quinta-feira, 31 de julho de 2014

Charles Chaplin (Jean Renoir sobre Chaplin)


"[...] O filme de Carlitos é tudo isso. É mais que um espetáculo, é um refúgio. Todo meu reconhecimento para esse homem, que pode me proporcionar, depois de passar pela porta do cinema, a sensação de segurança, como se estivesse por trás de uma fronteira intransponível. Desde a primeira imagem esqueço a sordidez de meu ofício que apesar disso é o mais belo do mundo; esqueço os imbecis e gananciosos que o aviltaram e pisotearam, como os pomares da 'Ile-de-France'. Tudo me parece fácil, leve. Ao sair, tem-se a impressão de que também se pode fazer filmes assim. As imagens dão a impressão de aflorar espontaneamente. Já se disse que Carlitos era um pessimista desiludido. É possível. A mim, ele proporciona asas. Uma hora de conversa com sua sombra na tela e me descubro transbordado de entusiasmo, com a maior fé nos destinos do cinema, absolutamente esfuziante."

(Jean Renoir em "escritos sobre cinema", p. 90).

sábado, 19 de julho de 2014

Charles Chaplin - Corrida de Automóveis para Meninos


E foi do meio da multidão que ele surgiu pela primeira vez, aquela figura desengonçada, mal vestida, com calças largas e sapatos cumpridos. E foi nesta sua primeira aparição que ele já começou a se mostrar insistente. Faria de tudo para chamar nossa atenção, fosse lá o que tivesse que fazer. E é assim que ele se apresenta no meio da multidão. Ele é o deslocado que chama atenção. Tentam tirá-lo de cena, mas ele retorna. O mundo não é seu lugar natural, mas o cinema é. E é por isso que ele insiste. Fica em frente aos carros para que a câmera possa vê-lo. Porque quem não quer vê-lo são as pessoas que mexem no equipamento. A câmera  quer. E é esta relação que surge em Corrida de automóveis para meninos. E é esta relação que nós teremos com ele. Nós queremos Carlitos tanto quanto Carlitos quer a câmera. Ele precisa dela para viver e nós precisamos dele para sorrir.

quarta-feira, 16 de julho de 2014

Bastidores: Monica e o Desejo



Enquanto preparava a realização de Quando as mulheres esperam, encontrei-me com regularidade com o escritor Per Anders Fogeltröm. Ele estava escrevendo um romance sobre dois jovens que fogem de suas casas e, juntos, vão viver um tempo no arquipélago, no seio da natureza, regressando depois à cidade. Escrevemos juntos um roteiro com base na história e, com um detalhado programa de como a produção seria feita, entregamos tudo à SF [Svensk Filmindustri]. Minha ideia era fazer um filme de baixo custo de produção, sob rigoroso princípio de simplicidade, longe de estúdios e com um número mínimo de técnicos. A realização de Monica e o desejo foi aprovada, sendo esse filme o segundo feito de acordo com o "contrato de escravo" que tinha com a SF. Para fazer o elenco com os atores Harriet Andersson e Lars Ekborg aproveitamos cenários de Sonhos de mulheres, quer dizer, mais uma vez interrompi um filme para trabalhar em outro.

Nunca fiz um filme tão simples como Monica e o desejo. A bem dizer, foi assim: partimos para o arquipélago e gravamos o filme. Aquela liberdade nos encantou. E o sucesso de bilheteria foi considerável. 



(Ingmar Bergman em "Imagens")

sábado, 12 de julho de 2014

Vento e Areia de Victor Sjostrom (the wind, 1928)


direção: Victor Sjostrom;
escrito por: Frances Marion, Dorothy Scarborough (baseado em seu livro);
fotografia: John Arnold;
edição: Conrad A. Nerving;
estrelando: Lillian Gish, Lars Hanson, Montagu Love, Dorothy Cumming.

