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segunda-feira, 7 de março de 2016

Teses sobre o neorrealismo

por: CESARE ZAVATTINI


            Sem a menor dúvida, nossa reação primeira e mais superficial a respeito da realidade cotidiana é de tédio. Tanto que não deixando de nos superar e a superar nossa derrota intelectual e moral, a realidade nos parece desprovida de todo interesse. Não deixa de surpreender que o cinema tenha sempre sentido naturalmente e quase inevitavelmente a necessidade de uma “história” a ser inserida na realidade, a fim de render a paixão, espetáculo. É evidente que se poderia evadir o campo da realidade como se nada pudesse fazer na intervenção da imaginação.
            A característica mais importante do neorrealismo, sua novidade essencial, me parece ser a descoberta que a necessidade da história não é mais que uma maneira inconsciente de apontar um defeito humano, e que a imaginação, sendo ela exercida, não faça mais que supor esquemas mortos aos fatos vivos socialmente.
            Em substância, percebemos que a realidade é extremamente rica: é preciso somente saber observá-la. E que a tarefa do artista não consiste em levar o espetador a se indignar e a se mover pelas transições, mas refletir (e, se quiser, até mesmo se indignar e se mover) sobre coisas que ele faz e que os outros fazem, sobre a realidade tal como ela é precisamente.
            De uma falta de confiança inconsciente e profunda na observação da realidade, de uma evasão ilusória e equívoca, é passada uma confiança ilimitada nas coisas, nos fatos, nos homens.
            Esta tomada de posição exige naturalmente a necessidade de escavar, de dar à realidade esta pulsação, esta faculdade de comunicar, estas reflexões que, justamente no neorrealismo, não se crê que ela possa possuir.
            Já foi escrito que a guerra foi a pedra angular do neorrealismo. Este fato enorme abala a alma dos homens e, cada um a sua maneira, os cineastas ensaiaram transpor no cinema esta emoção grandiosa. Por nós, Italianos, a guerra nos pareceu particularmente monstruosa, porque não vimos nenhuma razão para dela participar, tínhamos muitas razões para não participar. Mas não foi por uma revolta limitada a esta guerra: era qualquer coisa a mais, era a revelação absoluta, diria ainda eterna, de que a guerra ofende as necessidades fundamentais e os valores humanos que nos são tão caras: e esta revelação, a meu ver, era o ponto de partida de um vasto movimento humano. Poderiam me dizer que esta revelação não é um privilégio da Itália. Creio que sim. Nesta quantidade de gente designadas como defeitos de nosso povo, e que são ao contrário suas virtudes – a carência social aparente, o individualismo, etc... – podemos encontrar as razões de uma vocação, a razão plena e apaixonada contra a injúria suprema que é a guerra. E este não é o homem histórico que reage, o homem abstrato dos livros situado em uma trajetória sem fim de datas, que são as datas das guerras passadas, presentes ou futuras, mas o homem mais profundo e secreto. Você poderia objetar que o homem histórico e o homem epíteto coabitam continuamente: admitimos, mas eles coabitam utilmente quando, pelo princípio dos vasos comunicantes, eles tendem a ocupar o mesmo nível, primeiro com sua consciência, e segundo com sua necessidade original de viver. A necessidade de viver, quando é rico e feliz pode melhor atravessar seus limites que ele escolhe, porque em ultimo caso, um povo decadente não pode trazer a menor contribuição à humanidade. Ouso pensar que outros povos, mesmo depois da guerra, continuarão a considerar o homem enquanto matéria histórica, determinado em seu movimento, mesmo fatal, e que é o porquê não nos dão um cinema de libertação, como começou a fazer o cinema italiano: este que por eles, justamente, tudo continuou, enquanto que por nós começou; por eles, a guerra foi uma das guerras que afligiram nosso planeta, por nós ela teria sido a ultima guerra. Poderiam eles ser a consequência de suas descobertas, o ímpeto dos pioneiros, novidade não porque jamais conhecida anteriormente, mas porque jamais de uma maneira também coletiva e tenaz? As consequências são estas que veremos abrir a nossa frente um estudo sem fim de como o homem provocou e sustentou a guerra. Esta é a necessidade de conhecer, de ver como estes eventos terríveis puderam acontecer, e o cinema é o meio mais direto e mais imediato para este tipo de exame, melhor que os outros meios de cultura; a linguagem destes últimos não está próxima de exprimir nossas reações contra as mentiras das velhas ideias gerais, como nós nos encontramos vestidos ao momento da guerra e que nos encontramos impedidos de tentar a menor revolta.


