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quinta-feira, 15 de março de 2018

Parece mágica, mas é cinema

Sobre Hugo Munsterberg e o primeiro tratado dedicado ao estudo da arte do filme

Originalmente publicado em espanhol em Revista Zahir


            Tempos atrás, quando Theda Bara era uma das estrelas mais conhecidas e quando Hollywood ainda não era um lugar nos EUA, um europeu ensinando filosofia e psicologia foi contratado pelos estúdios Paramout. Deslumbrado com as muitas possibilidades ainda por desbravar da arte do filme ainda a dar seus primeiros passos, ele começa a escrever. Não filmes, porque não era um artista. Fora contratado pela gigante do entretenimento para fazer filmes educacionais. Como bom acadêmico, desenvolveu suas ideias sobre este novo meio de expressão.
            Deste encontro do acadêmico com a arte do filme surgiu o primeiro tratado sobre cinema. Mas a arte não é nele chamado de cinema. Não, este é um termo que os franceses utilizam e que exportaram para alguns outros idiomas mais próximos. O filósofo e psicólogo, com um pé no pragmatismo de seus colegas de departamento em Harvard e outro pé no kantismo de sua educação lá na terra natal, Hugo Munsterberg escreve e publica em seu derradeiro ano The photoplay, a psychological study. Um estudo que se divide em duas partes, a primeira para comentar o aspecto psicológico do meio, outro para falar do aspecto estético.
            Por muito tempo os escritos de Munsterberg foram esquecidos pelos estudiosos dos filmes. Mas a abordagem que ele desenvolve em seus escritos é uma das mais persistentes nos estudos de teoria de cinema – tal como aponta Noel Carroll em Theorizinhg the moving image. Como bom psicólogo, Munsterberg traça a analogia mente/filme, que podemos ver ainda na teoria de Jean Epstein e em certa medida em Deleuze.
            Chegamos assim ao ponto chave de nossa breve incursão pelo mundo cinematográfico de Munsterberg. Como é feita esta analogia entre a mente e o filme? Num dos capítulos de The photoplay o filósofo retoma um dos temas mais estudados pelos autores de seu tempo: a atenção. Separa a atenção em dois tipos: atenção voluntária e atenção involuntária. Ambos os tipos podem ser encontrados nas artes teatrais, e também no cinema. Com o cinema algo de muito peculiar acontece.
            Antes de chegar à conclusão, que seria a peculiaridade da representação cinematográfica da atenção, desvendemos o que significa estes dois tipos de atenção.
            Primeiro, a atenção voluntária. Esta acontece quando selecionamos o caos do mundo externo em direção a uma conclusão que queremos tomar. Nossas percepções são direcionadas para a busca de algo em específico, porque nosso intento busca esta especificidade no mundo externo. Tudo aquilo que não satisfaz ao nosso interesse é assim descartado para que nos foquemos apenas naquilo que vemos como sendo mais importante. Aceitamos o que vem de fora apenas se nos fornecer matéria para aquilo que estamos a buscar. É o caso da leitura deste texto. Seus olhos, leitor, perifericamente conseguem captar todo o entorno, mas sua atenção, seu esforço mental, focaliza apenas as palavras que está a ler. São elas que lhe atraem e não os objetos dormentes sobre a mesa.
            Segundo, a atenção involuntária. Para esta já não estamos com uma ideia pré-concebida e não buscamos ordenar as impressões ao nosso redor. Acontece quando algo que é externo a nós chama nossa atenção com muito mais força do que podemos controlar. Por exemplo, se enquanto lê estas palavras o barulho de uma explosão ou de uma pancada muito forte retire seus olhos destas letras. Se alguém derruba um copo em outro cômodo da casa, neste momento, nossa atenção se voltará por completo para aquele ponto. Não porque queremos, porque não esperamos que o copo vá ser derrubado. Daí ser chamada de involuntária.
            As artes possuem muitas maneiras de trabalhar com estes dois tipos de atenção. No teatro, certamente o ator que fala chama mais atenção que aquele que está em silêncio, a não ser que a fala seja direcionada a alguma outra personagem no palco. Mas no caso do teatro, a atenção permanece sendo direcionada pelo próprio espectador. Uma atenção voluntária. Porque se queremos nutrir-nos ao máximo desta experiência, devemos seguir os passos que os artistas nos apresentam – a não ser em casos de obras pós-modernas. Se vou ao teatro com maior interesse em assistir à performance de um dos atores em especial, posso abandonar a ação e ficar a espiá-lo enquanto ele não é centro da cena.
            Poderíamos dizer que este é o caso também do primeiro cinema, aquele feito aos primórdios da arte do filme. Quando a câmera de filmar permanecia em frente ao cenário – no que é chamado, não elogiosamente, de “regente de orquestra” – observando os atores à distância, buscando fotografá-los de corpo inteiro. O cenário aparece em aberto para o espectador que pode muito bem distinguir os diferentes atores e pode direcionar seu olhar para diferentes pontos do quadro. Olhar para o que acontece fora do centro da ação, longe de onde acontece o conflito.
            Mas no caso deste cinema temos uma particularidade. Porque o cinema, diferente do teatro, ao filmar possui apenas uma perspectiva daquela ação. E assim o autor de uma película pode filmar de modo a direcionar o olhar do espectador por meio do reposicionamento dos atores no cenário. Como escreve David Bordwell em Figuras traçadas na luz, são muitas as possibilidades estéticas que o jogo de cobrir e revelar tem a fornecer ao cineasta. Um grupo de personagens surge numa sala, e todos eles cobrem a entrada. Movem-se em direção a uma mesa e junto com eles levam nossa atenção. Permanecem de pé a observar algo sobre a mesa, quando o herói adentra em cena. Apesar da falta de obviedade de uma cena como esta, trata-se de um jogo de encenação muito eficaz para direcionar o olhar do espectador. Porque nosso olhar e nossa atenção caçam os movimentos, a ação. Algo que possa alimentar nosso interesse.
            Munsterberg está mais interessado em outros truques possíveis com o cinematógrafo. E, tal como Méliès, encontra-se fascinado com as possibilidades da trucagem. Os efeitos possíveis pelos cortes, os saltos temporais – como Eisenstein escreveu pouco depois, antes somente possíveis pela literatura. O cinema, num piscar de olhos, é capaz de saltar dez, vinte anos no tempo. Se inserir na mente de suas personagens e concretizar seus sonhos, suas lembranças. Quão maravilhosa não é esta máquina que consegue nos apresentar nossos próprios sonhos! Fazer fadas dançarem sobre as mãos de um homem, como antes era possível somente nos mais fantásticos delírios!
            Dentre estas trucagens, a que mais chama atenção de Munsterberg no capítulo citado é o close-up. Por meio dele é possível aumentar imensamente alguns detalhes da cena. Fazer com que todo cenário desapareça na escuridão da sala de projeção. Quando o homem toma o revolver de cima da mesa, vemos com clareza seu gesto. A mão cresce e a vemos em detalhes. Está ali em toda agonia e efervescência do momento que leva àquela ação.
            “É aqui que começa o cinema!”, vibra Munsterberg. Quando a mão cresce e toma toda a tela. Quando o cinema toma para si as possibilidades que antes somente eram possíveis para a mente humana. Tal como selecionamos com nossos olhos aquilo que nos é mais caro ver, também faz o cinema por meio do close-up. O cinema externa esta que é uma competência da mente humana, apenas. Está transposto para o mundo da percepção um ato mental. Nada mais podemos ver dentro da escuridão da sala de cinema, na tela nos é dada apenas a mão a segurar o revolver.
            Este elogio de Munsterberg ao close-up é próprio aos autores dos primeiros tempos. Autores fascinados com as diversas capacidades de expressão por meio do filme. E quão fantástico não deve ter sido para este psicólogo e filósofo sentar-se a uma sala de cinema e descobrir o close-up! Esta técnica que para os espectadores contemporâneos parece a mais comum das técnicas cinematográficas, mas que possui a competência de dar vida às menores coisas (aqui numa evocação dos escritos de Epstein).
            O caso é que a analogia entre a mente e o filme não termina somente na atenção. Como já colocamos, o filme é capaz de saltar no tempo, tal como podemos fazer com o auxílio de nossa memória. Daí que a obra de Munsterberg tenha sido retomada em meados da década de 1970. Àquela altura, muitos de seus leitores traçaram paralelos entre os escritos de Munsterberg e os filmes que estavam a surgir nos anos 1960. Alguns chegaram a tratar Munsterberg como profeta de tais filmes.
            Não é o caso. Não devemos tratar Munsterberg como um profeta do “cinema moderno” (se é que existe tal coisa). Os filmes de Alain Resnais e Fellini se assemelham em muito a seus escritos, mas não devemos nos esquecer de que em seus escritos Munsterberg também se posiciona contrário aos experimentos que levaram ao cinema falado. O que não era uma particularidade sua, muitos dos teóricos de cinema até os anos 1930 enxergavam o som como uma adição que decairia a qualidade estética das imagens.
            Retomar a analogia mente/filme de Munsterberg hoje é muito interessante para os estudos de cinema. Os escritos sobre a arte do filme se encontram em larga medida embriagados pela ideia de que o cinema oferece uma réplica do mundo real. Os ideários do realismo, que conclamam os deveres morais dos realizadores em representar seus filmes da forma mais realista possível. A analogia filme/mente abre as portas para um pensamento de cinema e de formas de se expressar por meio do cinema mais amplo, dentro deste espectro. Tal como fizeram Resnais com seu L’anée dernière à Marieband e Fellini com seu 81/2.