Quando Bela Tarr lançou seu ultimo filme em 2011, O cavalo de Turim, o impacto do cinema do realizador húngaro se abateu com força sobre os espectadores que o desconheciam. Uma das características mais impressionantes de seu derradeiro filme foi o uso do som para captar o vento. O vento que perturba, oprime e, ao mesmo tempo, mostra que além daquelas paredes que cercam os personagens existe um mundo desconhecido. O vento é uma destas "entidades" fantásticas que podem ser utilizadas no cinema de forma magistral por seu caráter misterioso. Ele surge, nós o sentimos, vemos os efeitos que ele causa, mas não podemos enxergá-lo nem sabemos sua proveniência. E é por meio de uma representação dele que um cineasta atento pode abrir todo um mundo de discussões físicas e/ou metafísicas acerca do mundo que nos cerca. Outro caso que vale ser citado aqui é de Ingmar Bergman que em O sétimo selo conseguiu imprimir em película, o silêncio. É um embate muito característico a cineastas inquietos este de buscar representar em seus filmes (seja imageticamente, como no caso de Bergman, seja por meio do som, como no caso de Tarr) aquilo que seria pobremente captado no mundo.

Em Vento e areia, Victor Sjostrom - que outrora já havia conseguido a proeza de, por meio de sobreposições, fazer fantasmas passearem pelos cenários de A carruagem fantasma -  parte em busca de uma tarefa tão difícil quando a de seu citado clássico: filmar o vento. Tarefa aceita quando o diretor é contratado pelo estúdio MGM para ser um de seus cineastas. Caindo nas graças de Lillian Gish, Sjostrom consegue esta película que viria a se tornar um de seus maiores clássicos, contando uma história típica dos filmes que a atriz costumava fazer. Letty sai da Virginia para morar com o primo em um rancho. Durante a viagem de ida ao tal rancho o primeiro sinal do caos em que ela se encontrará já se apresenta a sua frente. Uma tempestade de areia encontra o trem que cruza o deserto e entra pela janela que Letty havia deixado aberta. É uma desculpa para que um homem com quem havia trocado olhares se aproxime e inicie uma conversa. Somente nesta primeira cena já estão entregues os dois elementos que mais atormentarão a protagonista.


Mas a real preocupação de Sjostrom não é a de filmar um drama, tão somente. Ele quer filmar também o embate do homem e da natureza que o cerca e da possível aceitação deste homem frente ao que a natureza lhe impõe. É o caso de Letty e o vento. O vento é constante, forçando a protagonista a se acostumar com ele ou se entregar a uma loucura já anunciada pelo estranho no trem. A jovem recém-chegada é a única que demonstra um estranhamento com o vento que não para. Todas as demais pessoas estão mais do que acostumadas a ele. Ninguém cambaleia devido ao vento ou se importa com a areia que ele leva para a comida. É um elemento natural que a natureza lhes impôs. Embora façam um paralelo entre o vento e um cavalo, quem é domado não é a natureza, mas o homem. É ele quem se acostuma e passa a viver obedecendo às suas regras (e a cena do ciclone não poderia ser mais simbólica).

E é por isso que a personagem que devemos seguir deve ser alguém que nunca antes havia tido este confronto, para quem a natureza era domável, não domadora. Quando não mais possui o controle do mundo em suas mãos, o chão de Letty passa a desaparecer e os primeiros sinais de loucura aparecerão. Não somente devido ao vento que a importuna, mas a cobrança da esposa de seu primo que a obriga a se casar para deixar sua casa. O mundo ao seu redor lhe impõe suas condições para que ela possa nele viver e ela tem que aceitar sem muito o que dizer. São nestes momentos de maior desespero que a direção de Sjostrom surge para pontuar as aparições deste vento que surge opressor, agredindo as paredes do casebre em que agora vive Letty, as janelas, batendo na porta e querendo entrar (e por vezes conseguindo). Não é por acaso que a redenção da personagem e sua rendição ao vento parta de seu marido, a única figura no filme que não lhe obriga a fazer coisa alguma. Ela sente na pele o que é ser o vento. 


