Godard no maio de 68 |
No último texto publicado aqui no blog fizemos uma breve
discussão sobre o que seria a crítica de cinema. Mas nela ficou um gosto
amargo. Dizíamos que o crítico de cinema não pode detratar uma obra partindo de
sua ideologia, o que absolveria, de certo modo, o cinema de propaganda
fascista. Sim, é verdade que lá dissemos que um crítico pode se posicionar
dentro deste debate, mas não no sentido de denegrir a obra, que pode ser muito
bem construída dentro de sua própria proposta. O que vale a um crítico de cinema
é, antes de tudo, o cinema.
O problema que nos surge é: qual seria o papel social do
crítico? Por que seria necessária a sua existência? Ainda retomando ao texto
anterior, o crítico de cinema não pode ser posto como o sujeito com certo
conhecimento de uma arte e que faz indicações de quais filmes, dentre os
lançamentos da semana, vale a pena assistir. O papel dele não é o de
publicitário. Sua importância está na sobrevivência de um mundo artístico.
Assim como é necessário o artista é necessário o pensador da obra de arte. É
preciso que exista o sujeito que vá enxergar naquela proposta a sua base e a
construção dela.
A obra de arte se dirige sempre a muitas pessoas. Na
verdade, nunca se sabe ao certo o tamanho da quantidade populacional que uma obra
poderá alcançar. Ela pode tanto ficar restrita a determinados grupos
político-ideológicos, a uma classe social, quanto chegar a toda a sociedade por
igual (o que é sempre mais raro, mas acontece). Em qualquer um dos casos, existe uma ideia sendo abraçada pelo artista e
que poderá ser comprada por seu espectador/leitor. E sabemos muito bem o
poder agregador e manipulador dos discursos por trás das artes, em especial do
cinema.
Façamos um breve passeio pela história do cinematógrafo: em
1915, David Griffith lança O
nascimento de uma nação. Hoje vista como uma obra racista, na época fora
vista como apresentando o perigo que representam os negros para a população
"de bem" dos EUA. Resultado: a Ku Klux Klan nunca teve tantos membros
na história!: pouco mais de 2 milhões. Na União Soviética, Lênin decreta: das
artes, o cinema é, para nós, a mais importante. O que significa que a revolução
seria filmada pelas câmeras soviéticas, tanto para sonhar a utopia abraçada,
quanto para lembrar o motivo de terem feito a revolução (como em Encouraçado Potemkin). Na
década de 1930 é a vez do nazi-fascismo abraçar o cinema como arma de
propaganda. Todo o cinema alemão e italiano é convertido em máquina de
manipulação de suas respectivas populações. Nos EUA de 1940, dezenas são os
filmes realizados em prol dos esforços de guerra: é preciso convencer a
população de que há um perigo real e justificar a entrada do país na guerra (conquistando seu apoio incondicional, até mesmo para permitir seus filhos a partir).
E então? Qual seria o papel do crítico de cinema frente a
estes filmes de bandeira ideológica tão agressiva assim? Calar-se frente aos seus
discursos? Em primeiro lugar, a atrocidade do discurso muda de pessoa para
pessoa. Há até mesmo quem acredite que o discurso dos filmes nazistas não seja
tão ruim assim. E isso pode ser influenciado na crítica. E a crítica passaria, deste modo, a ser mais uma arma de manipulação da população. Não bastando o bom
serviço dos cineastas em fazer a tal obra. Por isso dizemos aqui: o crítico de
cinema não pode defender uma ideologia em sua crítica. Deve abster-se. O que
ele tem que fazer é, antes de qualquer coisa, analisar o filme.
O maior problema que haveria nestes casos não é nem tanto o
trabalho do crítico, mas o espectador/leitor procurar o amparo de uma crítica
depois de ter sido convencido pelo discurso da obra. Ao depararmo-nos com um
filme não devemos aceitar o que ele nos diz, mas digerir suas informações - o
mesmo deve ser feito com tudo, até mesmo com textos jornalísticos e a presente tentativa de ensaio. E aqui entra algo que já havíamos falado no texto
anterior: a verdadeira motivação da existência de um crítico.
A crítica de cinema (e de todas as artes) deve ampliar a
experiência do espectador/leitor com a obra, mesmo depois desta já haver
terminado. O que significa que por meio deste texto de comentário o sujeito que
acabara de ver/ouvir uma obra artística passará a pensar nela. E, por meio das
próprias formulações, dizer se o discurso empregado na obra se sustenta ou não.
Se o artista insere o espectador/leitor em outro mundo, em que lhes são
mostradas novas possibilidades, o crítico lhe questionará: isso se sustenta?
Enquanto filme pode, sim. Enquanto fala para um mundo
melhor, pode ser que não. O que é necessário numa crítica é fazer com que esta
digestão da obra se mantenha por tempo prolongado. Por tempo suficiente. Para
que aquela propaganda ideológica seja vista enquanto tal e não me servindo. Ou
me servindo. O real papel social da crítica de arte é pôr o leitor a pensar
para além daquilo que ele simplesmente viu e ouviu. Será que é realmente todo
mundo mau, ou Fritz Lang só escolheu a escória da sociedade para retratar em M - o vampiro de Dusseldorf e
assim fazer crer seu espectador (de que há o mau em todos)? A reflexão do filme transcende a própria obra. E os filmes políticos são os que mais perigo trazem à sociedade -
envolver a população em uma ideologia própria ao autor. Mas será que o filme é
realmente um retrato da sociedade? É o que é preciso ser perguntado pelo
crítico e, por extensão, pelo espectador.
O papel social da crítica de cinema, assim colocada, faz
eco ao esclarecimento (também conhecido por iluminismo) kantiano: é preciso dar as possibilidades ao sujeito para
que ele pense por conta própria e não seja enrolado por ninguém. Posso me
emocionar com um filme de propaganda fascista, mas não abraçar sua mensagem - e
com isto criar a barreira entre a ficção e a realidade. Mas posso enxergar a
vida humana em um filme - é o que fazem os Lumière, De Sica, Kiarostami,
Coutinho... Mas é necessário que pense por mim mesmo, enquanto leitor de
crítica e cinéfilo, e não seja convencido por ninguém. E o papel do crítico é
exatamente este: abrir-me o mundo de possibilidades de interpretações da obra
para que não vá cegamente abrir uma única porta - aquela que me fora apontada.
Aos filmes se é dada a possibilidade de abraçar a ideologia que for: afinal de contas, o que é o cinema se lhe for tirada a capacidade de sonhar?
Aos filmes se é dada a possibilidade de abraçar a ideologia que for: afinal de contas, o que é o cinema se lhe for tirada a capacidade de sonhar?
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