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Noite e Neblina de Alain Resnais por Jacques Doniol-Valcroze


Noite e neblina é um filme que, a princípio, não requer nenhuma crítica de ordem cinematográfica. A matéria mesma da qual é tecido este oratório fúnebre pede respeito, uma espécie de silêncio cuja ruptura poderá, merecidamente, ser considerado como sacrilégio. Me explico. Suponhamos que, cinematograficamente falando, Noite e neblina seja um filme ruim. Não é absurdo imaginar o fato que, mesmo em posse dos mesmos documentos e fornecido das mesmas possibilidades materiais, outro realizador que não Alain Resnais resultaria em outra coisa que uma simples adição de partes de horrores ou, o que seria pior, a uma acusação de ódio, próximo à demagogia. Mesmo teria sido, se nos permite a criticar este filme, a simples presença das imagens suscitar uma soma de sentimentos ou a crítica que não teria lugar.

Poderia, então, ficar dizendo que Alain Resnais fez evidência com o máximo possível de sobriedade, de discrição e de elevação do pensamento. Seria, portanto, um falso pudor e este filme em toda sua verdade, seria o primeiro de uma franquia. É importante, então, a minha vista, de saber também que Noite e neblina é chefe de obras do filme de montagem que entre os documentários que a empregam, as passagens filmadas (a cores) na Polônia, o comentário de Jean Cayrol e a música de Hans Eisler, Resnais realizou uma extraordinária osmose a qual não é mais do que uma canção única e da qual é incrível o paradoxo, que se satisfazer em sua inelutável progressão. São assim os suplícios de Goya, ou as páginas cruéis de Kafka. Noite e neblina não faria esta força se não fosse antes uma grande obra de arte, o mais petrificante "esfolado" de todos os filmes-testemunha, se o caminho da gestação não passasse pela abstração quase indiferente da composição antes de atingir seu objetivo ou em seguida mais nada contar que os insondáveis fenômenos, o retrato inesquecível do monstro.

*

Arte do esquecimento e do tempo que passa, o cinema de repente em lembrar do sangue e do sofrimento, nos lança à face do filme da memória e do tempo suspenso pela eternidade. Eu já disse, o primeiro reflexo é o silêncio, a primeira reação, a impossibilidade de dizer duas palavras, tão grande é a impressão que nove milhões de palavras não podem fazer justiça, serão indecência e respeito perdidos; mas só o silêncio chama o silêncio, Noite e neblina é o trovão e a tempestade e, mesmo com seu próprio ruído ele sufoca sempre os ecos que fará, então ele mistura a denúncia com seu grito com a denúncia e seu grito.

Noite e neblina é o filme do escândalo e do despudor. Chega a este degrau de horror, de baixeza e indignidade do homem, quase sempre, prefere se silenciar; pelo silêncio manifesto sua recusa admite, não será em condenar, que este carrasco é seu irmão e que ele tem uma mãe. Se lembrar de sua existência, é reconhecer que é da mesma raça e que, de nossa indiferença ou de nossa covardia a ignomínia dos massacres, existe apenas uma terrificante mas simples graduação no degrau de culpabilidade, que não tem nem Deus nem o amor desta terra de desolação ou inocência, por milhões, poderiam ser torturados e morrer na vergonha e humilhação sem que a terra trema, todos os vulcões acordem e o sol exploda. É porque, durante e depois, o deportado é vítima. É porque aquele que voltou não é um objeto de constrangimento por seu semblante, portador da visão de uma luz insuportável: ele nos olha e nós sabemos que ele perdoará, talvez, a seus executores, mas não a nós, não na terra, não aos vulcões, não ao sol.

*

Noite e neblina nos mostra que além do horror e da atrocidade, ainda há o horror e a atrocidade. Chegado a este ponto extremo da degradação, há mais para se salvar do nada que a fé cega no homem e a fazer todo o caminho no sentido da esperança. Esta prova desesperada de humanismo retorna para provar a santidade dos corpos pela existência do câncer e a isto descobrir: havia bondade nos homens, a coragem, a dignidade, a inocência das crianças, a graça das mulheres, a serenidade dos velhos. Depois da terceira visão, Noite e neblina, torna-se a história perturbadora da ternura e do amor. Todos estes corpos confundidos amavam-se como se estivessem vivos, porque eles não nos deixarão mais.

[Cahiers du cinema, n° 59, p. 37, 38)

quarta-feira, 23 de setembro de 2015

O esquecimento começa pelo olho

ensaio sobre Hiroshima, meu amor de Alain Resnais

Se Hiroshima, meu amor custou a Paulo Emílio sete artigos quando de seu lançamento em 1959, nossa tarefa aqui no blog está longe de se encerrar. Mas, diferente do grande crítico, necessito de longos tempos para poder pensar o filme, e de muitas sessões para que a obra fique cada vez mais clara. Desta vez a questão que me move em meio ao filme é: por que se afastar catorze anos dos acontecimentos narrados? Acessá-los somente pela memória de seus personagens?

