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sexta-feira, 21 de novembro de 2014

A palavra e seu império


Vimos em A palavra e o invisível como a palavra pode ser utilizada em conformidade com o espetáculo cinematográfico. Com o advento do cinema falado poucos foram os cineastas e estudiosos que se posicionaram de modo a enxergar a estranheza da palavra nesta arte. Foi assim que se criou e deixou crescer o império da palavra.

Foi André Bazin que, em A evolução da linguagem cinematográfica, se posicionou nesta discussão. Ele enxergava dois tipos de cinema, aquele da imagem e o realista. Este segundo, de sua preferência, estaria unido à palavra por ser este um modo realista de representação cinematográfica. Na vida cotidiana as pessoas conversam quando se encontram e nada mais natural ao cinema (que é a arte realista por excelência) que mostrar este cotidiano na tela. Mas será que este realista trazido ao cinema pela palavra (pela fala) não faria uma subversão de seus valores ao invés de “avançar” em sua linha evolutiva como propõe o título do texto de Bazin?

Os discípulos cineastas do crítico francês foram que melhor apresentaram este equivoco de seu mestre. François Truffaut rasga elogios a Hitchcock quando de sua famosa entrevista. Nela os dois cineastas entram em comum acordo de que o cinema é uma arte imagética e por isso deve ser ela a melhor pensada e trabalhada, os diálogos surgem como um adendo. Jean-Luc Godard – autor de filmes de falatório – trilha caminho semelhante ao de seu antigo parceiro de Cahiers. Em Acossado Godard apresenta ao público uma montagem que não pretende ser realista ou sugerir coisa alguma, ela simplesmente nos lembra do fato de estarmos assistindo a um filme e o corte é o modo mais explícito de se demonstrar isso.


Como vimos no citado texto anterior, a palavra surge no cinema falado e logo passa a fazer parte constituinte de sua formação (no sentido da forma do filme). Quando o invisível, aquilo que aparece no extracampo nos é apresentado somente pela fala dos personagens, será que não estaria ali, naquelas palavras de quem aparece em cena um constituinte da imagem? Em parte sim, mas não acontece com todo cinema. Como vimos, isto acontece em No tempo das diligências porque aquela ameaça que não vemos e que nos é sugerida pela palavra paira nas imagens do filme. Esta ameaça que está sempre presente necessita estar fora de quadro para que a potência do filme possa surgir.

Mas isto não acontece com todos os filmes, ainda que todos eles insistam em se basear nas palavras dos personagens. Porque este realismo que a palavra emprega ao cinema faz ser mais crível a relação entre os personagens que se apresentam na tela. Mas esta busca pelo realismo cotidiano no cinema faria uma subversão de seu princípio próprio: a história contada por imagens. O que levaria uma figura a preferir contar uma história no cinema ao invés de escrever um livro, um artigo para jornal ou mesmo uma peça de teatro? Muitos dos filmes que são lançados hoje em dia provocam esta dúvida: será que eles deveriam ter sido transformados em filme? Será que eles não estariam melhor alocados em diferentes formas de comunicação ou expressão artística?

O realismo óbvio alcançado pela objetividade fotográfica faz do cinema o meio mais fácil para que um sujeito que tenha menor inspiração criativa possa contar uma história. Porque para alcançar o realismo por meio da prosa é necessário muito trabalho e inventividade por parte do escritor. No caso do cinema é dada a possibilidade de deixar de lado todo este trabalho intelectual excessivo e desenvolver algumas frases – cujo brilhantismo ficaria por conta da capacidade do ator de expressá-las – e simplesmente pôr a câmera em frente aos personagens e deixá-los surgir. Estaria em nossa frente o realismo? Sim, em parte. Porque ninguém poderia negar que aquelas duas pessoas estão conversando uma com a outra ou que seu diálogo é, no mínimo, interessante.


É aí que surge um ponto interessante da teoria de Bazin: a duração. Tomando de empréstimo o termo central da filosofia de Henri Bergson, o crítico de cinema nos dá algo de muito interessante: o filme realista deve conseguir captar esta duração do mundo. Será que todo filme que se propõe realista porque coloca dois atores muito bons conversando torna-se por isso realista? Não é porque dois personagens trocam farpas em cena que isso vá ser ser realista. Nem porque o espectador reconhece aqueles sentimentos expressados em tela. Mais do que isso, é necessária que haja a interação com a câmera.

