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quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Dois homens em Manhattan de Jean-Pierre Melville (deux hommes dans Manhattan, 1959)


Uma das características que mais chamaram a atenção da nova leva de cineastas e críticos franceses dos anos 1950 com relação a Jean-Pierre Melville foi sua independência. Fazia filmes com orçamentos curtos e sempre saía com algum truque de dentro da manga. Nem sempre fazia sucesso, é verdade. Mas nem sempre a falta de público significa a má qualidade de um filme - mesmo que ele busque esta popularidade. E certamente no cinema de Melville tal característica fora logo notada. O diretor queria fazer cinema a todo custo. Começou as filmagens de O silêncio do mar, por exemplo, sem os direitos do livro - jogada arriscada para quem filmava com orçamento apertadíssimo.

Este Dois homens em Manhattan já põe logo de cara o estilo favorito do cinema de Melville. Ouvimos um jazz que insere os créditos iniciais numa aura de perigo típica do gênero noir. Antes que os protagonistas sejam apresentados, uma narração para abrir o filme. Três crianças de diferentes grupos culturais brincam em frente a um prédio, que logo nos é mostrado de cima a baixo como sendo a sede da ONU, em Nova York. Entramos na assembléia para encontrarmos o auditório cheio. A câmera documental varre o local para encontrar alguns dos representantes dos países chave deste tipo de encontro: União Soviética, EUA... Mas o filme francês não nos mostra o representante de seu país. O que se passa?


Em seguida, somos colocados em um escritório. Uma notícia chega: o representante francês não compareceu à assembleia porque está desaparecido. Um jornalista surge. O editor o manda descobrir o que aconteceu e onde está o homem. Na sala, uma moça aparece e ouve a conversa, mas passa despercebida. Sua participação é tão grande quanto a das secretárias que trabalham no escritório. O jornalista deixa o prédio. Logo atrás surge um carro. A música cresce. O automóvel segue o jornalista, mas não acompanhamos a perseguição. No momento seguinte Melville nos apresenta Delmas, fotógrafo que acompanhará o jornalista Moreau.

Delmas é pessoa difícil, como seu apartamento demonstra. Gosta muito de beber e copos e garrafas encontram-se em todos os lugares. Moreau entra em sua casa e ele não percebe. A vitrola toca uma música alta, no meio do chão do quarto-sala. Abrindo os olhos devagar, Delmas saúda o amigo. Nada nos é dito sobre aquela relação, e descobrimos que se trata do fotógrafo de quem Moreau falava com o editor do jornal pelos filmes pendurados na cozinha-laboratório. Uma mulher dorme ao lado de Delmas, mas esta nunca vira para se revelar. Passa o tempo inteiro dormindo. Somente faz menção aos dois homens quando pede uma bebida. Delmas joga uma garrafa na cama, mas ela parece ter voltado a dormir.


A presença destas mulheres será uma constante no filme. O homem a quem procuram já foi fotografado por Delmas em algumas ocasiões. Sempre com mulheres diferentes. Qual delas é a esposa dele? Difícil saber. Mas Delmas sabe quem é cada uma delas, só sabe que nenhuma é sua esposa. Embarcam juntos nesta busca pelo homem desaparecido, e novamente são acompanhados de perto por um carro negro que surge do meio das trevas noturnas de Nova York. O curioso é que, por mais estardalhaço que Melville faça ao mostrá-lo, não sentimos a sensação de perigo com relação àquele veículo. Ele surge, mas somos indiferentes. O que fazemos é imaginar o que poderia ser ele. Poderia ser um grupo que sequestrou o homem e agora está no encalço dos jornalistas? Ou um grupo de bandidos que quer chegar até o homem?

As mulheres das fotografias tiradas por Delmas são facilmente encontradas. Uma é atriz, outra é cantora e outra é dançarina. Nenhuma das três parece ter qualquer informação relevante, embora cada uma delas se sinta perturbada em falar do assunto. A dançarina, por sinal, é a que mais suspeitas nos levanta por sua postura arrogante. Ela se recusa a falar. Mas, de acordo com a fala de suas companheiras de camarim, ela é assim no cotidiano. É numa lanchonete que algo parece estar errado. A atriz, a primeira das mulheres que eles visitaram, tentou suicídio antes mesmo de terminar a peça que apresentava naquela noite. Os jornalistas conseguem chegar ao hospital. Escondidos, entram no quarto da atriz e lhes fazem perguntas. Ela, abalada, revela que o homem que procuram está morto em seu apartamento. Tivera um ataque cardíaco.


Gostaríamos de acreditar que há mais nesta história, muito mais, mas termina nisso. Chegam ao apartamento da atriz e encontram o homem sentado no sofá com a mão no peito, morto. Em sua frente, um copo de whisky ainda por terminar. É curiosa como as coisas se dão. Mas Delmas, que conseguira uma fotografia da atriz no hospital e depois organiza uma cena no apartamento para fotografar o homem em posições comprometedoras, vê seu parceiro e o dono de uma publicação tentando não fazer muito barulho com toda aquela situação. O homem tinha, sim, uma vida cheia de fatos comprometedores, mas um passado de batalha por seu país. Melville, como o personagem do moribundo, lutou na resistência francesa durante a segunda guerra e sua tendência será a de respeitar o companheiro de luta.

