Vimos em A palavra e o invisível como a palavra pode ser utilizada em conformidade com o
espetáculo cinematográfico. Com o advento do cinema falado poucos foram os
cineastas e estudiosos que se posicionaram de modo a enxergar a estranheza da
palavra nesta arte. Foi assim que se criou e deixou crescer o império da
palavra.
Foi André Bazin que, em A
evolução da linguagem cinematográfica, se posicionou nesta discussão. Ele
enxergava dois tipos de cinema, aquele da imagem e o realista. Este segundo,
de sua preferência, estaria unido à palavra por ser este um modo realista de representação
cinematográfica. Na vida cotidiana as pessoas conversam quando se encontram e
nada mais natural ao cinema (que é a arte realista por excelência) que mostrar
este cotidiano na tela. Mas será que este realista trazido ao cinema pela
palavra (pela fala) não faria uma subversão de seus valores ao invés de “avançar”
em sua linha evolutiva como propõe o título do texto de Bazin?
Os discípulos cineastas do crítico francês foram que melhor
apresentaram este equivoco de seu mestre. François Truffaut rasga elogios a
Hitchcock quando de sua famosa entrevista. Nela os dois cineastas entram em
comum acordo de que o cinema é uma arte imagética e por isso deve ser ela a
melhor pensada e trabalhada, os diálogos surgem como um adendo. Jean-Luc Godard
– autor de filmes de falatório – trilha caminho semelhante ao de seu antigo
parceiro de Cahiers. Em Acossado Godard apresenta ao público uma
montagem que não pretende ser realista ou sugerir coisa alguma, ela
simplesmente nos lembra do fato de estarmos assistindo a um filme e o corte é o
modo mais explícito de se demonstrar isso.
Como vimos no citado texto anterior, a palavra surge no cinema
falado e logo passa a fazer parte constituinte de sua formação (no sentido da
forma do filme). Quando o invisível, aquilo que aparece no extracampo nos é
apresentado somente pela fala dos personagens, será que não estaria ali,
naquelas palavras de quem aparece em cena um constituinte da imagem? Em parte
sim, mas não acontece com todo cinema. Como vimos, isto acontece em No tempo das diligências porque aquela
ameaça que não vemos e que nos é sugerida pela palavra paira nas imagens do
filme. Esta ameaça que está sempre presente necessita estar fora de quadro para
que a potência do filme possa surgir.
Mas isto não acontece com todos os filmes, ainda que todos eles
insistam em se basear nas palavras dos personagens. Porque este realismo que a
palavra emprega ao cinema faz ser mais crível a relação entre os personagens
que se apresentam na tela. Mas esta busca pelo realismo cotidiano no cinema
faria uma subversão de seu princípio próprio: a história contada por imagens. O
que levaria uma figura a preferir contar uma história no cinema ao invés de
escrever um livro, um artigo para jornal ou mesmo uma peça de teatro? Muitos
dos filmes que são lançados hoje em dia provocam esta dúvida: será que eles
deveriam ter sido transformados em filme? Será que eles não estariam melhor
alocados em diferentes formas de comunicação ou expressão artística?
O realismo óbvio alcançado pela objetividade fotográfica faz do
cinema o meio mais fácil para que um sujeito que tenha menor inspiração
criativa possa contar uma história. Porque para alcançar o realismo por meio da
prosa é necessário muito trabalho e inventividade por parte do escritor. No
caso do cinema é dada a possibilidade de deixar de lado todo este trabalho
intelectual excessivo e desenvolver algumas frases – cujo brilhantismo ficaria
por conta da capacidade do ator de expressá-las – e simplesmente pôr a câmera
em frente aos personagens e deixá-los surgir. Estaria em nossa frente o
realismo? Sim, em parte. Porque ninguém poderia negar que aquelas duas pessoas
estão conversando uma com a outra ou que seu diálogo é, no mínimo,
interessante.
É aí que surge um ponto interessante da teoria de Bazin: a
duração. Tomando de empréstimo o termo central da filosofia de Henri Bergson, o
crítico de cinema nos dá algo de muito interessante: o filme realista deve
conseguir captar esta duração do mundo. Será que todo filme que se propõe
realista porque coloca dois atores muito bons conversando torna-se por isso realista? Não é
porque dois personagens trocam farpas em cena que isso vá ser ser realista.
Nem porque o espectador reconhece aqueles sentimentos expressados em tela. Mais
do que isso, é necessária que haja a interação com a câmera.
