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quarta-feira, 19 de agosto de 2015

O que é a crítica de cinema, afinal?

André Bazin
O que é crítica, afinal? Esta é uma pergunta oportuna nestes tempos em que qualquer pessoa pode escrever sobre um filme, um livro ou um disco. O que é preciso primeiro apontarmos é que nem todo texto que se põe a comentar uma obra artística é uma crítica. Crítica é tão somente uma das formas pelas quais é possível escrever um texto. Se dermos um passeio rápido pela internet o que encontraremos é uma proliferação de resenhas, resumos, não críticas. O que inicialmente surge como algo positivo - a democratização do acesso à obra de arte - torna-se conflituoso: muitos desses textos não são críticas, apesar de se declararem enquanto tal. Este poder que o espectador comum ganha pode ser extremamente prejudicial à arte, já que muitos dos comentaristas possuem certa popularidade. Nesta vontade de escrever sobre os filmes ou livros de que tanto gostam, os chamados "críticos" da rede assumem um trabalho abjeto iniciado pela mídia impressa: o trabalho abjeto de se dar uma nota. Por que dar nota a uma obra artística? Qual o sentido de objetivar a qualidade da obra numa mensuração quantitativa?

O primeiro aspecto que devemos abordar aqui é a subjetividade. Não do artista, mas do espectador. Sim, porque muitos destes textos criados para a internet partem de uma concepção rasa do que seja arte, baseada em muitos pré-conceitos e lugar-comum. Destes pré-conceitos um muito comum diz respeito à apreciação da obra, a obra enquanto evocativa de sentimentos. É verdade que um dos papeis das artes é provocar no espectador sentimentos, mas será que devemos basear uma crítica em minhas preferências pessoais? Quem sou eu para impor meus gostos sobre os outros, ou até mesmo, desmerecer determinadas obras porque eu não gostei dela? A crítica não pode descair para o lado sentimental de um espectador. O que eu gosto pode ser diferente do que você gosta. No filme Crítico, Kleber Mendonça entrevista um profissional da área que é certeiro em seu ofício: o trabalho do crítico é encontrar a tese do autor e ver se ele deu bom tratamento à ela. Podemos concluir com isto que o trabalho do crítico de análise do filme é objetivo? Sim.

Paulo Emílio Sales Gomes
E porque não fazer a mensuração quantitativa da qualidade do filme já que a crítica é objetiva? Em primeiro lugar, este simbolismo ganha maior poder do que deveria. Muitos são os "leitores" que abrem uma crítica, correm a página somente para ver o número de estrelas dadas ao filme. E tudo passa a se resumir a este símbolo. Por mais que o texto elogie o filme, que procure mostrar que o filme é "bom", as três estrelas significarão ao "leitor": não, este filme não vale a pena ser visto. Mas desta formulação parte outro problema: a crítica enquanto indicação de uma obra. Muitas críticas são feitas assim, e muitos são os leitores que buscam uma ajuda "competente" na hora de escolher o filme que irá assistir. A crítica, enquanto indicação do que assistir no cinema, é um tanto pueril. É verdade que bons críticos são capazes de desempenhar este trabalho de indicação de um filme. Mas lembremos que os grandes nomes da crítica de cinema mundial escreveram suas críticas mais famosas (e difundidas através das décadas) em revistas mensais, ou seja, não como indicação mas como aprofundamento. A crítica deveria fazer um serviço posterior, de fornecer uma ampliação das possibilidades interpretativas ao espectador. Assisto ao filme, leio críticas e com o auxílio delas (não necessariamente por elas) passo a desenvolver um panorama do que me foi apresentado. Crio teorias, formulo interpretações aprofundadas. O filme passa a sobreviver pós-sessão.

Voltemos: a crítica de arte não pode se ancorar em minha perspectiva do que é ou não belo. O emocional é subjetivo, ou seja, difere de pessoa para pessoa (e até mesmo de situação para situação: se não gostei de filme A anos atrás, nada indica que venha a desgostá-lo dele hoje). O maior problema de quem defende esta ideia é a limitação interpretativa das obras a que se porá a criticar. Em especial porque parte somente da trama do filme ao invés de perceber como a trama é apresentada - lembremos o comentário no filme de Kleber Mendonça citado anteriormente. E este como é muito importante para a compreensão da arte. Toda obra artística é composta entre a forma e o conteúdo. O trabalho do crítico é analisar o trato desta relação entre o que é apresentado e como é apresentado. Ao criticar uma obra fílmica devemos perceber o posicionamento da câmera, dos personagens, como a cena montada e como isso se casa com a trama. Fazer o resumo da trama como se fosse crítica e a ele adicionar uma nota é permanecer distante da obra, ou da arte. É não ver o caráter cinematográfico de uma obra de cinema.

