O trecho que segue abaixo
se encontra na introdução do livro A
philosophy of cinematic art, escrito pelo filósofo Berys Gaut. Trata-se de uma passagem um tanto significativa para a compreensão de uma área ainda não muito conhecida do público acadêmico brasileiro e que apresenta a história da teoria e da filosofia do cinema. Para além disso, serve para mostrar a multiplicidade de abordagens feitas pelas áreas em questão, assim como os muitos autores que se propuseram a pensar o cinema.
1.1 TEORIA DE CINEMA E FILOSOFIA
Hoje,
a filosofia do cinema é uma ampla e crescente disciplina, e expõe uma
impressionante característica que, ainda que não seja única dentre as
filosofias das artes, é ao menos incomum: muitos filósofos e teóricos de cinema
estão interagindo e aprendendo com os trabalhos uns dos outros. Muito, ainda
que certamente não todos, dos trabalhos dos filósofos foi crítica a aspectos da
teoria de cinema, mas a interação tem sido frutífera para ambas disciplinas.
Esta reciprocidade é testemunhada por muitas antologias em que tanto teóricos
de cinema quanto filósofos de cinema são incluídos[1]. E
provavelmente as mais amplas antologias introdutórias ao cinema incluem os
escritos de filósofos como Noël Carrol, Stanely Cavell, Gilles Deleuze, Cynthia
Freeland e Jerome Levinson[2].
Filosofia
do cinema é talvez tão velha quanto o meio do filme fotográfico (que foi
inventado em meados de 1890): Hugo Munsterberg, filósofo e psicólogo, escreveu
um estudo pioneiro em cinema em 1916[3].
Contudo, o cinema somente começou a atrair mais ampla atenção filosófica na
década de 1970, quando lançados livros seminais e artigos por Stanley Cavell,
Francis Sparshott, Alexander Sesonske, e Arthur Danto[4].
Desde então, os escritos em filosofia do cinema germinaram; monografias mais
importantes sobre cinema incluem aquelas de Noël Carroll, Gregory Currie e
George Wilson[5].
Para além de livros e artigos em filosofia do cinema em geral, também existem
estudos de filmes individuais por filósofos.
Como
teoria de cinema tem tido papel central em compor uma agenda especial para a
filosofia do cinema, é meritória a realização de pesquisa a respeito de teoria
de cinema[6].
Teoria clássica de cinema começou pouco depois da invenção do cinema. Sua
preocupação era tripla: primeiro, uma nova mídia havia surgido: mas era arte?
Suas raízes se encontram em experimentos científicos e meios mecânicos de gravação pareciam excluir qualquer participação de expressão individual ou de
forma de criação, o que argumentava contra seu status artístico. Clássicos
teóricos de cinema como Rudolf Arnheim (que é uma grande influência no presente
livro) foram firmes em defender filme contra as acusações e mostrar que era de
fato uma forma de arte[7].
Segundo, por conta de sua base fotográfica, o cinema parecia estar, em certo
sentido, num preeminente meio realista e portanto de possuir novos recursos
artísticos distintas de formas de artes já existentes: André Bazin e Siegfried
Kracauer investigaram a natureza do realismo fílmico[8].
Terceiro, é filme como arte, então parecia para muitos que deve haver um
artista responsável por cada filme; consequentemente, proponentes da teoria de
autor, como Andrew Sarris e Victor Perkins, argumentaram a existência de um
único autor de um filme, normalmente identificado como o diretor[9].
Como veremos, todos estes forma interesses de filósofos. De fato, em suas
preocupações centrais, em sua claridade de expressão e em sua precisão de
argumento, teoria clássica de cinema carrega alguma afinidade como a filosofia
do cinema contemporânea.
O
segundo tipo de teoria, que se auto intitula teoria de cinema contemporânea,
ganhou notoriedade em meados dos anos 1960. Sua reivindicação central é que o
cinema é um tipo de linguagem. Esta ideia havia sido discutida por alguns
teóricos clássicos, como Sergei Eisenstein[10]. E
recebeu sua defesa mais apoiadora pelas mãos de Christian Metz[11].