A participação do vento marca o filme. Algumas de suas cenas magistrais demonstram o vigor da natureza e seu poder frente ao homem. Numa das cenas mais marcantes do filme temos a primeira noite de casada de Letty. Seu marido surge no cômodo principal do casebre com um café em mãos, se espanta ao ver pela primeira vez os cabelos soltos de sua esposa e vai até ela oferecer-lhe café. Nota, então, que ela não está contente com o matrimônio e hexita por um momento em agarrá-la a força. Sai do cômodo. Letty continua a pentear seus cabelos, de forma nervosa, caminhando de um lado para o outro. É aqui em que Sjostrom faz a famosa montagem "enquanto isso...", em que primeiro é mostrado a ação de um personagem e após o corte mostra o outro. Com esta montagem paralela em que são mostrados de forma simultânea (embora não apareçam juntos no quadro) os dois personagens, Sjostrom nos demonstra que não somente sua protagonista está apreensiva com o que fará o seu marido, como também ele está apreensivo sobre o que deverá fazer e o que será o seu casamento dali para frente. Numa amostragem de brilhante maestria, o diretor retira a câmera do rosto de seus personagens e passa a mostrar seus pés, afinal de contas são eles os membros que trabalham para demonstrar tal apreensão. Primeiro vemos os pés dele caminhando sobre o chão de madeira, e um corte para o vento que levanta a areia do deserto e a joga contra o casebre. A agressividade do vento contra o casebre é o que impulsiona a agressividade com a qual o marido de Letty irá agir logo em seguida.

Trata-se, portanto, de uma obra essencial para o entendimento do cinema, um filme dirigido por um mestre que conseguiu o que poderia soar impossível: mostrar o invisível. Os devidos créditos desta façanha devem ser dados ao seu diretor. Victor Sjostrom ao filmar o embate entre o homem e a natureza que o cerca não tomou partido por nenhum dos lados, preferindo conciliá-los.

[ps.: a cena do homem enterrado na areia e sendo desenterrado pelo vento é uma das razões pelas quais ver e rever este filme pelo resto da vida!]

sexta-feira, 11 de julho de 2014

André Setaro


André Setaro, autor do famoso Setaro's Blog faleceu esta quinta-feira, 10. Presto uma humilde homenagem ao blogueiro e crítico de cinema que muito me influenciou. Saber assistir a um filme sempre foi pauta de seu blog. Longe do corriqueiro, Setaro apresentava textos teóricos sobre cinema referentes à linguagem cinematográfica, às formas da narrativa, e vez e outra publicava as memórias de um cinema que se diz baiano. 

Formado na cinefilia pelo crítico e ensaísta Walter da Silveira nos idos da década de 1960, Setaro passou este trabalho de seu mestre para frente. Primeiro como professor da faculdade de comunicação da Universidade Federal da Bahia, num segundo momento como crítico - ambas profissões que ele exercia há mais de trinta anos - e num terceiro momento em seu blog, este ultimo que possui grande papel em minha formação de cinéfilo.

Neste link pode ser lido o livro Panorama do cinema baiano escrito por Setaro em ocasião do centenário do cinema baiano.

quinta-feira, 3 de julho de 2014

Charles Chaplin (Bazin escreve sobre Chaplin)

(esta postagem faz parte do conjunto de postagens publicadas aqui no blog em comemoração do centenário de estréia de Charles Chaplin no cinema)


"O que faz Carlitos correr?
Mas a continuidade e a harmonia da existência estética de Carlitos só poderiam ser apreendidas através dos filmes por ele vividos. O público o reconhece pelo rosto, sobretudo pelo bigodinho em trapézio e o passa de ganso, que, mais que o hábito, tampouco faz o monge. Em Pastor de almas, Carlitos aparece apenas como detento e clérigo, e em numerosos esquetes veste o smoking ou o fraque elegante de milionário. Mas essas referências físicas teriam pequeníssima importância se não discerníssemos, em primeiro lugar, os constantes aspectos internos realmente construtivos do personagem. Estes são menos fáceis de definir ou escrever.
Podemos tentar fazê-lo segundo sua maneira de reagir a um tipo dado de acontecimento. Por exemplo, a ausência completa de obstinação quando o mundo lhe opõe uma resistência grande demais. Busca então contornar a dificuldade em lugar de resolvê-la; uma solução provisória lhe basta, como se o futuro não existisse para ele. Em Pastor de almas, por exemplo, apara um rolo de pastel sobre um móvel com uma garrafa de leite que irá se servir instantes mais tarde: o rolo naturalmente cairá sobre sua cabeça. Mas se o provisório sempre lhe basta, ele dá provas, no imediato, de uma engenhosidade prodigiosa. Nunca uma situação o deixa desamparado. Para ele, tudo tem solução, embora o mundo - e talvez o dos objetos ainda mais que o dos homens - não seja feito para ele."


(André Bazin em "Charlie Chaplin")