François Truffaut
Na arte apresentam-se formas de olhar o mundo, e junto a eles a constituição de conceitos. Na simples compreensão da trama muito disso se perde. É o caso do cinema de Resnais, em especial Hiroshima, meu amor. Por muitos vista de modo simplista como uma obra de amor, a profundidade política da obra do filme se apresenta por meio da relação pautada entre o texto e a imagem. Com a constituição da montagem e a criação de uma temporalidade própria. E aquilo que primeiro se enxerga como uma "história de amor" torna-se um filme político. E para este serviço é mais que necessário, é essencial, para um crítico de cinema o conhecimento teórico profundo do cinema. Para que assim possa saber, também, separar seu modo de ler sua arte do modo como lê outras artes - e até ser capaz de reconhecer a inovação de alguns criadores. Este foi um dos grandes equívocos da crítica de cinema da primeira metade do século passado - não toda, claro. Já que o cinema conta histórias, podemos analisá-lo do mesmo jeito que uma obra literária. Terrível engano. Hitchcock passou boa parte de sua carreira sendo posto à margem do cinema "de primeira" porque filmava filmes policiais - gênero B na literatura. Para sua revitalização foram necessários críticos que assistissem cinema, ao invés de ouvidores de diálogo.

Neste sentido há ainda aqueles grupos que embebem-se de certa ideologia e passam a realizar suas críticas partindo deste ideário. Para além de permanecer somente no campo da trama - conteúdo - esta é uma forma de fazer crítica muitíssimo perigosa para a vida de uma obra de arte. Isso porque grandes artistas que não compactuam com a ideologia pregada - digamos, o marxismo ou o liberalismo - podem ser pregados numa cruz. E este, caro leitor, não é um grupo de críticos raros de se encontrar. Eles são muitos e encontram-se em todos os lugares. Os críticos que não gostam dos filmes soviéticos porque propagandeiam o comunismo, os marxistas que não gostam dos filmes hollywoodianos (não todos, mas boa parte) que defendem o "american way of life".

Serge Daney
A crítica ideológica pode trazer pontos positivos por defender novas estéticas, mas isso é muito raro de acontecer. O ideal a uma crítico é ser aberto às obras que lhes são apresentadas independente da ideologia. Porque a ideologia pode nos fazer perder a beleza de certas obras. Claro que ressalvas são sempre necessárias de serem feitas. Caso disso é o cinema nazista. Obviamente, se defender tal ideário é condenável. Mas a beleza de certos filmes não pode ser negada simplesmente porque não compactuo com o ideário ali por trás. É o caso de Olympia de Leni Riefenstahl. O importante aqui é fazermos a defesa do bom cinema e não da ideologia A ou B - e nem ressaltá-la enquanto se faz sua crítica.

Crítica imparcial é quase difícil de encontrar - e pode-se dizer que ela não existe. Até porque sempre defendemos (adotamos) uma perspectiva. Mas o que se deve ser encontrado numa crítica é esta permanência da obra mesmo depois da sessão. E se a obra não consegue se manter viva nestes momentos posteriores, será a crítica que explicitará esta falta.

As páginas a seguir são algumas das que realizam este tipo de crítica aqui defendida:


Segue a este texto, E o papel social da crítica de cinema?,  publicado em 24 de agosto de 2015.

Talvez, o melhor exemplo que se encontre aqui no blog: Adeus, Dragon-Inn | O pão nosso de cada dia

domingo, 5 de julho de 2015

A luz azul de Leni Riefenstahl (das blaue licht, 1932)


Na época das eleições, ano passado, o crítico de cinema Inácio Araújo escreveu que não compreende esta coisa de artistas darem apoio aos candidatos. Isto porque, em muitos casos, eles podem ficar marcados por suas posições políticas. Alguns conseguem demonstrar sua militância somente naquele período restrito das eleições. Outros o extrapolam, e aí sim, filiam-se a um pensamento político que pode fazer parte de seu público passar a ter ojeriza à sua imagem. Está fala de Inácio possui um fundo de verdade. Isso porque os odiadores do comunismo nunca gostarão de um filme de Eisenstein. A vinculação política aí destroça até mesmo a beleza de seu cinema, e toda a sua genialidade enquanto criador de uma estética inovadora.