Façamos, antes, uma tarefa de rememoração do filme. Em Hiroshima, meu amor temos um casal protagonista. Ela, uma atriz francesa que está na cidade título a filmar uma obra antiguerra. Ele é um arquiteto japonês. Passeiam por aquela paisagem que ficou famosa em todo o mundo pelos motivos errados: a bomba atômica. Mas quando a guerra aconteceu, nenhum dos dois lá estava. As memórias dela, mais que as dele, tomam o filme, que retorna a Nevers para encontrar ela quando adolescente que teve um caso com um soldado das tropas inimigas.

a encenação: as crianças atuam para a câmera
O passado destes dois personagens é marcado pela guerra. E, no cenário que marca o fim definitivo da guerra, eles se encontram anos depois. Aquele local significativo lhes passa a equivocada ideia de que possuem a lembrança daquela época. Na verdade, passam a ele. Ele, o arquiteto, constantemente a lembra: você não viu nada em Hiroshima. Mas e os filmes, os metais retorcidos, os pedaços de pano e de pele dos mortos? O que são eles se não lembranças daquele fato? Mas não, ela (e nós) nada viu (vimos) em Hiroshima.

Os museus expõem artefatos que podem ser ditos como marcas deste passado. Eles podem servir de lembrança, o mundo que nos tenta mostrar que o passado ainda está aí: Manoel de Oliveira costuma fazer filmes assim. Em Hiroshima de Resnais encontramos um ponto diferente. É verdade que o passado está aí, mas a memória é traiçoeira. Ela pode nos passar impressões equivocadas. Como aqueles filmezinhos feitos pelo museu para dar a impressão de que, sim, o espectador (turista) viu o que aconteceu em Hiroshima. Mas não, você não viu nada em Hiroshima.

Numa das ações mais curiosas, Resnais abre o filme mostrando-nos um hospital. A mulher - sem nome, pode ser qualquer um - diz ter visto um hospital em Hiroshima. Sim, ela viu um hospital em Hiroshima. A câmera passeia por seus corredores. A câmera vê as enfermeiras em frente às portas. Vê os pacientes deitados nas camas, convalescendo. Será que devemos acreditar nestas imagens? É curioso que mais para frente a mulher venha se revelar enquanto atriz e vestir-se de enfermeira. Ela interpreta uma enfermeira naquele filme que a levou para Hiroshima. Teria ela, de fato, visto um hospital ou seria parte do set de filmagem? Lembro-me de ter visto um hospital em Hiroshima. Mas não, você não viu nada em Hiroshima.

Como Glauber Rocha lembra em O século do cinema, Resnais fez para o cinema em Hiroshima o que Proust fez para a literatura. A narrativa de fluxo de consciência permite ao personagem-narrador voltar ao passado de acordo com os estímulos que lhes são dados. É assim a mulher interpretada por Riva no filme de Resnais constantemente retornará a este passado. O passado se alonga no presente, já diria Henri Bergson, filósofo que inspirou Proust. O passado ainda atinge a personagem de Riva. Ela precisa prestar contas com estes acontecimentos que ficaram para trás e que permanecem tão vivos. E eis que surge a confusão do que seria real ou não. Ela não viveu Hiroshima quando da explosão da bomba, mas tem essa impressão causada por memórias artificiais - as imagens de museu. Mas possui a memória do que viveu em Nevers, interior da França.


Este passado da personagem no interior da França é retomado por Resnais. A relação amorosa da francesa com um soldado nazista é representada como qualquer outro filme filmaria. Não há nada de errado com aquilo. Trata-se de uma memória pessoal. Mais que isso, uma memória criada pelo filme. Uma alegoria sobre o amor humano. O filme volta facilmente para este passado recluso no interior da França, distante dos momentos protagonistas do passado, como a bomba atômica. Por que ele é tão resistente em voltar ao passado e ver o que aconteceu quando da explosão da bomba em Hiroshima? Num primeiro momento porque nenhum dos personagens apresentados estava na cidade quando o fato aconteceu.

Num segundo momento, e talvez o que seja mais importante: o cinema lá não estava. Para dizer a verdade, sim, ele apareceu. Ele filmou os feridos. E aí entra a discussão ética: é certo o cineasta filmar este passado - a explosão da bomba - se valendo de seus artifícios ilusórios? Resnais defende que não. "Porque o esquecimento começa pelo olho", diz um de seus personagens em texto brilhante de Marguerite Duras. Se assim é, o cinema é potencial promotor deste esquecimento. Ele nos fornece os elementos para que criemos uma fantasia do passado. E uma memória artificial de algo que não presenciamos. A diferença nos é posta logo ao início do filme: nos são mostradas imagens feitas à época e reconstituições. A primeira nos mantém ciente de que aquilo de fato aconteceu, nos é posta como dado. A segunda procura nossas emoções. "O que pode um turista fazer senão chorar?", pergunta a mulher ao falar destes filmes. É verdade, que mais podemos fazer? Mas aquela não é uma memória real. É uma ilusão. É construída com a intuição de passar ao espectador a ideia de que aquilo aconteceu, quando foi tudo criado para parecer que aconteceu.


Os catorze anos que separam a explosão da bomba de Hiroshima de Hiroshima, meu amor é feito com toda consciência que poderia ter. O cinema é capaz de voltar no tempo, e o filme poderia nos ter narrado estes fatos do passado. Mas num compromisso ético, ele não fez. Compromisso ético com a história. Com a própria humanidade. O filme não poderia ter retornado catorze anos no tempo para filmar a explosão da bomba porque promoveria o esquecimento. Somos iludidos, e o passado lá se constrói. Ou se reconstrói. O passado deixa de ser constituído de fatos para se tornar uma fábula. Resnais se distancia disso. Seus personagens (que são de Duras também) demonstram a dificuldade de lidar com passado tão doloroso. Um passado que parece ficção e que na memória pode se confundir com tal. Mas a distinção deve estar sempre clara. E este é um dever do cinema.


leia também:
Hiroshima, meu amor
Você não viu nada em Hiroshima

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

O que é a crítica de cinema, afinal?

André Bazin
O que é crítica, afinal? Esta é uma pergunta oportuna nestes tempos em que qualquer pessoa pode escrever sobre um filme, um livro ou um disco. O que é preciso primeiro apontarmos é que nem todo texto que se põe a comentar uma obra artística é uma crítica. Crítica é tão somente uma das formas pelas quais é possível escrever um texto. Se dermos um passeio rápido pela internet o que encontraremos é uma proliferação de resenhas, resumos, não críticas. O que inicialmente surge como algo positivo - a democratização do acesso à obra de arte - torna-se conflituoso: muitos desses textos não são críticas, apesar de se declararem enquanto tal. Este poder que o espectador comum ganha pode ser extremamente prejudicial à arte, já que muitos dos comentaristas possuem certa popularidade. Nesta vontade de escrever sobre os filmes ou livros de que tanto gostam, os chamados "críticos" da rede assumem um trabalho abjeto iniciado pela mídia impressa: o trabalho abjeto de se dar uma nota. Por que dar nota a uma obra artística? Qual o sentido de objetivar a qualidade da obra numa mensuração quantitativa?

O primeiro aspecto que devemos abordar aqui é a subjetividade. Não do artista, mas do espectador. Sim, porque muitos destes textos criados para a internet partem de uma concepção rasa do que seja arte, baseada em muitos pré-conceitos e lugar-comum. Destes pré-conceitos um muito comum diz respeito à apreciação da obra, a obra enquanto evocativa de sentimentos. É verdade que um dos papeis das artes é provocar no espectador sentimentos, mas será que devemos basear uma crítica em minhas preferências pessoais? Quem sou eu para impor meus gostos sobre os outros, ou até mesmo, desmerecer determinadas obras porque eu não gostei dela? A crítica não pode descair para o lado sentimental de um espectador. O que eu gosto pode ser diferente do que você gosta. No filme Crítico, Kleber Mendonça entrevista um profissional da área que é certeiro em seu ofício: o trabalho do crítico é encontrar a tese do autor e ver se ele deu bom tratamento à ela. Podemos concluir com isto que o trabalho do crítico de análise do filme é objetivo? Sim.

