-feira passada e a sexta-feira de hoje, revi Tabu duas
vezes? E foi acaso por acaso que o revi na mais bela das cópias que de Tabu me
foi dado ver, essa da Cinemateca de Praga que agora passou na cinemateca? E foi
acaso por acaso que, com dois dias de intervalo, pude comparar Tabu com Sunrise,
o filme de Murnau que, até Janeiro de 1996, era incontestavelmente o meu
favorito?
E foi acaso por acaso
que reli uma velha critica (1953) de Maurice Scherer (= Eric Rohmer) onde se
diz: “Os referendos estão na moda. Desculpem se me deixei apanhar. Fazer listas
de preferência, à hora do chá, entre amigos, é um jogo de salão agradável e que
só depende da nossa disposição no momento (…) Mas não quis perder a ocasião
para dizer - como uma recente visão de Tabu mo confirmou - que
este filme é, na verdade, a obra-prima do seu autor, o maior filme do maior
autor de filmes”. Se acaso tudo são acasos, acaso sou eu também.
Foi relativamente por
acaso que F. W. Murnau decidiu, em Abril de 1929, aos 40 anos, partir para
Taiti e filmar à luz dos mares do sul. Tinha chegado à América cerca de três
anos antes (Julho de 1926) aclamado como o “gênio alemão”. Tinha filmado - 1927
- Sunrise, Oscar para a melhor “produção de qualidade artística”,
no primeiro ano em que houve prêmios da academia. Depois (The Four Devils, City
Girl) foi forçado a vergar-se às regras da Fox. Depois, “por acaso”,
conheceu David Flaherty, irmão de Robert Flaherty, que estava a tentar
convencer a mesma Fox a fazer um filme em Taiti. Depois, esse filme
malogrou-se. E, depois, Murnau convidou David Flaherty para jantar, no solar em
que vivia, sozinho com os criados, numa das colinas mais altas de Hollywood.
Parece que se sentaram os dois sozinhos, numa mesa enorme, na enorme casa de
jantar de Murnau. E, à hora em que o jovem Hutter se feriu com a faca e
derramou algumas gotas de preciosíssimo sangue (estou a referir-me a Nosferatu,
para quem não saiba), Murnau disse baixinho ao irmão de Flaherty: “Queres vir
comigo para Taiti?” No dia seguinte, antes do nascer do dia, partiram para o
México, onde estava Bob. Poucos dias depois, com o muito dinheiro ganho por
Murnau, formaram uma sociedade - a Colorart - para produzir uma série de filmes
nas ilhas dos mares do sul. O primeiro devia chamar-se Turia e
contava a história de um pescador de pérolas. “Bali é a última Thule dos meus
desejos” teria dito Murnau, antes de embarcar, no fabuloso iate que comprou
(vê-se no filme) e a que também deu o nome dessa ilha: Bali.
Daí por diante e até
a primeira versão do argumento de Tabu se concluir (Dezembro
de 1929, depois de um longo périplo de Murnau pelo Arquipélago das Marquesas e
pelas ilhas Paumotu), tudo separou os dois cineastas. Flaherty sonhava
encontrar o paraíso na terra e o mundo antes do pecado original. Murnau já
sabia que “nessa terra / também, também / o mal não cessa, não dura o bem”. O
“terror antigo”, o terror de Nosferatu, foi o que encontrou em Bora-Bora ou em
Tokapoto, as ilhas de rodagem. Flaherty assombrou-se: “Como são profundas as
inibições destes alemães!... Como é terrível a sua vontade de domínio!... Como
é imenso o seu fatalismo!...”. Como não se assombraria? Tabu, às
vezes descrito como um documentário de Murnau e de Flaherty, nada (ou
pouquíssimo) tem de Flaherty e é tudo menos um documentário. Murnau, que chegou
a Taiti como Nosferatu, num barco a velas (e como é terrível e ameaçadora a
primeira visão do iate, apenas ou por causa da imensa beleza dele e da imensa
beleza do plano), é o filme do encontro de Murnau com a Morte, essa morte com
que mil vezes foi ameaçado durante as rodagens (Janeiro a Outubro de 1930),
essa morte que o apanhou, numa curva da estrada, a 11 de Março de 1931, aos 42
anos, uma semana antes da estréia mundial de Tabu.
Nosferatu. “Um nome que soa como a chamada
noturna da Ave da Morte”, para citar o primeiro intertítulo do filme de Murnau
de 1922, não é, em Tabu, explicitamente, um morto-vivo ou um
vampiro? Talvez não seja. Mas se o não for, quem é então Hitu, o prodigioso
velho, de olhar inexorável, que, no iate de Murnau, chega a Bora-Bora para
lançar o seu tabu sobre Reri, a virgem sagrada?
Antes, víramos planos
de ofuscante beleza em que os mais belos corpos masculinos - donde logo emerge
Matahi, o protagonista - pescam como se dançassem ou dançam como se pescassem.
É o mar e no mar. Uma simples panorâmica (simples?) e o mundo roda 180º para os
planos subjetivos das mulheres em flor, sob as cascatas. Passagem tão
misteriosa como a misteriosa passagem do mundo do lago para o do carro elétrico,
em Sunrise, depois de George O’Brien ter tentado matar Janet
Gaynor.