Mas e o carro que os seguia? Os três homens retiram o corpo do apartamento da atriz para colocá-lo em seu próprio carro, como se ele tivesse morrido enquanto dirigia. O automóvel que seguia está parado um pouco atrás. Com a partida do trio, uma mulher deixa o automóvel. É a mulher do escritório. Sua mão acaricia o ombro do morto com tristeza. Ela queria encontrá-lo, afinal. Esta revelação tardia nos mostra que a intenção de Melville, apesar de criar certa aura de thriller envolvendo o carro perseguidor, em momento algum nos passa a impressão de perigo. E a revelação ao final certamente resolve certo impasse: não fora incompetência do cineasta de criar uma situação de suspense.


O suspense encontrava-se em outro lugar, na procura pelo desaparecido. Mas há por trás de toda esta história um discurso político. Sim, porque na recusa de transformar o moribundo num degenerado, e manter sua imagem de heroísmo, Melville nos mostra que o herói real é falho e também morre. E que são estes homens que estão à frente das decisões, de parte, dos países. A manutenção desta imagem heroica é necessária para que a visão do passado não seja deturpada. Afinal de contas, de que valeria uma luta de libertação se houvessem depravados de ambos os lados? O caso é que de nenhum dos lados existem homens perfeitos, mas discursos diferentes. É a imagem que permanece por mais tempo, como diz o dono da publicação que encontra a dupla de jornalistas no apartamento da atriz: a matéria no jornal é esquecida, a fotografia permanece. A fotografia possui um discurso mais direto e efetivo. O artigo não. Na luta pela libertação da França da garra dos nazistas, o que permanece em meio ao imaginário popular é, exatamente, a imagem. Torna-se um ato de responsabilidade do produtor das imagens de saber o que fazer com elas. Ao final do filme fica a dúvida posta sobre Delmas: deveria ele vender as fotografias e ganhar muito dinheiro ou defender a moral do criador de imagens?

terça-feira, 18 de março de 2014

La Pointe-Courte de Agnes Varda (1955)


direção: Agnes Varda;
roteiro: Agnes Varda;
fotografia: Louis Soulanes, Paul Soulignac, Louis Stein;
editor: Alain Resnais;
estrelando: Philippe Noiret, Silvia Monfort.

Logo após o término da segunda guerra, em um momento em que a economia europeia se encontrava em frangalhos, a ideia de produzir filmes de baixo orçamento começou a ganhar corpo, atraindo muitos aspirantes a diretores que não encontravam lugar ao sol dentro da indústria cinematográfica de seus países, nem se beneficiar de uma produção com altos orçamentos. Na França este pensamento foi primeiro tomado por Jean-Pierre Melville que filma seu primeiro longa-metragem, O silêncio do mar, com orçamento baixíssimo - algo em torno de 9 milhões de francos em uma época em que o custo médio de um longa-metragem contornava os 50 milhões. O filme foi mais tarde um sucesso de público, rendendo um belíssimo retorno financeiro.

Alguns anos mais tarde, em 1955, Agnes Varda que então trabalhava como fotógrafa profissional, tomou para si a iniciativa de filmar um longa-metragem nos moldes daquele que Melville havia feito. Seu projeto era de filmar em um vilarejo de pescadores chamado Pointe-Courte, e que daria nome ao filme. Para a gravação, Varda prefere não se relacionar com o Centro Nacional de Cinematografia (CNC) para baratear a produção de seu filme feito em cooperativa entre equipe e elenco. O filme custa 7 milhões, mas não dá retorno algum. O CNC o considera um filme amador, mesmo tendo sido filmado em 35mm, o que impede a estreante cineasta de exibir seus filmes nos cinemas. Michel Marie, em seu estudo sobre a nouvelle vague, tem que este foi um ponto importante que mostrou para os futuros diretores a importância do distribuidor para o sucesso de um filme. La Pointe-Courte ficou sem ser exibido no circuito comercial, tendo uma única exibição num cinema de arte, mas que não foi suficiente para dar qualquer retorno financeiro à empreitada.


O filme em si é uma obra impressionante. Varda nos dá algumas das características mais marcantes da nouvelle vague antes mesmo da eclosão do movimento. Temos duas histórias que caminham em paralelo: um casal casado há cinco anos que se encontram no vilarejo onde ele (Philippe Noiret) cresceu e que sua esposa (Silvia Monfort) nunca havia visitado, e a vida dos pescadores que são impedidos de pescar pela guarda costeira.