Paulo Emílio Sales Gomes
E porque não fazer a mensuração quantitativa da qualidade do filme já que a crítica é objetiva? Em primeiro lugar, este simbolismo ganha maior poder do que deveria. Muitos são os "leitores" que abrem uma crítica, correm a página somente para ver o número de estrelas dadas ao filme. E tudo passa a se resumir a este símbolo. Por mais que o texto elogie o filme, que procure mostrar que o filme é "bom", as três estrelas significarão ao "leitor": não, este filme não vale a pena ser visto. Mas desta formulação parte outro problema: a crítica enquanto indicação de uma obra. Muitas críticas são feitas assim, e muitos são os leitores que buscam uma ajuda "competente" na hora de escolher o filme que irá assistir. A crítica, enquanto indicação do que assistir no cinema, é um tanto pueril. É verdade que bons críticos são capazes de desempenhar este trabalho de indicação de um filme. Mas lembremos que os grandes nomes da crítica de cinema mundial escreveram suas críticas mais famosas (e difundidas através das décadas) em revistas mensais, ou seja, não como indicação mas como aprofundamento. A crítica deveria fazer um serviço posterior, de fornecer uma ampliação das possibilidades interpretativas ao espectador. Assisto ao filme, leio críticas e com o auxílio delas (não necessariamente por elas) passo a desenvolver um panorama do que me foi apresentado. Crio teorias, formulo interpretações aprofundadas. O filme passa a sobreviver pós-sessão.

Voltemos: a crítica de arte não pode se ancorar em minha perspectiva do que é ou não belo. O emocional é subjetivo, ou seja, difere de pessoa para pessoa (e até mesmo de situação para situação: se não gostei de filme A anos atrás, nada indica que venha a desgostá-lo dele hoje). O maior problema de quem defende esta ideia é a limitação interpretativa das obras a que se porá a criticar. Em especial porque parte somente da trama do filme ao invés de perceber como a trama é apresentada - lembremos o comentário no filme de Kleber Mendonça citado anteriormente. E este como é muito importante para a compreensão da arte. Toda obra artística é composta entre a forma e o conteúdo. O trabalho do crítico é analisar o trato desta relação entre o que é apresentado e como é apresentado. Ao criticar uma obra fílmica devemos perceber o posicionamento da câmera, dos personagens, como a cena montada e como isso se casa com a trama. Fazer o resumo da trama como se fosse crítica e a ele adicionar uma nota é permanecer distante da obra, ou da arte. É não ver o caráter cinematográfico de uma obra de cinema.

François Truffaut
Na arte apresentam-se formas de olhar o mundo, e junto a eles a constituição de conceitos. Na simples compreensão da trama muito disso se perde. É o caso do cinema de Resnais, em especial Hiroshima, meu amor. Por muitos vista de modo simplista como uma obra de amor, a profundidade política da obra do filme se apresenta por meio da relação pautada entre o texto e a imagem. Com a constituição da montagem e a criação de uma temporalidade própria. E aquilo que primeiro se enxerga como uma "história de amor" torna-se um filme político. E para este serviço é mais que necessário, é essencial, para um crítico de cinema o conhecimento teórico profundo do cinema. Para que assim possa saber, também, separar seu modo de ler sua arte do modo como lê outras artes - e até ser capaz de reconhecer a inovação de alguns criadores. Este foi um dos grandes equívocos da crítica de cinema da primeira metade do século passado - não toda, claro. Já que o cinema conta histórias, podemos analisá-lo do mesmo jeito que uma obra literária. Terrível engano. Hitchcock passou boa parte de sua carreira sendo posto à margem do cinema "de primeira" porque filmava filmes policiais - gênero B na literatura. Para sua revitalização foram necessários críticos que assistissem cinema, ao invés de ouvidores de diálogo.

Neste sentido há ainda aqueles grupos que embebem-se de certa ideologia e passam a realizar suas críticas partindo deste ideário. Para além de permanecer somente no campo da trama - conteúdo - esta é uma forma de fazer crítica muitíssimo perigosa para a vida de uma obra de arte. Isso porque grandes artistas que não compactuam com a ideologia pregada - digamos, o marxismo ou o liberalismo - podem ser pregados numa cruz. E este, caro leitor, não é um grupo de críticos raros de se encontrar. Eles são muitos e encontram-se em todos os lugares. Os críticos que não gostam dos filmes soviéticos porque propagandeiam o comunismo, os marxistas que não gostam dos filmes hollywoodianos (não todos, mas boa parte) que defendem o "american way of life".

Serge Daney
A crítica ideológica pode trazer pontos positivos por defender novas estéticas, mas isso é muito raro de acontecer. O ideal a uma crítico é ser aberto às obras que lhes são apresentadas independente da ideologia. Porque a ideologia pode nos fazer perder a beleza de certas obras. Claro que ressalvas são sempre necessárias de serem feitas. Caso disso é o cinema nazista. Obviamente, se defender tal ideário é condenável. Mas a beleza de certos filmes não pode ser negada simplesmente porque não compactuo com o ideário ali por trás. É o caso de Olympia de Leni Riefenstahl. O importante aqui é fazermos a defesa do bom cinema e não da ideologia A ou B - e nem ressaltá-la enquanto se faz sua crítica.

Crítica imparcial é quase difícil de encontrar - e pode-se dizer que ela não existe. Até porque sempre defendemos (adotamos) uma perspectiva. Mas o que se deve ser encontrado numa crítica é esta permanência da obra mesmo depois da sessão. E se a obra não consegue se manter viva nestes momentos posteriores, será a crítica que explicitará esta falta.

As páginas a seguir são algumas das que realizam este tipo de crítica aqui defendida:


Segue a este texto, E o papel social da crítica de cinema?,  publicado em 24 de agosto de 2015.

Talvez, o melhor exemplo que se encontre aqui no blog: Adeus, Dragon-Inn | O pão nosso de cada dia

segunda-feira, 15 de junho de 2015

Sombra de Philippe Grandrieux (sombre, 1998)


Apesar de não ser famoso no meio da cinefilia, Philippe Grandrieux vem conseguindo firmar seu nome em meio aos estudiosos de cinema. De todos seus três filmes, admito ter assistido a somente um, este Sombra. Já li alguma coisa sobre o autor vindo de algumas das mentes que vem tomando frente no pensamento de cinema nacional - a exemplo de Luiz Carlos Oliveira Jr, antigo editor da revista Contracampo. Este interesse pela obra do belga provém de uma formulação de cinema que se põe como sendo própria, a busca de uma desconstrução estética do cinema, e ainda nesse sentido, a criação de uma nova: tal como se fosse o cinema uma fênix a renascer de suas próprias cinzas. Confuso? Tanto quanto o filme de Grandrieux a um espectador que busque uma narrativa tradicional em que tudo lhe será mostrado.

O filme já abre com imagens soltas que são combinadas. Pelo conhecimento que o espectador possui de obras assistidas anteriormente, ele buscará a relação entre aquelas imagens e um sentido para estarem se sucedendo umas às outras. O que há de semelhante entre um carro que anda por estradas vazias ao anoitecer e um grupo de crianças gritando, gesticulando com algo que está fora de tela? No início do filme, o sentido desta relação se perde do espectador, demonstrando que o filme será um quebra cabeças a ser montado por quem assiste. É somente mais tarde que descobriremos que o homem que dirige o carro, o protagonista silencioso e agressivo, trabalha com teatro de marionetes: carrega-as para todos os cantos.


