Stanley Kubrick ficou
famoso por ser um cineasta cuidadoso com detalhes. Este cuidado transformou-se
em obsessão, unindo ao imaginário que o cerca as histórias de bastidores que
levam até o encontro com a perfeição vista em seus filmes. Kubrick filmava muitas
tomadas, dizem. Chegava a filmar cinquenta tomadas até alcançar o que queria.
Passava anos a selecionar seu material. Tudo isso é bem conhecido do público
que o admira, e em parte o admira exatamente por esta característica. Mas esta é uma faceta do cineasta conquistada
a partir de seus filmes maiores, seus filmes de grande orçamento, especialmente
depois de ter conquistado notoriedade com Spartacus.
Neste breve texto,
pretendo fazer uma incursão por um Kubrick menos conhecido do público que tanto
o admira, desbravar um território fértil: trata-se do nascimento de um grande
artista. A sensação que se tem assistindo aos primeiros filmes de Kubrick é a
de adentrar o ateliê de um artista e encontrar o material com o qual ele, mais
tarde, veio a produzir suas grandes obras. Isso porque suas obras de início de
carreira são marcadas por características sensivelmente diferentes daquelas que
viriam a caracterizar suas películas mais conhecidas. Eram filmes de baixo
orçamento, beirando o amadorismo, e num caso especial sendo amador. O que não
significava desordem.
Kubrick deu início à
sua vida profissional como fotógrafo para revistas e jornais. O contato com a
câmera e a sua potência plástica e expressiva foram logo reconhecidas. É esta
capacidade de expressão imagética que se destacam nos primeiros filmes do
cineasta.
Antes de qualquer
coisa, estabelecerei quais são os filmes que chamo de “primeiro Kubrick”. São eles: Fear
and desire, Killer’s Kiss, The Killing, e Paths of Glory. Todos eles realizados ao longo da
década de 1950, todos eles produzidos independentemente, tomados pela força de
um jovem realizador que enxergava a necessidade de se expressar por meio das
imagens em movimento. Vale pontuar que antes destes filmes, Kubrick realizou
ainda três curtas-metragens de documentário, por encomenda ou por ideia
própria, o que garantiu sua sobrevivência enquanto cineasta.
Já em Fear and Desire, talvez o mais irregular
dos filmes de Kubrick e certamente aquele de que ele menos gostava, é possível
enxergar a competência do realizador de 2001.
Numa floresta, os militares que conseguiram escapar retornam para encontrar
aqueles que deixaram para trás. Dificultando sua busca se encontra uma densa
neblina cobrindo a floresta. As imagens são fortes: não por conta de uma agressividade
mais tarde encontrada em Clockwork Orange,
e sim devido ao estado de consciência em que se encontram aquelas personagens
(a neblina não só marca a impossibilidade de seu reencontro com os que se
perderam, mas também com relação ao presente – a falta de sentido de uma
guerra). Mais marcante que a cena da névoa é a imagem em contraluz do soldado
Sidney, garoto que perde a lucidez em meio à floresta e que é encontrado no
meio do rio, vagando, vivendo como que numa realidade paralela. O rio, caminho de
mão única, é a impossibilidade de retornar e concertar o que foi feito no
passado. E certamente aquela personagem foi afetada por aquilo que lhe
obrigaram fazer. Ela não mais possui uma identidade, daí a contraluz.
Tardiamente lhe identificamos, e há algum tempo já o tratávamos como morto. É
isso o que a guerra faz.
Colocar suas
personagens num cenário narrativo em que elas estejam à beira do que existe de
mais primordial, sua existência, parece ser caro a Kubrick. Os filmes de guerra
servem muito bem a este propósito. O soldado na guerra vive sempre em luta por
aquilo que é primordial, a manutenção de sua vida. Claro que servindo a outros
interesses, mas o que o soldado faz num campo de batalha é, acima de tudo,
manter-se vivo. E é mantendo-se vivo que atende aos interesses do outro que
para lá o mandou. Mas este não é um tema particular dos filmes de guerra, como
também do filme noir.