A parte dos pescadores nos apresenta um grupo de atores não profissionais, escolhidos entre a população local, para interpretar a eles mesmos, seu cotidiano. São as histórias acontecendo nos lugares em que elas acontecem. Este trabalho é o que quiseram fazer os cineastas posteriores ao neorrealismo italiano quando viram este trabalho ser feito pelos pioneiros Roberto Rossellini e Vittorio de Sica. O caráter documental dado pela câmera de Varda a esta parte do filme é inegável, temos a sensação de estar naquelas casas vendo a vida daquelas pessoas. Já na parte em que acompanhamos o casal, que é interpretado por dois atores profissionais, o filme já nos apresenta um trabalho muito mais trabalhado, em que a composição do quadro é cuidadosamente estudada.


Encontra-se uma batalha entre estilos de filmar. Em um momento temos a utilização de não atores e uma filmagem mais espontânea, de outro temos os atores, com sua atuação milimetricamente estudada para que possam ser compostos os quadros tais como a diretora os quer. É uma batalha silenciosa que se apresenta entre a leveza do naturalismo dado à história dos pescadores e o peso dado pela construção teatral tradicional de um filme, em que as imagens clamam por uma representatividade metafórica. Enquanto a esposa julga conhecer seu marido, sem conhecer suas origens, Varda nos mostra que o cinema julga conhecer as pessoas contando-nos suas histórias nos estúdios, enquanto as pessoas estão vivendo estas histórias nas ruas. A esposa acha que conhece tão bem seu marido que poderia ser ele, mas não conhece uma parte importante de sua história, o lugar de onde ele veio e que o moldou. O cinema vai pelo mesmo caminho: ele acha que pode representar - e em algumas concepções até mesmo reproduzir - a vida, mas desconhece as origens das histórias que está a contar, dos personagens sobre os quais estão falando.

Varda em seu debute no cinema nos apresenta uma obra madura e belíssima que vale a pena ser vista com muito cuidado por aqueles que amam o cinema como forma de expressão artística e não como mero divertimento.

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

O Silêncio do Mar de Jean-Pierre Melville (Le Silence de la Mer, 1949)



direção: Jean-Pierre Melville;
roteiro: Jean-Pierre Melville;
direção de fotografia: Henri Deace;
estrelando: Howard Vernon, Jean-Marie Robain, Nicole Stephane.

Com o advento do neorrealismo italiano, as plateias do mundo todo levaram um choque quando histórias ficcionais passaram a ser contadas nas ruas em que aconteciam as histórias nas quais elas eram inspiradas. Junto com esta nova possibilidade, da falta de necessidade de construir enormes cenários para contar histórias, nascia o cinema independente, o cinema que não necessitava de grandes orçamentos para que filmes pudessem ser feitos, apenas boas histórias. É partindo destes princípios que Jean-Pierre Melville faz Le Silence de La Mer, seu primeiro longa-metragem.

O filme em questão é uma adaptação de um livro (de mesmo nome) escrito quando tropas nazistas ocupavam a França em 1941. Dois soldados nazistas passeiam por uma pequena cidade do interior da França até chegarem a uma casa, a do tio-narrador (Jean-Marie Robain, o nome de seu personagem não é revelado em momento algum). Eles entram na casa, pedem para vê-la, dão uma volta, e partem. Pouco depois retornam com caixas que deixam na casa. Alguns dias mais tarde surge o oficial Werner von Ebrennac (Howard Vernon), que ficará alojado na residência.


Durante este período o tio e a sobrinha que vive com ele (Nicole Stephane) convivem sem maiores problemas com o oficial, mas negam a sua presença. O oficial não passa de um mero fantasma que assombra as noites dos moradores daquela casa do interior de uma França atormentada por terrores semelhantes. Eles ficam próximos ao fogo da lareira como se fosse o fogo que espantasse aquela figura. Uma figura que faz questão de anunciar sua presença, por mais que seja ignorado. Ebrennac surge em diversas noites e profere monólogos sobre os mais diversos temas (em grande parte sobre arte). Embora não transformem as falas do oficial em um diálogo, o tio e a sobrinha escutam todas as palavras que Ebrennac diz.

É o fantasma que assombra, que não pode ser visto, mas que é sentido. Ele não é material, e mesmo assim perturba quem está próximo. E como assombrados por um fantasma que não podem extirpar, o tio e a sobrinha permanecem sentados, obedientes à sua condição de "assombrados", enquanto o oficial permanece de pé, imponente, com o poder da fala (a fala, que mais tarde nos será revelada, é exclusividade dos alemães - que com sua vitória irão destruir a cultura francesa). A fala tão importante neste filme porque, como diria Merleu-Ponty em uma obra publicada uma década depois deste filme, é a partir da fala que conhecemos nossos pensamentos (nossas ideias), é somente quando podemos falar que possuímos o poder. Daí enxergarmos a importância da cena final deste filme, uma cena simples que esconde um discurso extraordinário.

Um belo filme sobre a cultura de um povo, o seu valor, e o que pode ela representar em tempos sombrios.