Há mais que isso na obra, que se constitui como um filme de suspense de assassino serial: uma narrativa vai aos poucos sendo constituída em tela. Em certo momento ela se apresentará em sua forma mais plena, com uma história que se desenrola entre uma mulher que conhece o protagonista assassino e a tentativa de fuga de sua companhia macabra. Mesmo nestes momentos, o filme permanecerá sendo um quebra-cabeças: Grandrieux obriga seu espectador a participar do filme e juntar os pedaços que ele deliberadamente coloca em tela. Mas estas partes, ao serem unidas mentalmente por quem assiste, fornece o todo.

As cenas dos assassinatos são as mais interessantes. O assassino protagonista da película tem uma tendência de assassinar mulheres. Primeiro tenta ter uma relação sexual com elas, mas ao falhar, termina por matá-las. Não há, por parte de Grandrieux, a tentativa de glamorizarão deste personagem. Ele não usa belas palavras nem belos gestos para levar suas vitimas ao seu encontro e fazer o que ele quer com elas. Em alguns casos, ele chega até mesmo a contratar prostitutas. Este não é um filme hollywoodiano em que o charme do personagem necessita ser construído para que o espectador abrace a obra; este gesto ficará por conta da estética do filme que pede nossa participação. Ainda assim é um filme-espetáculo que parte do princípio de fabulação, como escreve o citado Oliveira Jr.


Fabulação porque, assim como o espetáculo infantil assistido pelas crianças no início do filme e que somente nos é sugerido por suas reações, o perigo, o vilão que sempre surge nas histórias infantis está presente no mundo e pode atacar-nos a qualquer momento. É curioso que o assassino que trabalha com teatro tenha em sua bagagem uma fantasia de lobo, porque assim como nas histórias de chapeuzinho vermelho, ele caçará as mulheres indefesas, em grande parte, na floresta. Fora dela, ele é incapaz de segurá-las e terminar seu serviço.

A composição das cenas de assassinato são muito curiosas. São sempre compostas de sombras e de planos fechados em detalhes dos corpos que se tocam. Ao não ver os corpos por inteiro, mas somente suas partes, não conseguimos saber exatamente o que acontece em tela. Vemos movimentos, membros dos corpos que logo saem do quadro. Os gritos e gemidos são necessários para composição do restante faltante do quadro. Vemos pedaços de rosto contorcendo-se de dor ou as pernas se movendo em agonia pelo, suposto, sufocamento a que são submetidas as mulheres, e o som nos auxilia a pintar este quadro.


Estas cenas assim filmadas nos põem numa sensação de agonia frente ao filme. Ao não enxergar claramente o que acontece, vemos apenas as sombras dos acontecimentos. Estamos distantes dos fatos que a câmera poderia gentilmente nos mostrar. Enxergamos borrões, sombras, portanto, como nos diz logo o título. Sombras dançantes na tela prateada. E o que a tela nos diz? Diretamente, nada. Ela nos sugere, sempre. Prefere estes pedaços de realidade fantástica para que possamos compor o filme em nossa mente, uma escolha sempre ousada por parte do diretor e que já funcionou magistralmente na história do cinema com filmes como Ano passado em Marienbad e 2001: uma odisseia no espaço. Mas diferente destes dois filmes, Grandrieux se filia ao cinema narrativo de gênero (e seus clichês) e nos força a desenhar não somente a trama, como os acontecimentos. As sombras necessitam ser clareadas mentalmente para que as imagens possam ser compreendidas.

Em certos momentos a câmera parece descansar, como quando Claire finalmente se desliga do assassino por quem termina por se apaixonar. Com uma mulher que acabara de conhecer ela tem uma conversa a base de chá e a câmera as filma calmamente, como se fosse excerto de outro filme. Mas ao retornar para seu protagonista a câmera volta a tomar seu lado mais excêntrico, ágil, não conseguindo reconhecer as formas, as fronteiras, volta e meia ficando fora de foco: o subjetivo descontrolado do personagem. A calmaria somente vem para quando ele está longe de mulheres, mas uma vez delas se aproximando, o filme retoma a sua proposta original. Filme ousado, para espectadores em busca de uma experiência estética única.

sábado, 6 de dezembro de 2014

Travelling enquanto questão moral: um estudo em três partes

[continuação]

Texto originalmente publicado em Revista Filosofando - UESB.

CINEMA POLÍTICO-HUMANISTA

Após a guerra surge a necessidade de tornar o cinema um meio consciente e que torne o espectador consciente dos processos político-sociais que estava a acontecer na Europa. Na Itália, o cinema ganha as ruas[1]. As câmeras seguem o desejo e a urgência de captar as transformações de um mundo ágil. Elas já haviam perdido a construção dos campos de concentração, agora não podem perder mais nada.

Num cinema político feito no pós-guerra, a representação seguindo os ditames puros do cinema de ficção já não são mais aceitos (GARDNIER, s/d). Isto não se dá, claro, para todas as formas de cinema, mas para um em específico: o cinema político-humanista que visa apresentar um momento real da história recente. Por estes motivos este é um cinema que não deve funcionar como um mecanismo de ilusão. Houve um fato e ele deve ser assim apresentado, sem adornos. É um grande problema quando o cinema, quando faz a representação de um momento, como o holocausto, dá-se a tentar mudar o que aconteceu. Porque quando isto é feito, banaliza-o, transformando o holocausto em um produto, enquanto a real importância de manter a memória deste momento recente da história aparece de forma remota para quem está a assistir ao filme. E quando não se é mais vista a gravidade de uma barbárie do passado, é o momento em que abrem-se as portas da possibilidade de que ele volte a acontecer.

É desta visão do cinema como responsável frente à história e formação do homem que devemos fazer uma crítica. Porque, ao contrário do que coloca Ruy Gardnier em seu texto sobre cinema político, a questão da representação num cinema político-humanista é, sim, uma questão de moral. Talvez seja nesse sentido em que devamos ler a frase cunhada por Godard há cinquenta anos. O travelling é uma questão de moral porque deve ser usado com a devida consciência pelo diretor que se propõe a fazer o filme. “O cinema julga o que mostra e é julgado pela forma como mostra. A moral não é apenas uma questão de conteúdo. É também, ou, sobretudo, uma questão formal” (BEZERRA, 2010). Em Kapò, o travelling notado por Rivette em sua crítica é o momento em que a escolha do diretor de fazer de seu filme político um drama nos moldes tradicionais atinge seu ponto máximo. O travelling torna-se, assim, a síntese do espetáculo cinematográfico, quando não se deve ser feito espetáculo algum sobre aquele tema. Nas palavras de Ruy Gardnier sobre Kapò:

É nojento colocar o campo de concentração como cenário de uma love story trágica, e é especialmente nojento de uma hora para outra retirar o foco de uma coisa maior (aquilo que faz o diferencial do filme, o de querer retratar os campos) para uma coisa menor. (GARDNIER, s/d).

Para criar uma história de amor não é necessário que ela seja ambientada num campo de concentração. Uma história de amor é totalmente livre, pode acontecer em qualquer ambiente – e o uso do campo de concentração torna-se, então, um ato imoral. Imoral porque transforma aquele cenário de uma tragédia real – a matança de milhões de pessoas – em um espetáculo. Imoral porque transforma aquela tragédia em algo menor: é como se o diretor de um filme como este não fosse capaz de enxergar a dramaticidade vivida por aquelas pessoas, podendo até parecer que está a menosprezar aquela tragédia, retirando dela sua seriedade, transformando-a em brincadeira (ou em último caso transformando-a em produto).