É a câmera que vai buscar esta duração presente no mundo e expressá-la no cinema. Isso por meio do plano-sequência em que se filma o fluxo de acontecimentos em seu desenrolar natural. Richard Linklater faz isso. Eric Rohmer também. E nem todo cineasta que se propõe a colocar a câmera em frente a seus personagens ou a segui-los por um longo tempo sem cortes que consegue expressar a tal “duração dos fatos”. Sua cena pode simplesmente ficar longa e chata ao invés de envolvente.

Chamando Richard Linklater para dentro desta argumentação retornamos ao primeiro texto desta série, A palavra no cinema. O cineasta estadunidense faz uma provocação muito interessante em seus filmes. Seus personagens falam muito e o diretor os deixa a vontade para que possa conversar e se expressar. A câmera não irá perturbá-los, nem a montagem irá quebrar o desenrolar de suas ações. E ainda assim não serão as palavras que contarão a história. Estas surgiram em cena de modo desconexo, os personagens poderão falar do que lhes será preferível – tal como fazem os personagens de Tarantino – sem ligação com aquele momento presente que vivem ou com o sentimento que aflora. Estará impresso nas imagens o sentimento entre aqueles personagens ou o sentimento dos personagens por si. Em Antes do amanhecer está lá na cena da cabine de música ou mesmo no gesto imperceptível de Jesse querendo ver o rosto de Celine e interrompendo seu ato de retirar o cabelo dela de cima do rosto. São estes gestos, mais que as falas, que traduzem o sentimento que nasce entre os dois personagens.


A palavra pode, sim, fazer parte das imagens, mas em momentos muito particulares, como no citado filme de John Ford. Ela, mesmo não sendo material, consegue transbordar para o exterior e fazer-se presente na imagem. Mas não são todas as obras que conseguem isso. O realismo do cinema pode ser buscado por uma obra que preze pelo falatório, e nem por isso estará lá uma grande obra. Como dissemos no primeiro texto, não adianta colocar um ator sentado em frente a uma câmera lendo Hamlet que ainda assim será um filme ruim. É necessário que parta do cineasta a motivação que o leva a contar aquela história no cinema, ou seja, por meio de imagens.

Nesse sentido a abertura do ultimo filme de Béla Tarr, O cavalo de Turim, é muito significativa. Nela Tarr coloca um narrador para contar determinado episódio na vida do filósofo Friedrich Nietzsche. O narrador nos oferece todos os elementos para que possamos compor a cena, lugar, tempo histórico, personagens..., mas a imagem nos é subtraída. O que temos é somente uma tela em preto e a voz do narrador. Com o auxílio de nossa própria imaginação construímos a tal cena, e por isso se faz desnecessária a presença de uma figura em quadro nos contando a tal fábula. Semelhante aspecto se encontra em Era uma vez na Anatólia. Os personagens conversam dentro do carro, mas não precisamos vê-los. Vemos somente os carros que cortam a paisagem da Anatólia. Em determinado momento, os carros parados, as pessoas do lado de fora, e um dos personagens decide contar uma história. Ouvimos suas palavras, mas não vemos seu rosto se mover. Ou vemos o rosto de mais ninguém se mover.


A palavra ganhou bastante espaço no cinema depois do surgimento do cinema falado, mas isso não quer dizer que um filme deva ser feito somente baseado nas palavras falada ou escrita. Quando o entendimento ficar mais complexo nas imagens, é necessário o uso das palavras, mas caso contrário não. Era uma vez na Anatólia nos mostra isso. O “era uma vez” do título que nos remete ao ato de contar uma história nos faz pensar nos diferentes modos de contar uma história que aparecem no filme. Existe aquela história principal que é contada por meio da câmera e outras menores que são contadas pelos personagens em suas conversas. A fala, neste momento, adquire um sentido especial: ele pode servir de adendo ao entendimento daquilo que nos mostra a câmera.

Era uma vez na Anatólia se torna muito semelhante a No tempo das diligências. Ambos os filmes fazem a palavra incorporar as imagens porque estaria ali presente um sentido nesta relação. Mas a palavra não possuiria o maior poder no filme em nenhum dos dois casos. Ela torna-se subalterna ao que é mostrado. Ainda assim é parte constituinte da imagem.

Um filme deve ser construído primando por suas imagens. O cinema é uma arte de imagens e assim deve ser pensado e feito. O que dizem os personagens não deve ser mais que um adendo àquilo que é mostrado. 