            Este desejo pulsante do cinema de ver e de analisar, esta fome de realidade, é de qualquer forma uma homenagem concreta aos outros, a tudo que existe. E, entre outras coisas, é isto que distingue o neorrealismo do cinema americano. Com efeito, a posição dos americanos é antípoda à nossa: eis que somos solicitados pela realidade que nos toca, que queremos conhecê-la diretamente e a fundo, os americanos continuam a se contentar com um conhecimento adocicado, através das transposições.
            Eis porque, se podemos falar, pela américa, de uma crise temática, esta crise é impossível entre nós. Não pode haver carência de temas entre nós, porque não há carência de realidade. Qualquer a hora do dia, qualquer lugar, qualquer pessoa, pode contar se for contado de tal modo que revele um modo de destacar os elementos coletivos que os formem continuamente.
            Eis porque não se pode falar de crise de temas (os fatos) mas, o caso aplicável, de crise de conteúdos (a interpretação destes fatos).
            Esta diferença essencial foi bem sublinhada por um produtor americano que me disse: - Entre nós, a cena de um avião que passa é concebida de certa maneira: uma avião passa... tiros de metralhadora, ... o avião cai. Entre vocês: um avião passa... o avião passa novamente... o avião passa uma terceira vez.
            É perfeitamente verdadeiro. Mas ainda é pouco. Não é suficiente fazer o avião passar três vezes, é necessário fazê-lo passar vinte vezes.     
           Nós trabalhamos para expulsar as abstrações.
           Em um romance, os protagonistas são os heróis; o sapato do herói era um sapato especial. Nós, ao contrário, procuramos encontrar o que nossos personagens têm de comum: em meu sapato, no seu, no do rico, naquele do trabalhador, encontramos os mesmos elementos, o mesmo trabalho humano.
            E chegamos ao estilo. Em outras palavras, como faremos para exprimir cinematograficamente esta realidade? Eu repetiria antes, como já disse, que o conteúdo exprimido possui sempre sua própria técnica. Caso contrário, há imaginação, mas sob a condição que ela exerce na realidade e não nos limbos. Mas, o que compreendo bem, não daria a acreditar que os fatos diversos sejam por mim os únicos fatos que contam. Ensaiei de fixar minha atenção sobre fatos diversos, na intensão de reconstituir da maneira mais fiel, em me servindo de um pouco de imaginação que pode vir do conhecimento perfeito do próprio fato. Será evidentemente mais coerente que as câmeras surpreendam ao momento mesmo em que eles chegam – e é minha intensão, quando realizo um filme meu em Itália. Bem entendido, não se pode jamais esquecer que todo relato da coisa que vá comunicar implica em uma escolha e, por consequência, o ato criativo do sujeito: mas o sujeito é composto de qualquer tipo no local, ao invés de ser uma reconstituição sucessiva. É isto que chamo de cinema de reencontro. Este método de trabalho deveria conduzir, a meu ver, a dois resultados: antes, ao que concerne ao ponto de vista ético, os cineastas sairão, buscarão o contato direto com a realidade: de outro modo, criaríamos uma produção que traria a novidade de uma consciência coletiva. Porque o nome joga também: se fazemos 100 filmes por ano que se inspirem neste critério, mudaremos os relatórios de produção se não fazemos mais que três, nos submetemos aos relatos das produções tais quais existem hoje.