A esta reivindicação foi mais tarde adicionada a tese de que a psicanálise,
particularmente aquela forma apresentada por Jacques Lacan, é central tanto
para o entendimento do filme como mídia quanto para entender as reações dos
espectadores ao filme[12].
Teóricos de cinema contemporâneos também argumentaram que a difusão de
ideologia em cinema se dá em virtude de certas características da mídia e de
certos tipos maiores de filmes, como os realistas[13].
Muitos filósofos foram intensamente críticos com relação às reivindicações
delineadas acima[14].
Contudo, ainda que este tipo de teoria de cinema seja ainda uma força muito
influente nos estudos de cinema, mais tarde a área cresceu mais pluralisticamente
e de algum modo menos interessado em construir uma grande teoria, e se tornou
mais atenta à variedade de modo que filmes individuais e tradições
cinematográficas nacionais representaram seus temas.
Dentro
dos últimos vinte anos, cresceu um terceiro tipo de teoria de cinema: teoria de
cinema cognitiva. Seu expoente mais influente é David Bordwell, que utilizou
descobertas da psicologia cognitiva como suporte para uma estética
neoformalista[15].
Alguns teóricos cognitivistas, como Torben Grodal, também desenharam sobre
descobertas da neurociência e outros, como Murray Smith, ao trabalhar com
filosofia analítica para jogar luz sobre as respostas emocionais dos
espectadores e em como estas respostas são guiadas por gêneros de filmes e por
padrões narrativos[16].
Teoria de cinema cognitiva é ainda uma posição minoritária dentro dos estudos
cinematográficos, ainda que sua influência esteja crescendo e tenha beneficiado
a filosofia do cinema por seu diálogo receptivo com a filosofia analítica. Seu
interesse em como espectadores interpretam filmes e respondem emocionalmente a
eles também ajudou a moldar alguns problemas de filosofia do cinema.
A
contribuição da filosofia para nossa compreensão do cinema até aqui não tem se
mantido unicamente em identificar problemas ou quebra-cabeças sobre cinema, que
tem sido posta pela teoria de cinema[17].
Filósofos têm contribuído principalmente por trazer uma maior sofisticação
conceitual ao debate. Noções de realismo, linguagem e interpretação são
preocupações centrais aos filósofos em geral, e não é surpreendente se filósofos
sejam bem sucedidos em encontrar uma grande quantidade de confusões em como
elas foram manejadas em teoria de cinema. Filósofos têm também endereçado um
amplo alcance de problemas que foram identificados pela teoria de cinema. Em
adição àquelas discutidas neste livro, estas incluem o caráter de
sustentabilidade do conceito de cinema de não-ficção e a fenomenologia de tempo
e espaço[18].
Talvez
a característica mais saliente da filosofia do cinema no presente seja,
enquanto os filósofos analíticos rejeitaram os paradigmas da psicanálise e do “filme
como linguagem” que são incorporados na teoria de cinema contemporânea, estamos
no melhor dos casos ainda nos primeiros estágios de deixar uma compreensiva
teoria alternativa. De fato, como notado anteriormente, alguns filósofos, proeminentemente
Noël Carroll, argumentaram contra a possibilidade de uma compreensiva e correta
teoria de cinema, defendendo ao invés disso o desenvolvimento de um relato
fragmentário dos diferentes aspectos do filme[19].
Contudo, Wilson em Narration in Light
caminha num sentido de desenvolver a teoria do ponto de vista cinematográfico e
de narração, e Currie em Image and Mind
avança uma compreensiva teórica cinematográfica da representação. A teoria de
Currie também atrai fortemente a psicologia cognitiva, que tem sido influente
para a teoria cognitiva de cinema. A abordagem tomada no presente livro é mais
sistemática que fragmentária e é uma que, ainda que influenciada pela psicologia
cognitiva, é baseada numa investigação do papel da mídia em condicionar
características que o cinema partilha com outras formas de arte, como narração,
expressão e representação. Tal teoria tanto revela o que o cinema tem de comum
com outras formas de arte, como também a distingue delas, e o motivo.
