segunda-feira, 30 de maio de 2016

O que todo filho-de-papai deve saber

A respeito de Os boas-vidas, de Federico Fellini

por: André Martin


Mais que qualquer outro no mundo, o cinema italiano merece que lhe seja dada atenção cuidadosa ao conjunto de seu pessoal. Porque não passa ano sem que, entre a multidão de seus críticos, roteiristas e assistentes obscuros, se revelem cineastas autênticos. Ao atribuir ao ultimo filme de Fellini, I Vitelloni, O Leão de Prata, o júri da XIV Mostra Cinematográfica de Veneza o sinalizava à nossa impaciência. De Roma, Cidade aberta a Paisà e ao Caminho da esperança, este jovem roteirista se mostrou misturado em um bom número de obras-primas. O assistente preferido de Rossellini tornou-se um dos melhores roteiristas italianos, e passou há dois anos para a direção. Seu primeiro filme, Abismo de um sonho, fez uma paródia dos romances sentimentais para garotinhas, o segundo, seus Vitelloni premiados.

Contudo, uma bruma densa envolvia o filme. A crítica, pouco loquaz, foi bastante relutante. O filme não foi anunciado. Ele levou suas ultimas semanas para compreender que eles não tinham visto. Frente à miscelânea extenuante de filmes que compõem um festival, os menos corajosos não ousam lançar sua vigilância para mais que três ou quatro filmes. E a cada vez uma obra-prima permanece escondida. Como Comicos, este ano em Cannes, I Vitelloni mal situado no programa, concorreu com outras projeções, o que o fez passar despercebido, e por muito tempo, sem a fúria dos produtores, que, eles, tendo visto o filme, o estimavam. Presente em janeiro no corpo da Jornada de Cinema de Aixen-Provence, o filme recebeu uma acolhida entusiástica.


O filme se desenrola em Pesaro, pequena cidade num balneário do Mediterrâneo. A ação segue as idas e vindas de desempregados, as caminhadas pelas praias, os pés sobre as areias úmidas, os projetos abandonados, e as grandes bobagens de cinco pessoas a casar: Alberto, Moraldo, Fausto, Leopoldo e Ricardo. A intensão destes jovens indecisos e de seus semelhantes, Fellini à mostra ao jeito “Vitelloni”, que grosseiramente quer dizer “boas vidas”, um sentido novo que não se encontra no dicionário. Vitelloni sublinha a semelhança que há entre estes jovens parasitas, passando seu tempo a tirar dinheiro dos bolsos de seus pai, mãe e irmãs, arrastando suas vidas de um café para outro, e os “boas vidas” que continuam a sugar o leite de sua mãe bem depois da idade do desmame.

Em se dedicando aos personagens um tipo de exploradores, os bons a nada, Fellini faz obra de narrador original, porque faz uso de um tablado romântico da vida em província que ainda não encontrou sua expressão que não fosse literária. Ele não quis seus jovens preguiçosos muito desajeitados, idiotas, miseráveis ou criminosos; ele os fez de algum modo indolentes e fracos. Também seu sonho de partir, seus inúteis empreendimentos, participam de uma idade que quase todos conhecem: esta passagem indecisa que liga a ultima falha do bacharelado à uma situação enfim estável. Pela qualidade de sua história, o equilíbrio e a mestria passivas do conjunto, este filme escapa às categorias comerciais, como as qualidades provocantes que permitem coroar e definir uma obra. Com um sentido cinematográfico eficaz e surpreendente, Fellini dá uma vida simples e real a suas personagens. Suas caricaturas poderiam ser ferozes, mas ele os rodeia de uma simpatia sem indulgência. O casamento forçado do belo Fausto, a frouxidão de Alberto, os projetos literários de Leopoldo, e a fuga uma bela manhã de Moraldo, são descritas com um brio contínuo, uma profundidade de detalhes melhor que improvisadas, talhadas das próprias vidas dos intérpretes com uma segurança destiladora. Fellini sabe que em um perímetro dado, mesmo que lhe tenha sido imposto, viver sobre o terreno, e com uma infinita paciência (que seu produtor também deve partilhar), pode encontrar os temas e os meios de criação. Porque será o interprete que serve ao personagem. A jovem e ingênua Leonora Ruffo petisca sem parar os sanduíches durante as filmagens. Esta gulodice perpétua torna-se um detalhe da personagem de Sandra e o pretexto de uma cena. Como no filme, Ricardo Fellini, irmão do realizador, vende carros e utiliza sua bela voz no concurso de beleza. Leopoldo Trieste, o poeta do grupo, realmente escreveu tragédias em verso.


Melhor falar menos do método de Fellini, que é própria de todo neorrealismo italiano, que a forma especial do apetite criador do novo realizador. Porque Fellini continuará a utilizar plenamente as características de seus intérpretes, sejam eles seu irmão, um paisano calabresa, ou Anna Magnani (se ela virar uma de suas intérpretes um dia). Fellini irá certamente continuar sua carreira sobre o mesmo ritmo prudente e assegurado. Mas este admirável analista deverá abandonar um pouco estes truques de roteirista. Certo, se suas qualidades originais tem feito recusar o filme por todas as maiores casas de distribuição italiana, a trama aparente, e o suspense final podem permitir aos Vitelloni tornarem-se o grande sucesso cinematográfico do ano, justamente depois de Don Camillo. A progressão intrometida que nos permite seguir as personagens e de corresponder com um trabalho de romancista a forma do filme, retira o brilho da realidade. Contudo, a terrível ressaca de Alberto poderia ter sido mais bela se fosse mais anônima, como a partida de Moraldo teria sido mais forte se tivesse acontecido com um dos garotos da cidade e não com uma das personagens principais. Em Dimanche d’Août, Lucianno Emer soube melhor preservar a pureza documental de seu filme graças a um prudente unanimismo. Paisá e Les Fioretti, de Rossellini são filmes esboços cortados. A sucessão de sequências do music-hall, a ceia depois da representação e a caminhada à beira do mar de Leopoldo e do velho comediante, sem dúvida as mais belas, se tornam justamente alguns dos momentos de pior desocupação dos inúteis e por consequência do drama. Sua força é maior porque ela pulsa na autenticidade sem explicação em uma secreta competência de Fellini nos decadentes passeios provincianos que há algum tempo o acompanha, quando ele escreve as cenas de Aldo Fabrizzi.

Toda afirmação do quadro dramático à sucessão de coletas a respeito da vida de Fellini sublinha uma certa desintegração. Ainda que estes blocos puros, conectados por transições puramente sensíveis e rítmicas, tocando uma coesão, uma grandeza reescrita a Donskoi e Dovjenko, uma matéria cinematográfica esquiva como aquela de Vigo e Wheeler que, escapando aos comentários, suporta as enumerações estupefatas.

Todas as maneiras que encontraram os realizadores italianos, de Rossellini a Guiseppe de Santis, para contradizer e trazer diferentemente os princípios do neorrealismo, Fellini traz novos modos extremamente originais, sem dúvida e felizmente intraduzíveis em linguagem crítica.


(publicado originalmente em Cahiers du Cinéma, n° 35, maio de 1954)

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