            A tomada de consciência da realidade que caracteriza o neorrealismo possui duas consequências no que concerne à construção de um roteiro estritamente narrativo:
1) Um cinema que de outra forma contava um fato de onde provinha outro, depois um terceiro, e assim sucessivamente, cada cena era concebida e feita para ser imediatamente obrigada; hoje, quando imaginamos uma cena,  sentimos a necessidade de “permanecer” nesta cena, porque sabemos que ela possui todas as possibilidades de repercutir mais além. Podemos dizer tranquilamente: dê-nos um fato qualquer e nós conseguiremos transformá-lo em espetáculo. A força centrífuga que constitui (mais do ponto de vista técnico do que do ponto de vista moral) a característica fundamental do cinema é transformada em força centrípeta;
2) ainda que o cinema tenha sempre contado a vida em seus fatos mais exteriores, o neorrealismo afirma hoje que ele não pode conter a alusão, mais terna da análise. Ou mais ainda de uma síntese ao interior da análise.
            Daremos um exemplo: a aventura de dois seres que buscam um apartamento. Ainda que uma vez tenhamos colocado como ponto de partida, tomando em consideração o simples pretexto exterior que ele comporta, para passar imediatamente a outra coisa, hoje se pode afirmar que o simples fato de buscar um apartamento deveria constituir todo o tema de um filme, se, bem entendido, este fato estiver escancarado em todos os momentos, com todos os ecos e os reflexos que derivam.
            Compreendemos facilmente que estamos ainda longe da verdadeira análise; podemos falar simplesmente da análise por oposição da síntese grosseira da produção corrente. Por enquanto, não conhecemos mais que uma “atitude” analítica, mas já esta atitude comporta a pulsação movente nas coisas, um desejo de compreensão, de adesão, de participação, e somando tudo, de coabitação.
            Este princípio de análise se encontra na consideração sobre estilo, em seu sentido mais estrito, e oposto à síntese burguesa. A síntese burguesa permitiu encontrar o melhor alimento, a parte selecionada da rede: os cineastas depenam os aspectos mais representativos de uma situação de bem-estar e de privilégio. Ora, para precisar criticamente o alcance do neorrealismo, é preciso sublinhar a parte que leva sempre mais largamente à cultura italiana (e não pode ser de outra maneira, sendo dada a colaboração de mais e mais escritores realistas à criação cinematográfica). Quanto a esta colaboração – que não deve se confinar a oferecer romances, mas que deve contribuir para enriquecer a linguagem cinematográfica, tão rica de possibilidades quanto a linguagem literária, – não há dúvida de que deveria fazer grandes progressos ao cinema, pelo pouco que os escritores se interessam de maneira menos “provisória” que aqueles que o fazem por hábito.
            Disto tenho dito, o neorrealismo, contrariamente ao que foi feito na época da guerra, entendeu que o cinema deve contar pequenos fatos, sem introduzir a menor imaginação, se esforçando por analisar o que seja humano, histórico, determinante e de definitivo.
            Creio mais firmemente que o mundo continua a ir mal porque não conhece a realidade: e a tarefa mais autêntica de um homem de hoje consiste em se engajar para resolver o melhor que puder o problema do conhecimento da realidade. Eis porque a necessidade mais urgente de nosso tempo é a atenção social, mas esta atenção deve ser direta, como já disse, e não se manifestando através de apologias mais ou menos bem sucedidas. Um faminto, um humilhado, faltam ser mostrados com seus nomes e sobrenomes, e não contar uma história onde há um faminto e um humilhado, porque a este momento tudo muda, tudo é menos eficaz, menos moral.