É um allegro
prestíssimo esse início coral, a que se sucede o adágio, no plano
inadjetivável em que Reri encosta a cabeça ao peito de Matahi e para sempre
fica colada a ele.
É um pouco mais tarde
(precedido pelo grande, grande plano do mensageiro dos apelos) que surge o
navio fantasma, com o velho Hitu.
Antes de o vermos,
vemos uma grande onda preta. E Reri tapou os olhos ao ouvir o tabu. Flores para
os mortos.
Matahi reaparece
depois, ainda solto, ainda resplandecente. E sempre me pareceu que, logo que o
viu, o velho soube tudo (se é que o não sabia antes). Há um plano - brevíssimo
- em que quase podemos dizer que uma certa compaixão se apodera dele. Mas, como
as nuvens, passou.
Se não é Nosferatu,
quem é aquele velho sempre recortado contra o vulcão de Paia? Gauguin, que
tantas vezes Murnau evocou em Tabu e expressamente no plano de
Matahi, sentado na cabana, tão farto de esperar bem, contou-nos que o Deus Ora
desceu do alto dessa montanha à procura de uma mulher transformada em coluna de
fogo. E Reri - a mulher que vemos a chorar no lancinante ritual da despedida da
mãe - como fogo se acende quando, na dança sagrada, Matahi, despertado pela
música, subitamente se lhe vem juntar, afastando todos os corpos para dominar
com a sombra dele a sombra da mulher. Se não é Nosferatu, quem é Hitu, o velho
que retira a grinalda e corta o amor?
À luz de Hina, a lua,
vem depois a noite em que Matahi arranca Reri ao barco da morte e a leva com
ele para a ilha dos chineses e das pérolas.
Mas, senão é
Nosferatu, quem é esse velho que um tempo, algum tempo, muito tempo depois,
desembarca na ilha, em que os amantes se supunham a salvo, para cumprir a
maldição?
Não o vemos chegar.
Tudo o que vemos é, nessa noite, Reri acordar na cabana, como as crianças
acordam dos pesadelos, soltar-se dos braços de Matahi e olhar para a porta,
deixada aberta. Todo o terror do mundo nos olhos dela. Depois, tapa-os com as
mãos. Contraplano e vemos, no portal, o velho, de branco e de pé. A câmera
volta a Reri, que lentamente tira os braços dos olhos. Contraplano e não está
lá ninguém. Visão? Sonho? Premonição? Quem souber decidir, sabe o segredo da
arte de Murnau.
No dia seguinte, um dos pescadores da ilha é comido por um tubarão. As
autoridades declaram essas águas tabu. A palavra TABU aparece no filme. O que
aparece é sempre menos do que o que não aparece. Que é esse tabu, decretado
pelos homens, face ao outro, que veio do fundo dos mares e dos tempos?
Nessa noite, há a luz sobre os amantes. Matahi dorme, de novo, dorme
sempre quando Reri vela, como ela dormiu, depois, quando ele foi pescar a
pérola negra. E se não é de Nosferatu, de quem é essa sombra esguia que, como
uma seta, deixa a mensagem que anuncia a morte de Matahi se, passados três
dias, ela não o seguir? Os corpos parecem agora as pietás de
Antonello. A fuga de ainda, gora-se. Em montagem paralela, o desafio ao tubarão
da pérola negra e a carta de Reri do imenso adeus.
E se não é Nosferatu, quem é o Caronte que conduz o barco que leva Reri
de volta? E se não é Nosferatu, quem é o velho que corta a corda da vida no
momento em que Matahi atinge o barco para lhe roubar Reri?
E o maior milagre que já vi no cinema é a perseguição final, quando
Matahi se lança atrás do barco. A pé, numa embarcação e, depois, finalmente, a
nado, a câmera voa em planos fixos, atravessando terras e mares, para figurar o
impossível - possível: Matahi a atingir a velocidade do vento que sopra as
velas e a tocar na barca, onde Nosferatu acabou de sepultar Reri. Mas, quando a
corda é cortada, tudo se torna de uma lentidão imensa, enquanto o barco se
afasta e Matahi se afunda nas águas, nadando, nadando sempre, como se esse
movimento já sem razão fosse a última razão possível.
Numa carta à mãe,
escrita no final da rodagem, Murnau disse: “Estou enfeitiçado por estes lugares
(…) Às vezes, sonho que gostava de voltar a casa. Mas a minha casa não é em
parte nenhuma (…) Em casa nenhuma, em terra nenhuma e com nenhuma pessoa.”
Cumpriu-se a maldição que uma lenda antiga atribui a um feiticeiro de
Bora-Bora: “Quando o homem branco ouvir o grito da Ave da morte, o Diabo
Oramatua-hiaro-rorua o levará.”
Se o cinema, como disse Henry Miller, é “a consciência visual da morte”
nunca a vimos de tão perto como em Tabu de Murnau. Depois
deste filme, nenhum outro pode ser “o mais belo dos filmes”.
Contraplano. E repito: nenhum outro."
disponível em: Foco Revista de Cinema.
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