CONCLUSÃO

A forma do filme torna-se, assim, um meio de discussão para uma moral dos modos de representação no cinema. A ficção não deve ser aceita quando torna o assunto do qual trata algo menor frente aquilo que está a tratar – isto se reflete em outro filme recente: A vida é bela. Não deve ser aceita porque o cinema de ficção também possui o seu papel dentro da sociedade. O cinema de ficção, ao mostrar o passado sob suas próprias regras faz deste uma banalidade mais próxima da ficção do que de uma realidade realmente vivida: torna-se o equivalente a um esquecimento. Este filtro que o cinema-espetáculo cria separando a ficção da realidade faz do espectador um ser cada vez menos consciente da seriedade daquilo que o filme deveria estar a tratar exatamente porque é tratado com naturalidade, como um artifício dramático.

“Você não viu nada em Hiroshima”, repete o personagem de Eiji Okada em Hiroshima, meu amor. Esta frase é tanto dita para a personagem de Emanuelle Riva quanto para nós, espectadores. Dizemos que vimos o terror de Hiroshima, ou dos campos de concentração, mas na verdade nada vimos. O que vimos foram imagens que contavam com a visão de outra pessoa e do olho artificial da câmera. O que temos são imagens que formam uma memória artificial daquele evento. Vimos os filmes dos corpos empilhados nos campos, vimos os corpos queimados pela explosão da bomba. E ao mesmo tempo nada vimos. Filmes como A vida é bela e Kapò nos levam para dentro dos campos de concentração, mas nada vemos. É a representação que desrespeita o passado. Pior. Que ignora o passado. Transforma um fato histórico em um produto de comercialização. A representação “justa” de Noite e neblina se refere a isto. Não podemos voltar no tempo. Aquelas imagens dos campos que nos são mostradas fazem parte de um passado que é nosso, mas cuja memória não possuímos: um passado que precisamos reconhecer para não repeti-lo. De fato, nada vimos em Hiroshima.

REFERÊNCIAS:
BEZERRA, Julio; A moral da memória: quando o cinema vai ao Holocausto; Revista Fronteiras, vol. 12 n° 1, jan/abr, 2010; disponível em: http://www.fronteiras.unisinos.br/pdf/82.pdf, acessado dia 04 de julho de 2014 às 21:54.
DANEY, Serge; O travelling de Kapò; disponível em: http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:oj8_0RbvkqYJ:www.geocities.ws/ruygardnier/daneyotravellingdekapo.doc+&cd=1&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br  acessado no dia 04 de junho de 2014 às 10:57.
GARDNIER, Ruy; O cinema faz política (1): Gillo Pontecorvo; Revista Contracampo; disponível em: http://www.contracampo.com.br/22/kapoepolitica.htm , acessado em: 18 de junho de 2014 às 21:41.
MARTIN, Marcel; A linguagem cinematográfica; tradução: Paulo Neves; 2. Ed. – São Paulo: Brasiliense, 2011.
OLIVEIRA JR., Luiz Carlos; Alain Resnais e a memória do mundo; Revista Contracampo; disponível em: http://www.contracampo.com.br/88/artresnaisjr.htm, acessado em: 02 de julho de 2014.
PONTECORVO, Gillo; Kapò; França - Itália, 1959; duração: 1h58min.
RESNAIS, Alain; Noite e neblina; França, 1955; duração: 30min.
RESNAIS, Alain; Hiroshima, meu amor; França, 1959; duração: 1h30min.



[1] Esta urgência das câmeras estarem nas ruas para captar a realidade influência o cinema de diversos locais do mundo, tais como do Egito, da Índia, e o cinema brasileiro, no momento em que surge o cinema novo com Nelson Pereira dos Santos.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Travelling enquanto questão moral: um estudo em três partes

[continuação]

Texto originalmente publicado em Revista Filosofando - UESB.

NOITE E NEBLINA E A REPRESENTAÇÃO JUSTA

Quando o fim da II Guerra completou dez anos, as cicatrizes ainda não haviam cicatrizado. Na Itália, o cinema não deixava a população esquecer. O povo começava a ganhar consciência do que acontecia, e isso não agradou à burguesia. Na França, que fazia um cinema mais sentimental e menos visceral do que os italianos, surge um filme para sacudir as estruturas de quem o assistisse. E muitos foram os que viram. Noite e neblina (1955), curta-metragem de Alain Resnais, surge no cenário cinematográfico como uma das provocações mais interessantes sobre como fazer um filme sobre aquilo que é tão difícil de se filmar: o holocausto. Como filmar os campos de concentração? Como reagir frente aquelas imagens de arquivo que nos apresentam montanhas de óculos, de sapatos, de cabelos, de cadáveres...? Como fazer uma representação justa daquilo?

Em texto para a revista Contracampo, Luiz Carlos Oliveira Jr. Faz um questionamento que ele atribuí ao já citado Godard: “o cinema, ao não filmar os campos de concentração e extermínio no momento mesmo em que eram construídos, teria cometido um erro imperdoável?” (OLIVEIRA JR, s/d). Esta lacuna que surge na representação moderna, em que o cinema apresenta-se como frente absoluta no registro do real, poderia ter aberto espaço para as representações equivocadas deste que talvez seja o trágico mais lembrado na sétima arte. O cinema não viu o início dos campos, mas viu o que deles resultou (esta lacuna poderia fazer com que este fato parecesse irreal, uma fantasia do cinema?). Surge neste momento a necessidade de se fazer uma representação justa. “Em Noite e Neblina, Resnais inaugura esta justeza do olhar, esse reconhecimento de que o cinema chegou depois” (idem).

A câmera de Resnais passeia pelos campos de concentração. O travelling executado sobre os trilhos do trem que outrora trazia ao campo prisioneiros, agora é um eco dos fantasmas daqueles que não podemos esquecer. E este é o trabalho do cinema. Não é transformar o holocausto num espetáculo, mas fazer-nos lembrar para que ele não se repita. Esta câmera que percorre os muros dos prédios agora abandonados, pede para que eles não se percam no caminho da história. “A principal característica da exterminação nazista dos judeus na Segunda Guerra foi sua invisibilidade, sua obscura e historicamente mal explicada invisibilidade” (idem). Esta invisibilidade que agora, por meio daquele canal que uma vez se cegara e não fora capaz de enxergar o que acontecia, tenta se redimir e apresentar para o mundo que aquilo, um dia, realmente aconteceu.

Noite e neblina apresenta-se, assim, como um documentário de curta-metragem que une as imagens de arquivo às imagens atuais e em cores dos campos de concentração (atuais do seu ano de produção, 1955). Por meio da montagem que liga o presenta ao passado, mostrando ao mesmo tempo sua união e sua distância cruel, Resnais monta um discurso visual para dizer-nos que não podemos voltar ao passado, mas também não podemos esquecê-lo. As paisagens que hoje apresentam flores, outrora foram palco de um espetáculo tenebroso. Resnais liga também aquilo que é mostrado à voz de Jean Cayrol, escritor sobrevivente do holocausto, que nos narra um texto que não se prende por meio de metáforas e que diz:

Mesmo uma paisagem tranquila, mesmo uma pradaria com voo de corvos, messes e jogos de ervas, mesmo uma estrada onde passam carros, camponeses, casais, mesmo uma aldeia para férias com um campanário, podem levar simplesmente a um campo de concentração. (RESNAIS, 1955).