            A verdadeira função de todas as artes sempre foi aquela de exprimir as necessidades de seu tempo; e é a esta função que queremos trazer de volta.
            Ora, algum outro meio de expressão possibilita como o cinema, fazer conhecer as coisas rapidamente e ao máximo de pessoas...
            ...É natural que estes que tenham compreendido as coisas, bem que ainda obrigados por todos os tipos de razões (umas válidas, outras não), de compor histórias “inventadas” segundo a tradição, buscaram introduzir nestas histórias quaisquer elementos que tenham descoberto.
            Eis o que foi efetivamente o neorrealismo na Itália, através de alguns homens.
            Paisà, Roma, cidade aberta, Ladrões de bicicleta, Terra trema, são filmes que contém passagens de uma significação total e que se inspiram na possibilidade de tudo contar; mas, de certo sentido, eles comportam ainda transposições, porque contam uma história e não aplicam simplesmente o espírito documental. Em certos filmes como Umberto D., o fato analisado é bem mais evidente: mas o quadro é aquele do conto habitual, e nós ainda não estamos no verdadeiro neorrealismo.
            O neorrealismo é hoje uma armada pronta para se por em marcha. Os soldados estão prontos atrás de Rossellini, Sica, Visconti. O que os fará partir para o assalto: é somente então que a batalha poderá ser ganha.
            Mas o que importa, é que o movimento começou: ou que vá até o fim, ou que perca uma grande oportunidade, porque em frente ao realismo se trabalham perspectivas mais vastas que tudo que se pode imaginar...
            Transformar em espetáculo os fatos cotidianos da vida não é coisa fácil: se pede intensidade de visão, assim como faz o filme com aquele que o vê. Se agita para dar à vida do homem sua importância histórica em todos os instantes.
            Nisto que concerne outros filmes recentes com os quais colaborei, digo, por exemplo, não tenho com Quando a mulher erra por documento importante de minha carreira de neorrealista, porque o fato da coprodução reduziu a quase nada a inspiração primitiva, que portava o exame de um momento e de um lugar bem determinados.
            Entre meus próximos filmes, Italia mia tem um ponto de partida neorrealista num sentido bem preciso: ele parte da necessidade de conhecer profundamente meu país e de minha confiança absoluta nos encontros que faria. Os “aspectos” do neorrealismo figuram na ideia central de meu “filme enquete”, Amore in Citta (que sai em breve); e diria ainda Siamo donne, ao menos pelo fato que ele reencontra um sentido moral na necessidade de comunicação que inspira as estrelas que se confessam ao público. Em presença destas confissões, o espectador deve se libertar do complexo de inferioridade que experimenta frente ao mito da estrela.