[este texto faz parte da série a palavra no cinema publicada aqui no blog em novembro de 2014. Este texto é precedido por A palavra no cinema e A palavra e o invisível]

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Era uma vez na Anatólia de Nuri Bilge Ceylan (Bir zamanlar Anadolu'da, 2011)


direção: Nuri Bilge Ceylan;
roteiro: Nuri Bilge Ceylan, Ebru Ceylan, Ercan Kesal;
fotografia: Gökhan Tiryaki;

Assisti Era uma vez na Anatólia há alguns dias. O filme permanece em minha mente. Como costuma acontecer quando assistimos a bons filmes. Algumas cenas muito me impressionaram. Deixam marcadas suas presenças na tela. Inscrevem-se em nossa memória para que possamos lembrar-nos dela em algum momento. Passam a ser referencial para obras futuras. No meu caso, o nome deste filme permaneceu em meio as minhas lembranças desde seu lançamento. Não tive oportunidade de assisti-lo antes. Agora que pude, vejo que não me fiz um desfavor em guardar por tanto tempo o nome de tal filme. E como ele soa bem em meus pensamentos: Era uma vez na Anatólia. Apesar de ser um título que possa evocar ao cinema de Sergio Leone, o estilo cinematográfico de seu autor lembra muito mais outro cineasta: Andrei Tarkovski. Comentei sobre esta relação no texto que escrevi aqui no blog sobre outro filme de Ceylan, Distante.

Quanto ao filme, trata-se de um percurso. Um grupo de policiais, junto a um médico legista e um promotor, acompanham dois presos na busca pelo corpo de um homem que eles mataram e enterraram. Grande parte do filme se passa em uma única noite, durante esta viagem por entre a paisagem turca. Os três carros são a única fonte de luz que nos permite enxergar os movimentos dos personagens. E que bela luz estes carros fornecem! Enquanto os automóveis cortam as estradas, a câmera de Nuri Bilge Ceylan os filma de longe. Mesmo estando tão distante de seus personagens, somos capazes de escutar o que eles dizem. Escutamos suas conversas banais, sobre o cotidiano.


O carro para diversas vezes. Os presos não conseguem lembrar-se onde enterraram o corpo. Um dos policiais fica cada vez mais irritado. Acredita que os presos o fazem de bobo. De que tudo aquilo não passaria de uma brincadeira para eles. Mas não é isso que Ceylan nos mostra. Há algo mais profundo naquela relação entre os presos e o assassinato do que poderemos descobrir. Porque o passado está enterrado, e não podemos acessá-lo a não ser com a colaboração da memória de quem o viveu. E se quem o viveu não tem interesse em conta-lo, não poderemos conhecê-lo. Ou poderemos?

Em uma destas paradas, uma cena estranha. E ainda assim, belíssima. Uma macieira ao lado da estrada, cheia de maçãs torna-se uma tentação para um dos policiais [imagem acima]. Ele pula e agarra um dos galhos. Neste ato agressivo, muitas maçãs despencam da árvore em direção ao chão. O policial se contenta em pegar apenas uma. As outras rolam morro abaixo. Enquanto ouvimos a conversa dos policiais, a câmera de Ceylan segue uma das maçãs em seu percurso que ninguém ali presente acompanha. A maçã passa por entre o mato até cair num córrego. A água a empurra, forçando-a a permanecer em movimento. Neste percurso vemos outras maçãs que também caíram no córrego e que tiveram seu movimento interrompido por alguma coisa. Mas a maçã que seguimos não é parada por nada. Esta cena é cortada sem que possamos ver o destino da maçã. Voltamos para o grupo conversando.


Nesta mesma cena, um dos policiais conversa com o médico. Enquanto ele fala, a câmera passeia mostrando-nos os rostos das pessoas. Até mesmo do policial que fala. Mas sua boca não se move. Ainda assim, o ouvimos.

A caravana para num vilarejo. O grupo se alimenta na casa de um conhecido dos motoristas. A ventania os faz ficar sem eletricidade. A cena fica escura, mas ainda assim vemos os personagens sentados na sala da casa simples do homem. Em determinado momento sua filha adolescente aparece com uma bandeja com um lampião. Na bandeja, além da fonte de luz, ela trás chá. Oferece para cada um dos homens. Esta visão os impressiona. A jovem é de uma beleza estonteante. A luz que ela carrega realça sua presença naquele lugar. Todos os homens ficam impressionados. Um dos presos, ao vê-la, chora.