[1]
David Bordwell e Noel Carrol (ed.), Post-theory;
Richard Allen e Murray Smith (ed.), Film
Theory and Philosophy; Carl Plantinga e Greg M Smith (ed.), Passionate Views; e Paisley Livingston e
Carl Plantinga (ed.), The Routledge
Companion to Philosophy and Film.
[2]
Leo Baudy e Marshall Cohen (ed.), Film
Theory and Criticism.
[3]
Hugo Munsterberg, The Photoplay.
[4]
Stanley Cavell, The World Viewed (a
primeira edição foi publicada em 1971); Francis Sparshott, “Basic Film
Aesthetics” (primeiro publicado em 1971); Alexander Sesonske, “Cinema Space”; e
Arthur Danto “Moving Pictures”.
[5]
Noël Carroll, Philosophical Problems of
Classical Film Theory; Noël Carroll, Theorizing
the Movie Imagem; Gregory Currie, Image
and Mind; e George Wilson, Narration
in Light.
[6] Influenciado pela teoria de
cinema, mas distinta desta, é o campo dos estudos de jogos, incluindo os jogos
eletrônicos. A mais proeminente divisão teórica neste campo concerne a
possibilidade de narrativa interativa, um assunto que divide narratologistas e
ludologistas, e que discuto em detalhe em Seção 5.7. Outros assuntos adereçados
a estudos de jogos tem análogos diretos com os tradicionais estudos de cinema, como
o status de jogos eletrônicos enquanto arte, o papel de autoria e a natureza do
engajamentos emocional da audiência com os trabalhos. Estes aspectos podem ser
também endereçados no presente livro, mas apenas por enquanto quando eles
permanecem no aspecto interativo dos
jogos eletrônicos, mais do que em seu status de jogos.
[7] Rudolf Arheim, Film as Art; o filme foi inicialmente
publicado na Alemanha em 1933, e numa edição ampliada em 1957.
[8] André Bazin, What is Cinema?; e Siegfried Kracauer, Thoery of Film (primeiro publicada em
1960).
[9] Andrew Sarris, “Notes on Auteur
Theory in 1962”; e V. F. Perkins, Film as
Film, capítulo 8.
[10]
Sergei Eisenstein, “Beyond the Shot [ The Cinematic Principle and the
Ideogram]”
[11] Christian Metz, Film Language.
[12]
Christian Metz, The Imaginary Signifier.
[13]
James Spellerberg, “Technology and Ideology in the Cinema”.
[14]
Por exemplo, Currie, Image and Mind,
Prefácio; e Carroll, Mystifying Movies.
[15]
David Bordwell, Narration in the Fiction
Film e Making Meaning.
[16]
Torben Grodal, Moving Pictures; e
Murray Smith, Engaging Characters.
[17] Uma exceção é a discussão de se
pode o filme filosofar, um tópico explorado amplamente pioneiramente por
filósofos; ver, por exemplo, Thomas Wartenberg, Thinking on Screen.
[18]
No cinema de não-ficção, ver Noël Carroll, “From the Real to Reel: Entangled in
Nonfiction Film”; e em fenomenologia de tempo e espaço, ver Alexander Sesonske,
“Cinema Space” e “Aesthetics of Film, or A Funny Thing Happened on the Way to
the Movies”. Outros
trabalhos por filósofos que adotam maior abordagem fenomenológica incluem Noël
Carroll, Comedy Incarnate; e Allan
Casebier, Film and Fenomenology.
Música de cinema também foi discutida a respeito do que não discutirei aqui:
ver Jerrold Levinson, “Film Music and Narrative Agency”; e Peter Kivy, “Music
in Movies: A Philosophical Equiry”.
[19]
Carroll, Theorizing the Moving Image.
Nenhum comentário:
Postar um comentário