            Foi colocada todos tipos de acusação contra o neorrealismo. Aqui as principais:
1)O neorrealismo descreve unicamente a miséria
O neorrealismo pode e deve estudar a miséria como a riqueza; começamos pela miséria simplesmente porque ela é uma das realidades mais vivas de nosso tempo: desafio qualquer um a me demonstrar o contrário. Creia ou finja crer que antes de uma meia-dúzia de filmes sobre a pobreza o tema já esteja esgotado é um grande erro. O tema da pobreza (os ricos e os pobres) é um daqueles ao qual se pode dedicar durante toda uma vida. Nós apenas começamos. E se os ricos fecham as caras perante Milagre em Milão, que é uma fábula, eles verão melhor. Coloco-me, eu mesmo, entre os ricos: o que há em nós os ricos, não é somente a riqueza com dinheiro (o dinheiro que não é senão o aspecto mais suntuoso e o mais aparente), mas todas as formas de injustiça e violência que fluem. Não existe uma posição “moral” do homem que dito rico.
            2) O neorrealismo não oferece soluções, não mostra rotas novas: as conclusões dos filmes neorrealistas são absolutamente evasivas.
            Respondo esta acusação com todas minhas forças. Cada momento de um de nossos filmes é uma resposta contínua a interrogações. Quanto às soluções, não é do artista como tal as considerar: ele simplesmente, e já é muito, faz sentir a necessidade e a urgência.
            3) Os fatos não interessam a ninguém, nem constituem um espetáculo
            Quando contornamos a análise do “fato qualquer”, os cineastas não obedecem os desejos mais ou menos expressos dos fundos capitalistas do cinema e do próprio público, sucumbindo a uma espécie de preguiça, porque a análise de um fato é sempre mais difícil de efetuar que a enumeração de um único arquivo de um fato antes de outro. Em outras palavras, este problema de aprofundamento que contornam os cineastas.
            O verdadeiro cinema neorrealista torna-se naturalmente um cinema menos caro que o cinema atual porque seu conteúdo pode ser exprimido mais economicamente. A consequência mais importante é que ele pode se libertar assim do capitalismo. De fato, todas as artes buscam se exprimir pelo meio mais econômico: mais uma arte é moral e menos ela implica em custos. A imortalidade social do cinema vem de seu preço elevado. O cinema ainda não encontrou sua moral, sua necessidade, sua qualidade, porque custa muito caro.
            Temos a ilusão, – chame assim, se quiser, – que conosco começa algo de diferente. Com efeito, o homem que sofre à minha frente é absolutamente diferente do homem que sofreu há cem anos. Concentro toda minha atenção no homem de hoje. E a bagagem histórica que carrego comigo, e que além disso eu não faria – e nem poderia – me libertar brutalmente, e nem devo me impedir de ser tudo ao meu desejo de emancipar este homem de seu sofrimento em me servindo de meios dos quais disponho. Este homem (é uma de minhas ideias fixas) tem um nome e sobrenome, pertence à sociedade que também nos concerne sem erro possível: sinto sua fascinação, de modo que sinto de modo premente, que sou obrigado a falar dele, dele e não de uma personagem inventada, porque a este momento a imaginação se interpõe entre a realidade e eu...
            ...Me é muitas vezes pedido para explicar porque os atores são impedidos de atuar no cinema: digo que os atores devem atuar no cinema, mas que eles não têm grandes coisas a fazer com o neorrealismo. O cinema neorrealista não demanda aos homens verem os atores profissionais; suas habilidades profissionais têm à sua profissão homens, que eles dotam da consciência mais profunda. Mas é evidente que esta consciência não pode ser criada ou reforçada através do conhecimento que farão eles próprios e outros, conhecer o que é melhor alcançado pelo cinema neorrealista.
            Mas então, me dirão, como e quando intervém a imaginação? Ela se agita de uma imaginação particular e de um novo método a ser utilizado.
            Aqui um exemplo: uma mulher vai até o sapateiro comprar sapatos para seus filhos. Estes sapatos custam 7.000 liras. A mulher procura pagar-lhe menos.
            A cena dura dez minutos. E acontece se eu fizer um filme de dez horas. Como? Analiso o fato em todos os seus elementos constitutivos, o que vem antes, o que vem depois, e o que se passa entre tempos.
            A mulher procura os sapatos: o que faz seu filho durante este tempo? Que se passa na Índia, que possa ser relacionado com um par de sapatos?
            Os sapatos custam 7.000 liras, como eles chegam às mãos desta mulher, o problema do custo que lhes impõe, o que eles representam para ela?
            E o sapateiro que vende os sapatos, quem é ele? O que acontece entre estes dois seres? Ele também tem dois filhos para alimentar, com quem conversar. Você quer entender a conversa deles? Eis então.
            E assim sucessivamente. Vamos ao fundo das coisas, de mostrar as relações entre os fatos e o processo de onde nascem os fatos. Se analisamos o tipo de “achado de um par de sapatos”, veremos em nossa frente um mundo complexo e vasto, rico em peso e valor, nestes motivos práticos, sociais, econômicos, psicológicos. O banal desaparece, porque não existe.
            Sou contra as personagens excepcionais, os heróis, sempre experimentei um ódio instintivo a seu respeito. Me sinto ofendido por sua presença, excluído de um mundo ao mesmo tempo que milhões de outros seres.
            Somos todos personagens. Os heróis criam complexos de inferioridade nos espectadores. É chegado o momento de dizer aos espectadores que eles são os verdadeiros protagonistas da vida. O resultado será uma constante recordação da responsabilidade e da dignidade de cada ser humano. Tal é a ambição do neorrealismo: fortalecer todo o mundo, dar a cada um a consciência que ele é humano.
O termo neorrealismo, em seu sentido mais amplo, implica na eliminação da colaboração técnico-profissional, cumprindo a do roteirista.
Nos manuais, nas gramáticas, a sintaxe não possui um sentido, não mais que os conceitos primeiro-plano, contracampo, etc...
Cada um de nós faz roteiro a seu modo. O neorrealismo rompe os esquemas, rejeita todos os dogmas. Ele não pode possuir primeiro-plano ou contracampo a priori.
O tema, a adaptação, a realização não devem ser três fases distintas de um mesmo trabalho: são hoje, mas é uma anomalia.
O roteirista e o adaptador devem desaparecer: chegará um autor único, o realizador, que terminará por não ter nada de comum com o diretor de cena do teatro.
Tudo torna-se móvel, qualquer fato em seu filme, tudo é continuamente possível, tudo é pleno de possibilidades infinitas, não somente durante a filmagem, mas mais ainda durante a montagem, a mixagem, etc...
Depois de 1934 passei a trabalhar para o cinema italiano, e sei que ajudei a destruir alguns esquemas habituais. Se me coloco entre alguns que creem no neorrealismo como um chamado poderoso que podemos endereçar às coisas, não é uma falha de imaginação, porque, ao contrário, me retenho a duas mãos para não ser arrastado pela minha imaginação. A imaginação no sentido tradicional, vendo: o neorrealismo exige de nós que nossa imaginação se exerça in loco, sobre o atual, porque os fatos não revelam sua força imaginativa natural quando eles são estudados e aprofundados. Eis porque eles devem ser espetáculo, porque são revelação.