Neste gênero nascido
nas telas do cinema estadunidense da década de 1940 – certamente um período
obscuro para se viver – o embate pelo básico da vida se mostra cotidiano, nas
relações humanas na cidade. E em Killer’s
Kiss, Kubrick põe seu espectador em contato com seu protagonista: um
boxeador profissional, relativamente bem conhecido pelo que comenta o
empregador de uma vizinha que logo diz quem é o rapaz. E que outra profissão
mais singular para representar esta batalha cotidiana pela sobrevivência na
metrópole que não a de boxeador (que Kubrick já havia acompanhado em uma de
suas curtas, Day of the Fight)?
Fazendo a seleção de
uma das cenas deste filme, certamente a mais valiosa é aquela que dá desfecho
ao filme: a luta do boxeador Davey Gordon com Vincent Rapallo, o homem que
raptou a mulher por quem Davey se encontra apaixonado (sua vizinha de janela).
Após encontrar o local do cativeiro e conseguir escapar dos capangas de
Rapallo, Davey se esconde numa fábrica de manequins para lojas de roupas. Em
meio àquele amontoado de bonecos, as duas personagens travam uma luta, com
direito ao uso de um machado (mais tarde utensílio utilizado em The Shining). Os corpos são confundidos
com os bonecos. Os bonecos são acertados quando se erra o alvo no corpo vivo. A
batalha provoca uma reflexão: Davey luta para sobreviver, e agora sua vida
corre risco de fato, e em meio àqueles bonecos é como se ele fosse um deles,
estivesse constantemente a lutar contra o mundo, numa repetição de seus atos.
Tem que lutar por tudo, e tudo é conquistado por meio da luta: o dinheiro que
ganha é sobre o ringue, para ganhar a garota, deve impedir seu sequestrador de
tê-la. Davey é como um acessório para algo maior.
No mesmo caminho dos
filmes noir, está The Killing. Nele,
um grupo é formado para assaltar o clube de apostas em corridas de cavalos. É
dia de aposta alta e no local haverá muito dinheiro. Mais uma vez a trama de
sobrevivência buscando o básico, mas desta vez nem tão explícito assim. Isso
porque não há uma luta pela sobrevivência direta, ainda que as personagens se
envolvam com o maior dos crimes, inevitavelmente. A grande cena do filme,
aquela que mostra a força de um realizador, é a final. Johnny Clay (Sterling
Hayden, que viria a trabalhar com Kubrick mais uma vez em Dr. Strangelove), recolhe o dinheiro do assalto e se encontra com
sua noiva para juntos partirem em viagem. Todo o dinheiro que conseguiram pegar
do jóquei se encontra numa mala. Nervoso com sua fuga, e por não ter conseguido
ficar com a bagagem junto a si no avião, Clay observa o carrinho com as malas
dos passageiros passando ao longo do asfalto do aeroporto em direção ao avião.
Ao desviar de um cachorrinho que invadiu a pista, a mala cai da pilha do
carrinho. A mala então se abre e seu conteúdo voa, impulsionada pelas turbinas
dos aviões. A imagem é fascinante: o dinheiro escapa da mala e voa, as pilhas
que se formaram no chão começam a desaparecer, assim como as notas de dinheiro
aparentam desintegrar-se no ar.
O dinheiro é fugaz,
como o rio aparenta ser. É uma materialidade imaterial. É algo cujo sentido é
dado por quem participa de uma sociedade que lhe dá significado. E esta coisa
simples, o monismo ideia-matéria que se encontra numa nota de dinheiro, regra a
vida das pessoas. Direciona sonhos e o futuro das pessoas. Diz se devem elas
viver ou morrer, se devem permanecer em sua liberdade aparente ou ser presas.
