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sábado, 21 de junho de 2014

Hiroshima, Meu Amor de Alain Resnais (Hiroshima, mon amour - 1959)


direção: Alain Resnais;
roteiro: Marguerite Duras;
fotografia: Michio Takahashi, Sasha Vierny;
edição: Jasmine Chasney, Henri Colpi, Anne Sarraute;
estrelando: Emmanuelle Riva, Eiji Okada.

Hiroshima, meu amor foi lançado no Festival de Cannes de 1959 em um momento que pode ser considerado o ápice da chamada nouvelle vague. O longa-metragem de estreia de Alain Resnais criou em torno de si um burburinho que se tornou, muito rapidamente, um estrondo demorado. Tão logo de seu aparecimento na sala de cinema do festival ele fora comentado e analisado por muitos críticos que ficaram boquiabertos com uma obra peculiar. De fato, Resnais se apresenta com este filme como um dos cineastas mais criativos da nouvelle vague. Junto a Jean-Luc Godard, ele procurou desenvolver uma estética diferenciada para um cinema particular que visava desenvolver. É muito interessante neste sentido nos depararmos com alguns textos escritos na época, quando o cineasta era ainda uma novidade e ninguém sabia que aquela obra ainda ganharia algumas parceiras para acompanhá-la pelo percurso da história do cinema. A tentativa dos críticos e estudiosos de desvendar o mistério que é Hiroshima, meu amor é prazerosa para todos aqueles que também ficaram atormentados com o filme. Digo o mistério que é Hiroshima, meu amor porque mesmo hoje, depois de diversos filmes feitos pelo cineasta - desde os mais palatáveis como Ervas daninhas até os mais complexos como O ano passado em Marienbad - este filme continua um filme belíssimo para os olhos, mas dificílimo para se escrever alguma coisa sobre. 


Alain Resnais é um cineasta que muito admiro. Gostaria de que houvessem mais diretores como ele mundo afora, mas não existem. Talvez este seja o lado positivo da coisa, é o que o faz único e tão impressionante. Nesta sua estréia o filme é difícil de ser analisado, mas muito fácil de ser sentido. É o resultado da parceria de Resnais com a escritora Marguerite Duras. Resnais parece neste ponto ter noção de seu cinema cerebral e para poder combater o tédio que poderia causar uma obra somente racional ele chama para acompanhar-lhe nesta empreitada uma escritora, para adicionar a este trabalho uma história. É o que faz deste filme tão espetacular e o mais famoso da carreira de Resnais. Ele consegue aquilo que muitos diretores de vanguarda não conseguem entender: o cinema é antes de qualquer coisa um entretenimento, logo deve contar uma história. Aliar uma história a uma forma cuidadosamente pensada e milimetricamente executada confere à obra o caráter de obra de arte.

Mais ainda do que seu filme seguinte, devo dizer. O ano passado em Marienbad, apesar de ser um filme espetacular que mesmo hoje, em 2014, não envelheceu, é somente uma obra para apaixonados por um cinema provocativo. Hiroshima, meu amor, é um filme que também não envelheceu porque não procura ser datado. É algo que muito facilmente acontece com outros filmes que procuram fazer de sua representação uma denúncia social. São filmes que ficam marcados com o espírito de um tempo, não causando o mesmo impacto décadas depois. É um filme sobre pessoas de qualquer período. Mais do que ser um filme sobre pessoas é um filme que procura quase uma resposta filosófica a um tema que Alain Resnais viria a buscar em outros filmes de sua carreira (como o já citado O ano passado em Marienbad): a memória.


Partindo de um tema tão diferente para a construção de um filme é que Alain Resnais consegue encontrar o trunfo que faz dele um mestre. A memória é um tema muito pouco trabalhado no cinema e quando trabalhado os diretores se valem de lugares-comuns que fazem de suas obras muito parecidas com todas as outras que trabalham com o tema. É no cinema de Resnais que encontramos toda a complexidade do tema que podemos encontrar em estudos filosóficos. E, neste século do cinema, não existira veículo melhor para poder apresentar uma reflexão sobre tema tão importante. Importante porque a memória se apresenta por meio de representações imagéticas que nos remetem a um passado vivido. É por meio destas representações imagéticas que também trabalha um cineasta, e é por meio delas que Resnais procura desvendar os mistérios por trás da memória.