E sei bem que se pode fazer filmes maravilhosos como aqueles de Charles Chaplin, e que estas não são obras neorrealistas. Sei bem que existem americanos, russos, franceses, e assim em diante, que fazem obras-primas honrando a humanidade: eles certamente não estão estragando a película. E Deus sabe bem que obras magistrais ainda nos serão dadas, seguindo seu gênio, e com estrelas, filmadas em estúdios, a partir de romances. Mas os homens do cinema italiano, por conservar e buscar seu estilo e inspiração, depois de ter entreaberto corajosamente as portas da realidade, devem agora, creio, trabalhar grande.

(originalmente publicado em Cahiers du Cinéma, março de 1954, n° 33, p. 24 - 31)

sexta-feira, 9 de maio de 2014

Umberto D. de Vittorio De Sica (1952)


direção: Vittorio De Sica;
roteiro: Cesare Zavattini;
fotografia: G. R. Aldo;
edição: Eraldo da Roma;
estrelando: Carlo Battisti, Maria Pia Casilio, Lina Gennari.

O neorrealismo italiano se destaca no mundo do cinema como um dos movimentos mais influêntes da história da sétima arte. Foi um dos principais motivos catalizadores do surgimento do chamado "cinema moderno" (se é que existe um). Caracteriza-se pela liberdade dada à câmera para contar histórias e juntamente com estas histórias apresentar críticas políticas e sociais, mostrando para o público as mazelas a que passava o povo italiano na fase durante e do pós-guerra. Faziam parte deste movimento alguns dos cineastas mais conhecidos do cinema italiano e que figuram entre as principais personagens do cinema mundial. São eles Roberto Rossellini, que inaugurou o movimento com seu filme Roma, cidade aberta, Luchino Visconti, Federico Fellini e Vittorio De Sica. Dentre todos estes, De Sica surge como um cineasta mais voltado para o drama pessoal, procurando olhar os problemas que os indivíduos possuem em um país tentando se reconstruir.

Assim surge Umberto D., tido por alguns como o ultimo filme neorrealista, que apresenta-nos Umberto (Carlo Battisti), aposentado tentando viver no mesmo lugar em que vive há mais de vinte anos. O problema: seu lar é alugado. Umberto não possui casa própria, necessita pagar aluguel todos os meses. Sua aposentadoria não é suficiente para que ele possa pagar o aluguel e comer. O filme inicia com um protesto com vários aposentados caminhando em direção à casa do primeiro ministro italiano, exigindo falar diretamente com o primeiro ministro. Mas o protesto é dispersado pelas forçar militares que atiram carros sobre a multidão de senhores que já não são tão fortes para fazer qualquer coisa a respeito a não ser fugir. - A cena é belíssima, a orquestração de De Sica apresenta uma confusão, um protesto bagunçado, são diversas as vozes e não conseguimos ouvir ninguém direito, nem mesmo o protagonista. De repente a voz de um representante do governo se faz ouvir, mas para dizer que os aposentados não tinham autorização para fazer a manifestação. Em seguida à fala do representante do governo surgem na tela os carros dos militares dirigindo-se para os manifestantes com o intuito de dispersá-los. Num primeiro plano temos os carros vistos por trás encaminhando-se para a praça, no segundo plano os carros entram na praça organizados, o terceiro plano, com a câmera posicionada do alto, mostra os carros movimentando-se em direção à multidão dispersando-a.