O TRAVELLING DE KAPÒ

O famoso travelling de Kapò parece muito simples quando visto na tela, de um ponto de vista prático. Mas na época em que fora feito, 1959, dependia de enorme maquinário para que fosse possível mover a câmera pelo cenário até o enquadramento desejado. Esta simplicidade que aparenta para um espectador do século XXI se dá pelo seu contato com câmeras pequenas, portáteis. A construção de um travelling, na época da produção do citado filme, se fazia difícil e dispendiosa. Necessitava-se que o cineasta, para fabricar este movimento, o ter idealizado por um longo tempo e ter a convicção do que estava a fazer com seu filme.

A recém-reformulada escola crítica de cinema francesa estava a ganhar cada vez mais adeptos. Numa atitude rara até então, discutia-se a forma dos filmes e não o seu conteúdo, tão somente. Esta geração, que sofreu crescendo em meio à guerra, agora procurava juntar os cacos de uma Europa destruída. Da parte destes jovens que se dedicavam integralmente ao cinema – muitos deles que enxergavam no dispositivo cinematográfico a potencialidade de mudar a sociedade –, coube discutir a forma como se representava o irrepresentável: o holocausto, a bomba de Hiroshima... Noite e neblina surgiu em 1955 mostrando como o assunto deveria ser abordado: com a distância de quem não pode voltar no tempo e mudar o que aconteceu. Mas nem todos escutaram o que Jean Cayrol disse, ou o que Alain Resnais mostrou. E num texto curto, com menos de uma página, Jacques Rivette encheu uma edição da revista Cahiers du Cinéma de raiva contra um filme numa crítica que tomava menos que uma página. A força deste golpe foi tamanha que até hoje ecoa (como é o caso deste estudo). Em um de seus últimos escritos, o também crítico de cinema Serge Daney escreve:

Em seu artigo, Rivette não contava o filme. Ele se contentava, em uma frase, descrever um plano. A frase, que ficou na minha memória, dizia assim: “Vejamos agora, em Kapò, o plano em que Riva se suicida, se jogando sobre o arame farpado eletrificado: o homem que decide, nesse momento, fazer um travelling para frente para reenquadrar o cadáver em contra-plongée[1], tomando cuidado para inscrever exatamente a mão levantada num ângulo do enquadramento final, esse homem só tem direito ao mais profundo desprezo.” Dessa forma um simples movimento de câmera poderia ser um movimento a não se fazer. (DANEY, s/d)

Kapó é o filme que ficou famoso pelos motivos que nenhum outro deseja. O “ato abjeto” promovido por Gillo Pontecorvo em seu filme fez com que esta obra em particular fosse vista com olhares de desaprovação, mesmo por quem nunca chegou a vê-lo. Porque não é necessário ver um filme quando há algo de tão claro em sua construção (sua forma) que o torna horrendo. E não foi o travelling, somente, que mudou o destino de Kapò. O tão citado travelling de Kapò é, na verdade, apenas o ápice do horror promovido pelo diretor em seu filme. O travelling torna-se a representação de algo maior. Mas ainda assim permanece sobre aquela câmera que corre em direção ao rosto de uma moribunda Emanuelle Riva a expressão mais grave da abjeção. Este termo dito aqui mais de uma vez refere-se ao título do texto escrito por Rivette sobre Kapò, “Da abjeção”.

A abjeção a Kapò nos dá as bases de uma discussão acerca da representação de um cinema de viés político, surgido após a guerra. Seria moral, da parte do cineasta, moldar o seu filme sobre o holocausto partindo de princípios dramatúrgicos comuns? Como já havia sido colocado por Noite e neblina, não podemos voltar no tempo, retornar àquele momento e mudar o que aconteceu. O cinema deve manter distância daquele momento, porque como ele não o mostrou chegando ele também não pode mais tentar mudar o que aconteceu. Mas quais seriam os motivos que poderiam fazer de um filme sobre o holocausto como Kapò ser tão abjeto?




[1] Plano em que a câmera apresenta-se mostrando algo de baixo para cima.

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Travelling enquanto questão moral: um estudo em três partes

As próximas três postagens serão uma continuação. Cada uma delas caminha em sentido comum: a discussão da moral cinematográfica não enquanto conteúdo, mas levando em consideração principalmente a forma do filme. Separadas podem não fazer tanto sentido quanto fariam juntas. 
A problemática aqui levantada em três partes parte de um artigo publicado ainda este ano.

INTRODUÇÃO

Quando do lançamento de Hiroshima, meu amor (RESNAIS, 1959), Jean-Luc Godard – cineasta explosivo, crítico propenso à criação de aforismos – desenha a fórmula preciosa para os formalistas do cinematógrafo: travelling é uma questão de moral. Poderia ser uma das tantas frases do diretor de Acossado que passariam em branco, não fosse o uso feito dela pelo crítico e futuro cineasta Jacques Rivette em 1960. Sua crítica sobre Kapò (1959), de Gillo Pontecorvo, pouco se referia ao malfadado filme, mas ainda assim era o suficiente para fazer com que gerações inteiras de cinéfilos sentissem seus estômagos darem voltas devido às náuseas provocadas por um movimento de câmera. Sim, um movimento de câmera! No presente estudo, faremos uma discussão sobre o uso do travelling do cinema e questionamento sobre a moral do cineasta ao utilizá-lo. A questão trespassa o simples movimento de câmera e chega às formas de representação cinematográficas. Veremos que a moral não é somente uma questão de conteúdo, é também uma questão estética.

SOBRE TRAVELLING

Antes de começarmos qualquer discussão, expliquemos o que é um travelling para aquele leitor pouco familiarizado com a linguagem cinematográfica. Travelling consiste em um movimento em que a câmera deixa um ponto físico no cenário e passa a mover-se pelo mesmo sob a guia do diretor (MARTIN, 2011, p. 47). Exemplo: João, herói de nosso filme hipotético, espera ansiosamente por seu ônibus. Estica o pescoço para tentar enxergar melhor, num ato que claramente demonstra seu nervosismo e ansiedade. A câmera, neste momento, move-se para o lado e segue em direção a um ladrão que está localizado poucos metros atrás de João. Cria-se o suspense. O espectador sabe da presença do ladrão, mas o protagonista da história o desconhece. Sabemos, porque a câmera deixou o seu ponto fixo no cenário (em frente a João) e nos mostrou que algo está a ameaçá-lo.

Um movimento como o travelling possui algo de mais significativo do que possa parecer. Para a história do cinema, a câmera que percorre os cenários transforma-se em agente ativo frente à representação fílmica e não mais possui a passividade de outrora. Nos primórdios do cinematógrafo, a câmara de cinema permanecia parada – como um “regente de orquestra” como costumeiramente é chamado – em frente ao cenário simplesmente observando aqueles corpos ágeis que interagiam para seu deleite. O cinema consistia de um teatro filmado. Em 1896, como que por acidente, um dos cinegrafistas a serviço dos irmãos Lumière – inventores do cinema – cria o travelling ao filmar o casario histórico de Veneza a bordo de uma gôndola (MARTIN, 2011, p. 32). Este papel de agente ativo referido acima, diz respeito a um cinema mais consciente de sua condição de cinema: reconhece seus modelos de representação e trabalha sobre eles para moldar o espetáculo cinematográfico partindo das ferramentas que tem em mãos, o travelling e o close-up por exemplo. Mas como veremos neste texto, esta consciência de cinema enquanto cinema deve permanecer mesmo para aqueles momentos em que este “ser ativo” do cinema (formador de espetáculo) recue para que dê espaço a um cinema de consciência política.