Hiroshima, meu amor nos apresenta uma atriz francesa que se encontra em Hiroshima para fazer um filme sobre a paz. Lá ela encontra um jovem morador da cidade que não sofreu com o tormento da bomba atômica atirada sobre a cidade, porque estava a lutar pelo exército nipônico durante a guerra. Eles se encontram na cidade e iniciam um romance. O conflito das memórias dos personagens, em especial dela, se encontram desde os primeiros momentos do filme. É neste primeiro momento, em que ela diz ter lembranças de Hiroshima enquanto ele nega que fica a pergunta no ar: poderíamos criar lembranças de coisas que não vivemos? A memória pode trabalhar com aquilo que é apresentada àquele que irá reter a lembrança. Por isso é possível que a atriz francesa, quando confrontada com as imagens das vítimas da bomba no museu criado na cidade para manter viva esta lembrança (porque é para isto que os museus servem), tenha visto as imagens de arquivo do museu e transformado-as em suas próprias memórias. Ela as viu, e é como se tivesse vivido-as. 


Transforma-se neste caso um embate com o próprio cinema (e esta provocação pode ser notada quando, em meio a cenas reais dos feridos pela bomba, Resnais insere um filme de reprodução, com atores reproduzindo as pessoas feridas no momento logo após a explosão da bomba). Se assisto a um filme, a lembrança do que nele se passou é de fato minha? Não vivi o filme, apenas estive em frente a ele. As imagens que nele aparecem são impressas em minha mente, mas não são vividas por mim, mas pelos personagens na tela. Seriam as lembranças de um filme que assisti memórias minhas, de algo que vivi (o filme que assisti) ou seria uma memória criada a partir de algo com que me deparei (uma obra de ficção)? Ah!, Hiroshima, meu amor, um filme que nos deixa com mais perguntas do que respostas...

[leia também: Você não viu nada em Hiroshima e O esquecimento começa pelo olho]

sexta-feira, 13 de junho de 2014

Eu, Um Negro de Jean Rouch (moi, un noir - 1958)


direção: Jean Rouch;
roteiro: Jean Rouch;
edição: Catherine Dourgnan, Marie Josèph, Yoyotte;
estrelando: Oumarou Ganda, Gambi, Petit Touré.

O cinema de Jean Rouch se apresenta com certas particularidades que o destacam frente ao cenário cinematográfico mundial. Neste filme em especial, além da busca pelo contato com outras civilizações, temos uma construção fílmica interessante que viria a influenciar, em especial, Jean-Luc Godard. Rouch em Eu, um negro dá a seus personagens a total liberdade para criarem uma história e narrarem aquilo que vemos na tela. A desconexão entre a narração e as imagens não faz com que o filme perca sua qualidade e sim ganhe força partindo de uma história contada por quem aparece na tela contando as histórias que vive no lugar em que as vive. Esta busca pela identidade dos lugares, dos personagens e das tramas narradas no cinema é o motor principal do cinema europeu do pós-guerra até metade da década de 1960, e é em busca desta identidade conjunta que parece buscar a câmera de Rouch.