Mas o drama é de Umberto, e a câmera, embora mostre as pessoas, nutre um interesse em especial por este senhor que vive só com seu cachorro, cachorro este que está sempre ao seu lado e que lhe faz companhia até mesmo no protesto. Durante a fuga, Umberto se esconde em um prédio junto a outros aposentados. Inicia-se uma conversa entre eles de onde nosso protagonista descobre que, mesmo estando todos pedindo aumento da aposentadoria, apenas ele (Umberto) possui dívidas e realmente necessita deste aumento. Terminada esta conversa, Umberto sai do prédio conversando com um senhor aposentado que lhe parece amigável até que o protagonista tenta lhe vender um relógio para pagar suas dívidas. Por fim lá está Umberto só, acompanhado de Flike, seu cachorro. E será assim pelo resto do filme. Ninguém lhe faz companhia além de seu cachorro e de Maria, uma menina que lhe confidencia estar grávida e não saber quem é o pai de seu filho. A trama se desenvolve em meio a estas pessoas, tendo foco principal no personagem título do filme. É para elas que a câmera de De Sica se volta e carinhosamente as retrata. Este é o termo certo para comentar sobre a visão que é desenvolvida pelo diretor neste filme: é um retrato carinhosos de pessoas que sofrem, mas que tentam manter-se dignas frente aos seus problemas.


Para contar-nos esta história, De Sica não necessita de atores profissionais, qualquer italiano sensível poderia fazer aquele personagem. Daí constrói-se a poética do filme, nenhum dos atores do filme, incluindo o protagonista, eram profissionais. Eles foram escolhidos por terem o perfil certo de quem estariam representando e não um rosto fabricado para mostrar a realidade. É nesta busca pelo real em que se apresenta a poesia do cinema de De Sica, ao menos nesta obra. Ele extrai de seus não-atores os seus personagens e de seus personagens os seus sentimentos mais profundos. Isto se traduz em algumas cenas mais óbvias, como quando acompanhamos uma ida de Umberto ao centro financeiro de Roma para - como muitos outros - pedir esmola. Ele fica parado com a mão estendida em uma luta moral consigo mesmo que se transfere para a mão. A câmera de De Sica não sente a necessidade de estar muito perto do personagem para mostrar esta batalha interior, mesmo de longe conseguimos ver e talvez seja devido a esta distância que enxergamos todo o desdobrar da ação. - Um homem passa por Umberto, vê sua mão estendida e volta para lhe dar dinheiro. Umberto ainda em conflito moral vira a mão, não aceitando o dinheiro que lhe seria dado pelo homem que estava de passagem. Em outro momento é a vez de Maria (Maria Pia Casilio), a primeira a acordar na casa em que trabalha - a mesma de Umberto -, dirige-se para a cozinha para preparar o café. Enquanto faz suas ações rotineiras De Sica extrai dela a sua emoção, sua tristeza perante sua situação, e ela chora enquanto mói o café.

Um filme belíssimo, portanto. Trata-se de um filme sobre um país em crise, sim, mas antes de tudo um filme sobre pessoas. Um filme humano sobre humanidade.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

A Morte (La Commare Secca) de Bernardo Bertolucci (1962)


direção: Bernardo Bertolucci;
roteiro: Pier Paolo Pasolini, Bernardo Bertolucci, Sergio Citti;
direção de fotografia: Giovanni Narzisi;
estrelando: Francesco Ruiu, Giancarlo De Rosa, Vincenzo Ciccora.

"A Morte" abre com uma ponte vista de baixo. Não vemos toda a extensão da ponte, nem os carros que passam sobre ela. De repente diversos pedaços de papel são lançados para o ar, descendo em direção à parte de baixo da ponte. Alguns destes papeis, picotados de revistas, ficam presos no concreto, outros no mato alto que se apresenta às margens do rio. Aqueles que conseguem manter sua caminhada nos revelam o corpo de uma mulher. Ela está deitada, virada para o chão, morta.


Assim como são necessários os pedaços de papel para fazer-nos enxergar o corpo da mulher morta debaixo da ponte, Bernardo Bertolucci necessita de alguns personagens para nos contarem o que aconteceu na noite anterior e assim chegar ao assassino da mulher. O diretor nos apresenta uma investigação, portanto. Em outros grandes filmes em que seguimos um personagem que nos conta a história, nada além daquilo que ele percebeu durante a ação nos é mostrado. Talvez possa ser neste ponto em que possamos enxergar uma falha, talvez proveniente da inexperiência do estreante (que antes deste filme não havia atuado como diretor nem mesmo em curta-metragem). Se a narrativa nos é guiada por alguém que dela participou, como podemos ter acesso à algo que ele não notou, que ele não viu? Será que a câmera de Bertolucci seria uma câmera que não teria qualquer participação nas ações, faria o simples trabalho de documentação dos fatos? Não parece ser este o ponto trabalhado pelo diretor, uma vez que a câmera está sempre a segui-los frente aos seus depoimentos ao investigador da polícia. 