É a câmera que vai buscar esta duração presente no mundo e
expressá-la no cinema. Isso por meio do plano-sequência em que se filma o fluxo
de acontecimentos em seu desenrolar natural. Richard Linklater faz isso. Eric
Rohmer também. E nem todo cineasta que se propõe a colocar a câmera em frente a
seus personagens ou a segui-los por um longo tempo sem cortes que consegue
expressar a tal “duração dos fatos”. Sua cena pode simplesmente ficar longa e
chata ao invés de envolvente.
Chamando Richard Linklater para dentro desta argumentação
retornamos ao primeiro texto desta série, A palavra no cinema. O cineasta estadunidense faz uma provocação muito
interessante em seus filmes. Seus personagens falam muito e o diretor os deixa
a vontade para que possa conversar e se expressar. A câmera não irá
perturbá-los, nem a montagem irá quebrar o desenrolar de suas ações. E ainda
assim não serão as palavras que contarão a história. Estas surgiram em cena de
modo desconexo, os personagens poderão falar do que lhes será preferível – tal como
fazem os personagens de Tarantino – sem ligação com aquele momento presente que
vivem ou com o sentimento que aflora. Estará impresso nas imagens o sentimento
entre aqueles personagens ou o sentimento dos personagens por si. Em Antes do amanhecer está lá na cena da
cabine de música ou mesmo no gesto imperceptível de Jesse querendo ver o rosto
de Celine e interrompendo seu ato de retirar o cabelo dela de cima do rosto.
São estes gestos, mais que as falas, que traduzem o sentimento que nasce entre
os dois personagens.
A
palavra pode, sim, fazer parte das imagens, mas em momentos muito particulares,
como no citado filme de John Ford. Ela, mesmo não sendo material, consegue
transbordar para o exterior e fazer-se presente na imagem. Mas não são todas as
obras que conseguem isso. O realismo do cinema pode ser buscado por uma obra
que preze pelo falatório, e nem por isso estará lá uma grande obra. Como
dissemos no primeiro texto, não adianta colocar um ator sentado em frente a uma
câmera lendo Hamlet que ainda assim
será um filme ruim. É necessário que parta do cineasta a motivação que o leva a
contar aquela história no cinema, ou seja, por meio de imagens.
Nesse
sentido a abertura do ultimo filme de Béla Tarr, O cavalo de Turim, é muito significativa. Nela Tarr coloca um
narrador para contar determinado episódio na vida do filósofo Friedrich Nietzsche.
O narrador nos oferece todos os elementos para que possamos compor a cena,
lugar, tempo histórico, personagens..., mas a imagem nos é subtraída. O que
temos é somente uma tela em preto e a voz do narrador. Com o auxílio de nossa
própria imaginação construímos a tal cena, e por isso se faz desnecessária a
presença de uma figura em quadro nos contando a tal fábula. Semelhante aspecto
se encontra em Era uma vez na Anatólia.
Os personagens conversam dentro do carro, mas não precisamos vê-los. Vemos
somente os carros que cortam a paisagem da Anatólia. Em determinado momento, os
carros parados, as pessoas do lado de fora, e um dos personagens decide contar
uma história. Ouvimos suas palavras, mas não vemos seu rosto se mover. Ou vemos
o rosto de mais ninguém se mover.
A
palavra ganhou bastante espaço no cinema depois do surgimento do cinema falado,
mas isso não quer dizer que um filme deva ser feito somente baseado nas palavras
falada ou escrita. Quando o entendimento ficar mais complexo nas imagens, é
necessário o uso das palavras, mas caso contrário não. Era uma vez na Anatólia nos mostra isso. O “era uma vez” do título
que nos remete ao ato de contar uma história nos faz pensar nos diferentes
modos de contar uma história que aparecem no filme. Existe aquela história
principal que é contada por meio da câmera e outras menores que são contadas
pelos personagens em suas conversas. A fala, neste momento, adquire um sentido
especial: ele pode servir de adendo ao entendimento daquilo que nos mostra a
câmera.
Era uma vez na Anatólia
se torna muito semelhante a No tempo das
diligências. Ambos os filmes fazem a palavra incorporar as imagens porque
estaria ali presente um sentido nesta relação. Mas a palavra não possuiria o
maior poder no filme em nenhum dos dois casos. Ela torna-se subalterna ao que é
mostrado. Ainda assim é parte constituinte da imagem.
Um
filme deve ser construído primando por suas imagens. O cinema é uma arte de
imagens e assim deve ser pensado e feito. O que dizem os personagens não deve
ser mais que um adendo àquilo que é mostrado.
[este texto faz parte da série a palavra no cinema publicada aqui no blog em novembro de 2014. Este texto é precedido por A palavra no cinema e A palavra e o invisível]
[este texto faz parte da série a palavra no cinema publicada aqui no blog em novembro de 2014. Este texto é precedido por A palavra no cinema e A palavra e o invisível]
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