E isso nunca foi tão verdadeiro quanto ao lembrarmos de Leni Riefenstahl. A famosa "cineasta de Hitler", diretora de Triunfo da vontade, coligou-se ao pensamento do partido nacional socialista, o que fez com que a posteridade renegasse seu trabalho. Mesmo seus filmes feitos a pedido do partido nazista, como o citado e os filmes Olympia, possuem uma larga diferença dos demais filmes feitos sob o mando de Goebbels. São belos, plásticos. A composição das imagens é cuidadosa para que a mensagem ali passada seja absorvida - em especial em Triunfo.... Foge-se da propaganda barata de um O eterno judeu, que compara judeus a ratos, chamando-os de preguiçosos enquanto os mostra carregando dois em dois blocos de cada vez numa construção.


Mas não é uma defesa do cinema de propaganda de Riefenstahl sobre o qual venho escrever aqui. E pretendo deixar desde então claro de que não é o conteúdo dos filmes que deve ser visto com deslumbre, mas a forma, como o filme é feito para passar a sua mensagem - a adequação da forma ao conteúdo. Neste texto buscaremos um filme da cineasta anterior à subida do partido nacional socialista ao poder, uma obra de ficção sem maiores pretensões políticas, ainda que possa ser lido como tal (assim como alguns filmes de Fritz Lang, mas este nunca chegou a sequer cogitar a aproximação ao ideário hitlerista).

A luz azul foi feito ainda em 1932 e conta com roteiro de Bela Balazs. Nele temos a história de uma garota - Junta, interpretada pela própria Riefenstahl - que mora nas montanhas próxima a um vilarejo. A história aproxima-se de uma fábula ao colocar a tal personagem como uma espécia de gata borralheira. Má vestida, ela está na cachoeira. Coloca a mão dentro do rio e retira uma pedra preciosa do tamanho da mão. Põe a pedra dentro do cestinho que carrega, e depois cobre a pedra com frutinhas que colhe no caminho. Um estrangeiro, alemão, chega ao vilarejo e logo se depara com a garota, que por algum motivo ainda desconhecido é renegada pelo resto da população.


O uso primitivo do som, dublado posteriormente em estúdio, nos deixa em frente a um filme curioso. O tempo todo a obra é marcada por uma trilha sonora que não cessa, tal como nos filmes mudos. No vilarejo, algumas pessoas falam italiano, outras alemão. O estrangeiro recém-chegado logo acha curioso o comportamento dos moradores do local. Eles não conversam, não sorriem. Estão sempre de cabeça baixa como se buscassem modos de esconder o rosto. Isto porque é noite de lua cheia. As pessoas têm que ir para casa e ficar trancadas lá dentro. Mais importante, não deixar os jovens saírem. Isto porque numa das montanhas brilha uma luz azul que os convida a uma escalada mortal. Todos que sobem, morrem, não conseguem completar a escalada.

Todos menos um: Junta. Ela é uma bruxa, diz o gerente do hotel em que o estrangeiro fica hospedado. Afirmação que parece ser semelhante à dos demais moradores do local. Todos os demais jovens morrer, mas ela consegue subir a montanha pelo lado mais íngreme, e nunca cai. Há algo de errado com ela. Mas por mais que se diga isso, menos Riefenstahl nos passa esta imagem de Junta. Ela é sempre posta em frente à câmera com uma aura de pureza intocada. Ela é aquela natureza ainda não corrompida pelos homens. Daí as vestes em farrapos, diferente de seu irmão, que também possui vestes com furos, mas em melhor estado que as dela. O menino é o pastor, vive pelos animais, ela pelas pedras preciosas que cata no chão do local.


Como ninguém dá valor àquela menina que vive sempre acuada, com medo da ação dos outros, será o estrangeiro que surgirá para enxergar a beleza daquela criatura. Riefenstahl nos revela ser ele pintor. Ou seja, ele possui a capacidade de enxergar a beleza daquela figura exótica. Não tarda para que a lua cheia apareça e Junta decida fazer a escalada. Ela é seguida de perto pelo estrangeiro, que chega ao topo onde há a tal luz azul, que nada mais é do que uma caverna de pedras preciosas que a luz da lua cheia ilumina, criando a coloração diferente que os moradores do vilarejo veem. O estrangeiro não é aquele personagem ganancioso que busca a riqueza para si. Ele o faz pela população local. Mas não compreende que a pureza daquela paisagem é correspondente à pureza de Junta, que ao ver, horrorizada, o que fizeram com sua caverna, cai da montanha. 

Riefenstahl filma tudo como uma fábula, beirando o conto de fadas, em que tudo é idealizado. A figura de Junta em sua pureza de natureza intocada é fotografada com bastante cuidado. Quando em presença dos homens ela não pode se misturar, deve parecer deslocada. Quando na natureza ela é filmada como fazendo parte daquele cenário: ela é o reflexo na água, tal como uma pedra preciosa. As imagens bastam para contar estas história, assim como bastam para poder mostrar-nos uma personagem romântica num filme idealista.