Mas não podemos dizer que o trabalho é de todo ruim. Bertolucci sabe apresentar a história e sabe como filmá-la, por mais inadequada que possa parecer a forma como ele apresenta seus personagens. Aqui nós temos um cineasta que no auge de sua juventude e imaturidade frente ao seu estilo estético, se deixa levar pelas construções ideais de terceiros de como deveria ser feito um filme para que seja considerado um "filme de arte". A influência do cinema neorrealista é inegável, uma vez que o cineasta vai à periferia filmar estes personagens marginais (no sentido de serem personagens à margem da sociedade), em cenários reais, exibindo as mazelas que afligem seu povo. E para completar esta influência neorrealista temos os não-atores contratados para interpretarem os suspeitos.


Vale deixar aqui também o belo trabalho que Giovanni Narzisi, o fotógrafo do filme, faz ao lado de Bertolucci. São diversos os planos sequência que formam o filme, e todos eles acontecem debaixo de iluminação natural. A película é filmada com a câmera na mão que segue os personagens como se estes vivessem em uma guerra. A guerra do cotidiano. A guerra dos miseráveis em um país que lutava para sair de sua miséria causada por uma grande guerra. A guerra travada pelos mais pobres para poder sobreviver. E, como em toda guerra, alguém tem que morrer. Mas desta vez, o assassino terá que ser punido. É em busca desta punição que a câmera de Bertolucci e Narzisi corre atrás. E como a câmera consegue desnudar a verdade quando filma as pessoas, logo no interrogatório, antes que um dos interrogados nos conte sua história, já sabemos que é o culpado.

Trata-se de um ensaio de um grande artista em formação, de um artista em busca de uma visão própria acerca de seu veículo representativo.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Neorrealismo Italiano


Muito se fala sobre as características sociais presentes no cinema neorrealista italiano, servindo em diversas ocasiões como definição do movimento. Mas enquanto arte, necessita-se de uma definição estética para que o movimento possa ser considerado um movimento artístico. É partindo desta necessidade de busca de uma
 característica que estivesse presente em todos os filmes do movimento, que se encontra o caráter realista dos planos sequência. Quando nota-se o poder do plano-sequência (unido à liberdade da câmera na mão), nota-se também seu grande valor artístico, o poder que trás à obra. Nele está presente uma veracidade perante dos fatos que parece velada quando outros planos nos são apresentados. Eles possuem um caráter documental. Parecem mais reais para o espectador porque com eles o cinema já não parece tão distante, afinal de contas nossas vidas são vividas em longos planos sequência. Assim como o olhar do indivíduo - que anda por sua cidade e, por mais que tente, não pode deixar de notar o movimento ao seu redor - funciona a câmera neorrealista. Daí surge a afirmação de Deleuze em Imagem-Tempo: "o real não era representado ou reproduzido, mas 'visado'". 


Mas não tão somente de planos-sequência são feitos os filmes neorrealistas. Exemplo disto é "A Estrada da Vida", de Federico Fellini, que não possui muitos planos-sequência, mas que tem esta realidade visada em cada plano. O poder do filme reside em outra técnica muito conhecida, o travelling. Em diversas cenas a câmera mostra a relação entre Gelsomina e Zampano, as agressões que ele inflige a ela, e ao fim das cenas temos o olhar triste de Giulietta Masina (intérprete de Gelsomina) a olhar para Anthony Quinn - sempre fora de quadro - enquanto a câmera se aproxima dela, trazendo neste movimento a afeição do espectador pela protagonista sofredora do filme.
O mesmo pode ser dito da grandiosa cena que mostrou para o mundo o poder de Anna Magnani, de Roberto Rossellini e deste novo cinema italiano, quando o marido de Pina (Magnani) é levado preso por uma tropa da Alemanha Nazista e Anna Magnani passa a corre atrás do carro em que está a levando seu marido e de repente ela é asssassinada na frente de seu marido, seu filho e seus amigos, no meio da rua, caindo no chão enquanto corre. Esta cena é feita com diversos cortes que fazem com que o poder da cena cresça enquanto a ação ocorre.