Travelling é este movimento, que por vezes pode ser envolvo em uma aura de complexidade. Ele é um movimento do qual muito gostam os cineastas de um cinema pop devido á agilidade que ele emprega ao filme. A câmera corre pelos cenários, pelas ruas, entre os carros em alta velocidade, conferindo ao filme um quê de frenético. É também um movimento invasor. Quando a câmera é movida em direção a um rosto ela disseca muito mais do que a expressão facial do ator: ela apresenta toda a complexidade do sentimento que o personagem está a sentir. Quando ela corre em direção a um pai atordoado com o roubo de sua bicicleta, que confunde um garoto com o ladrão, este movimento traduz a humilhação daquele homem frente à multidão que grita o seu equivoco (Ladrões de bicicleta). Quando em câmera lenta, ele pode exprimir o desejo de um homem por uma mulher (Touro indomável). Em outros casos, ao passear por corredores de um hotel de luxo, ele está a nos apresentar a intricada rede de lembranças da mente humana (Ano passado em Marienbad). E por estes e tantos outros motivos ele, por vezes, pode ser considerado como sendo a síntese do espetáculo cinematográfico. 

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Por que devemos conhecer os clássicos?

uma questão para os amantes de cinema


Frequentemente, em debates sobre cinema, se levanta a questão de assistir aos clássicos. As pessoas, em grande parte dos casos, o fazem sem refletir o motivo. Quando refletem, dão motivações bobas que não necessariamente vá dizer qualquer razão relevante para que se vá fazê-lo. O primeiro ponto que precisa ser pensado é: você realmente gosta de cinema? Se a resposta for sim, então debruçar-se sobre os clássicos é um exercício de visionamento de diversos filmes, sem necessariamente pô-los em escalas de maior ou menor importância para a história do cinema e sua formação estético-estilística; são filmes em que se encontra a excelência no fazer fílmico.

Deparamo-nos com uma segunda questão, ainda mais delicada: será que todos os cineastas devem assistir aos clássicos? Sim, devem. Ao menos os cineastas preocupados com fazer um cinema de arte. Porque conhecer o cinema é de fundamental importância para não sair dizendo que inventou a roda (neste quesito é interessante ler o texto publicado aqui: De Kane ao 3D – as revoluções do cinema). É um modo de compreender como a arte se desenvolve ao invés de se basear sobre clichês estéticos. Fazer um filme – ou qualquer obra de arte – não é receber a inspiração de uma musa, tal como diziam os gregos antigos. Fazer arte é um ato cerebral. O escritor recorta diversos parágrafos de sua obra até chegar a forma final. O fotógrafo faz cinquenta fotografias de uma paisagem para encontrar uma que seja boa.

Ainda no caso do cineasta, conhecer o cinema clássico se trata de fazer um trabalho que é feito desde os primórdios do cinema: conhecer as formas próprias de se expressar através da arte cinematográfica. Os irmãos Lumière inventaram o cinema, mas foi assistindo aos filmes de Méliès que eles começaram a filmar ficções. E assim se repetiu por toda história do cinema. Griffith conhecia o trabalho de Porter, Eisenstein conhecia o trabalho de Griffith, Glauber o trabalho de Eisenstein e assim por diante. Não se trata de uma questão de utilizar os mesmos modelos de concepção de uma obra cinematográfica, mas de entender como se expressar por meio dela: e isso não se aprende sem assistir aos clássicos.


Para o espectador comum assistir aos clássicos já possui uma motivação diferente. Este não está preocupado com os modelos de expressão do cinema para conceber um filme, ainda que o entendimento destas seja um ponto importante que o leve a conhecer (e compreender) os clássicos. Porque diferentes cineastas encontraram modos diferentes de se expressar a partir das especificidades da linguagem cinematográfica. Assistir a um mesmo modelo de cinema – e consequentemente de expressão, encenação... – pode tornar-se repetitivo. Muitos cineastas possuem influências em comum e terminam por fazer filmes muito similares que somente diferem em suas histórias (e daí nascem os clichês). A diferença que encontramos nas formas dos filmes pode fazer da experiência de assistir uma obra cinematográfica algo de extremamente radical, novo, diferente.

Se diretores de uma mesma escola cinematográfica decidirem por filmar a mesma história, possuiríamos filmes muito similares que difeririam somente em seu roteiro. Já se fosse o caso de diretores de diferentes escolas, de países diferentes que se arriscassem a filmar uma mesma história, encontraríamos filmes radicalmente diversos. É o exemplo da nouvelle vague francesa. Os diretores deste movimento possuíam suas preferências pelo cinema hollywoodiano e assim se inspiravam nele para fazer seus filmes. Faziam filmes de gênero cujo resultado diferia radicalmente daquele cinema em que uma vez eles tomaram como inspiração.

É muito importante, tanto para a formação de um cineasta quanto a de um curioso de cinema de arte, o conhecimento dos clássicos para que melhor possa executá-los e assisti-los. Para que possa compreender que nada posto em um filme o é feito de forma gratuita. Numa verdadeira obra artística sempre existe uma motivação que leva o artista a fazer determinadas escolhas. Cabe ao cineasta saber quais são estas escolhas e cabe ao espectador atento saber colhê-las no decorrer do filme. A exemplo disso existe o exemplo famoso de Stanley Kubrick: em alguns de seus filmes, detalhes na composição do cenário eram modificados de uma tomada para outra conscientemente. O artista fez isso com um motivo. O espectador o entende ou procura a motivação pela qual o artista o teria feito.


O espectador curioso, que busca um cinema de arte, o faz para ser desafiado. O cinema tradicional (de molde comercial) não oferece este tipo de informação ao espectador, tratando-se somente de um modelo de entretenimento. Mas o cinema não é somente um modelo de entretenimento. É uma arte. E é este sentimento de renovação e inovação que move a arte que move, também, o cinema. O espectador que se depara com um filme de arte e que os busca, procura compreender e experimentar as formas estéticas do cinema. Quer ser desafiado intelectualmente. Este desafio intelectual aparece em todos clássicos porque ele está presente em toda construção de imagem que o cineasta-artista vá fazer, em toda construção temporal, na ordem dos eventos montados. 

Ele aparece em formas estéticas radicalmente diferentes: está em O ano passado em Marienbad quando Renais vasculha a memória em busca de um passado que o personagem não sabe se existiu; está em No tempo das diligências quando uma ameaça que somente ouvimos falar paira sobre os personagens que precisam cortar o deserto; está em O encouraçado Potemkin quando vemos detalhes que unidos em uma sucessão nos fornecem o todo de um massacre.

Assistir aos clássicos se apresenta como um ato de amor ao cinema. Este amor que nos leva a adentrá-lo para que conheçamos cada parte, cada canto mais escondido que forma este todo. E conhecer estes detalhes nos leva a saber distinguir os bons filmes dos ruins, os mais artísticos dos menos. Porque existem bons filmes e filmes ruins. Nos ajuda a distinguir aqueles filmes preocupados em se fazerem enquanto expressões artísticas e aqueles que somente querem ser filmes de entretenimento (comercial). E aí está a grande diferença.

Por que devemos conhecer os clássicos? Porque é nos clássicos que se encontra o cinema em seu melhor acabamento, em sua melhor forma: chamar um filme de clássico significa que ele será uma obra surpreendente independentemente da época em que seja vista. Como diria Mark Cousins em sua série The story of film: na odyssey: o que move o cinema é a paixão, a inovação. Se debruçar sobre os clássicos é encontrar esta paixão e fazer-nos constituir um pedaço dela.


[nas imagens os três filmes citados no texto: 1- Ano passado em Marienbad; 2 - No tempo das diligências; 3 - O encouraçado Potemkin.