No filme de Kubrick, o dinheiro voa para que o crime não tenha seu final feliz.
O bandido humanizado, com amigos e uma paixão, que nutre sonhos, não pode ter
um final feliz. Clay aceita seu destino de ir para a cadeia. Compreende que a
vida é um fluxo, e que o dinheiro que se desfaz no ar era parte de uma
empreitada muito além de suas capacidades. Chegou perto do sucesso. Mas por
mais que a narrativa de The Killing
retorne para mostrar o que as personagens faziam em horas passadas, o que
acontece não pode ser modificado. Como no rio de Fear and Desire.
Paths
of Glory leva Kubrick de volta aos filmes de guerra. Desta
vez não mais com um roteiro original, e sim com um livro, como havia feito
antes em The Killing e como voltou a
fazer em todos os filmes a seguir. Não mais uma produção de baixo orçamento, Paths of Glory possibilitou a Kubrick
ser Kubrick: a possibilidade de alcançar os resultados imaginados, de realizar
planejamento cuidadoso, de ter alguns grandiosos cenários para poder filmar.
Filmado na Europa, a obra nos apresenta um batalhão francês em plena I Guerra
Mundial. O que mais chama atenção neste filme são as muitas memoráveis imagens
a respeito da humanização em plena guerra. A garota a cantar ao final numa
língua que os soldados não entendem, mas por ser a língua universal da música,
todos são embalados pela melodia; o assassínio dos soldados condenados; as
cenas de batalha.
Dentre as cenas no
campo de batalha destaco uma: três militares são selecionados para atravessar o
campo durante a noite e espiar o campo inimigo, que deveria ser conquistado por
eles. Como insetos eles rastejam por logo espaço, subindo e descendo buracos de
bombas, escondendo-se para não ser vistos pelo inimigo à espreita. São animais,
antes de tudo. Agem por instinto. Não à toa, o nome do território a ser
conquistado é o “formigueiro”, ou “colina das formigas”. Os militares atuam
como insetos a rastejar pelo chão. E são como animais que eles agem,
institivamente, buscando a salvação por meio do que há de mais primal quando
mandados a uma situação brusca de sobrevivência. E é num susto desses que o
sargento posto para coordenar a inspeção do território, atira uma granada que
termina por matar seu companheiro de vigia. Ele não o sabia, agiu
animalescamente. É o que fazem os humanos quando atiçados ao extremo, quando
postos em situações que lhes cobram seu máximo. O limite da sobrevivência.
Tópico que Kubrick abordou em todos seus filmes até então, chegando ao seu
ápice com este – que vai um pouco além, caracterizando-se obra-prima.
O que une a
cinematografia de Kubrick é a descoberta pelo que há de instintivo no humano.
Isto que faz as pessoas agirem, que faz as pessoas reagirem, seu lado
animalesco em constante evolução (que não desconecta o humano de seus
primórdios). As personagens de Kubrick são postas contra a parede e provocadas.
E quando se veem sem mais recursos, tendem a atacar. A arma leva à construção
de naves espaciais, mostra 2001, mas
também leva ao que há de mais absurdo: o intelecto que cria também destrói. A
habilidade do cineasta é exatamente a de saber como mostrar isso em cena. O tom
foi encontrado com o tempo: desde a cena exagerada de Sidney na floresta com a
prisioneira até os prisioneiros aguardando sua execução há grande diferença.
Mas desde os passos iniciais já estava presente o que de essencial se podia ver
em sua formulação. Encontrando o que há de primordial no homem, encontra-se
também um caminho de melhoramento, e consequente aperfeiçoamento da humanidade.
Longe de servir como autoajuda, os filmes de Kubrick trabalham como afirmações.
Como dizia Truffaut, e mais tarde Merleau-Ponty: o importante no cinema não é
formular ideias, mas mostrar os fatos. E é através dos olhos do artista que
surgem os questionamentos.
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