Era uma vez na Anatólia causa certos arrepios. As cenas descritas são exemplo disso. Há um crime, que não nos é explicado. Não sabemos o desenrolar da história. Vemos apenas os carros que cortam a Anatólia. As estradas vazias de Anatólia. Os carros que descem os morros. Tal como a maçã. E tal como o movimento da maçã, não vemos o final. Acompanhamos a autópsia do corpo, que enfim, encontram. Mas nada mais. E ainda assim, não fica a sensação de que faltou algo. Fica a sensação de mistério.

terça-feira, 9 de setembro de 2014

Distante, de Nuri Bilge Ceylan (Uzak, 2002)


direção: Nuri Bilge Ceylan;
roteiro: Nuri Bilge Ceylan, Cemil Kavukçu;
estrelando: Muzaffer Ozdemir, Emin Tropak.

Nuri Bilge Ceylan deixa bem clara a influência que Andrei Tarkovski possui sobre seu cinema. Principalmente neste Distante. Um grupo de amigos conversam sobre o cineasta soviético durante um almoço. Mahmut - o fotografo que parece ser o auterego de Ceylan - assiste a um dos filmes de Tarkovski na televisão. Para além destas informações que nos são passadas pelo roteiro, está a forma pela qual Ceylan trata a estória que conta. E antes mesmo de ser uma estória, Distante nos apresenta a relação entre dois homens, ou a distância entre eles.

Os longos plano-sequência efetuados pela câmera de Ceylan buscam sempre estes dois personagens saídos do interior falido da Turquia em busca de uma vida nova na capital Istambul. Mahmut conseguiu tornar-se um fotografo famoso, mas pagou um preço. A solidão logo lhe encontra. O encontramos nesta obra quando sua ex-mulher está para se mudar para o Canadá. Seu enclausuramento dentro de seu apartamento torna-se mais profunda e seu contato com outras pessoas cada vez mais raro. Trabalhar como fotógrafo parece ajudar o aprofundamento desta solidão. É quando chega Yusuf. Vindo da mesma cidade que Mahmut, Yusuf busca emprego após a usina em que trabalhava em sua cidade natal ter entrado em falência e demitido seus mil empregados. Se esta presença no apartamento de Mahmut poderia parecer um encontro, o fim de sua solidão, Ceylan mostra que duas pessoas podem morar juntas e mesmo assim permanecerem distantes.


Não raro são os momentos em que Ceylan procura fazer uma conciliação entre dois personagens tão diferentes. Ele os pões juntos na sala de estar da casa de Mahmut enquanto assistem tevê, mas nada parece ajudar. Seus gostos são diferentes. Não assistem aos mesmos programas de tevê Nenhuma conversa consegue vingar. E nenhum dos dois personagens tenta fazer tal aproximação. Yusuf sai sempre do apartamento em busca de emprego, ou mesmo para ver outras pessoas. E mesmo que deseje aproximar-se dos outros, os outros parecem não querer se aproximar dele. E nem ele sabe como se aproximar dos outros. A câmera o filma sentado ao lado de uma garota no ônibus, mas ela se levanta e o deixa só. O que sobra é um primeiro plano - este enquadramento tão adorado pelos cineastas dos primeiros tempos do cinema - que o isola do mundo e que traduz a sua solidão interior.

Por meio de telefonemas aos seus familiares, Yusuf é claramente o personagem que busca contato com outras pessoas. Ele tenta em alguns casos aproximar-se de Mahmut, mas este recusa. Trava-se o distanciamento entre os dois personagens ao qual o título nacional se refere. Tal como já estava presente na cena de abertura do filme. Yusuf, caminhando em direção à câmera em uma paisagem gelada, desaparece por um momento por trás da câmera que precisa efetuar uma panorâmica para encontrá-lo numa estrada. Ele ergue o braço para pedir carona a um carro que se aproxima. Antes que o carro pare ou ignore o pedido de Yusuf, Ceylan corta a cena para apresentar-nos o título do filme. A distância está impressa em filme e não será mostrada a tão desejada aproximação até a ultima cena. 

A cena de encerramento do filme é preparada por todo filme. Em determinado momento, Yusuf oferece a Mahmut um cigarro barato, que este recusa. Quando, sem aviso prévio, Yusuf vai embora, Mahmut encontra no quarto de seu antigo inquilino o maço de cigarro que outrora lhe fora oferecido. Sentado à beira do mar, Mahmut ascende o cigarro de Yusuf selando o fim da distância. A câmera, por sua vez, sela esta aproximação com um zoom-in. Com esta cena fecha o primeiro filme de Nuri Bilge Ceylan que assisti, e que certamente me dará espaço para as demais obras deste interessante cineasta.