Jean Rouch, antes mesmo de querer contar uma história por meio das imagens, tem como principal motivação um estudo etnológico de seus retratados. Por isso ele dá liberdade para que seus personagens possam se criar e crescer na tela. Eles começam por criar o nome de seus personagens, o que a partir deste momento já diz muito sobre quem são e as influências que ditam suas ações. Os nomes de seus personagens são baseados em personagens da cultura estadunidense que por meio de seu império capitalista se apoderou e modificou os quereres e não-quereres de quase todo o ocidente. Neste meio encontram-se os africanos, que vivem em situações miseráveis, tais como são apresentados pelas lentes de Rouch, mas que sonham em crescer, prosperar, dentro desse sistema econômico, mesmo que a cidade em que vivem não lhes ofereça muito. Nesta vida sem motivações eles se agarram à religião. Não é mais sua religião original, mas a religião que lhes fora imposta pelos europeus, em que no centro da cidade se ergue imponente uma igreja católica. Do outro lado estão os islâmicos, cada vez mais populosos em terras africanas e que no ano em que o filme fora filmado já ocupavam toda uma vasta rua da cidade de Treichville. Esta influência proveniente de terras estadunidenses é logo pontuada por Rouch no princípio do filme quando ele nos apresenta os personagens que seguiremos nos 70 minutos seguintes de projeção: a influência exercida pelo cinema hollywoodiano e pelo boxe norte-americano nos jovens afircanos faz com que eles escolham para seus personagens nomes como Edward G. Robinson e Eddie Constantine.


A liberdade que é dada aos jovens retratados é proposital para que por meio dela eles possam libertar seus sonhos, seus desejos, e mais além, o que eles pensam do mundo em que vivem. Os sonhos deles já são, se não os mesmos, muito parecidos com o de diversas outras pessoas que vivem no ocidente. É o sonho de ter uma casa própria, constituir uma família, ter um carro. Essa tríade família-carro-casa pontua o sonho que fora implantado na mente de toda uma civilização para sustentar um modelo de mundo que hoje está vigente. Mas nem todo mundo pode ter tudo isso, e mais ainda um jovem africano que não tem muitas perspectivas de ascender num mundo que coloca as pessoas em uma pirâmide, os mais pobres que estão na base da pirâmide nunca chegarão a vislumbrar a vista do topo. E esta lição é deixada quando vemos um italiano roubar a garota de um dos personagens do filme com quem este sonhava em se casar e construir sua família. Outro personagem é preso. Eles podem até sonhar com uma vida melhor, mas a realidade sempre lhes dará um banho frio e lhes cortará as asas.

Do lado da construção do discurso fílmico encontramos uma pérola. É o filme que influenciou diretamente Godard e seu Acossado e a sua montagem com saltos temporais curtos ou longos se baseando em um mesmo cenário com os mesmos personagens. Os saltos são realizados para que nada do que acontece nos momentos retratados fujam ao espectador, para que este possa ter a impressão de que o filme conseguiu ser o mais abrangente possível ao buscar imagens daquela localidade (com uma câmera estática não poderíamos acompanhar os personagens e sua movimentação frenética e com a câmera em movimento não poderíamos abarcar toda a extensão espacial que é retratada quando podemos simplesmente pular de um lugar para outro). Além destes saltos temos um filme que foi completamente narrado, mostrando para o jovem aspirante a cineasta quanta liberdade esse processo poderia lhe dar - isso levaria Godard mais tarde a fazer suas "brincadeiras" com as linguagens cinematográfica e falada.

quinta-feira, 5 de junho de 2014

Nas Garras do Vício de Claude Chabrol (le beau Serge, 1958)


direção: Claude Chabrol;
roteiro: Claude Chabrol;
fotografia: Henri Decae;
estrelando: Jean-Claude Brialy, Gérard Blain, Michèle Méritz, Bernadette Lafont.

Tal como Robert Bresson conseguira alguns anos antes levantar a produção de Um condenado à morte escapou, Claude Chabrol conseguiu, frente à Companhia Nacional de Cinematografia (CNC), uma premiação em dinheiro para poder levantar seu primeiro longa-metragem. Este prêmio em muito estimulou o cinema francês, mas somente ele não era motivo para garantir a distribuição dos filmes. Nas garras do vício, o tal primeiro filme de Chabrol, fora filmado numa comuna no interior da França no inverno de 1957-1958, mas somente fora lançado nos cinema em fevereiro de 1959, exatamente um mês antes de Os primos, seu segundo longa. Foi devido ao sucesso deste seu segundo filme no festival de Berlim, em que Akira Kurosawa levou o urso de prata de melhor diretor, que o jovem estreante saiu coroado com o urso de ouro - o melhor filme do festival.

O sucesso de Chabrol com seu segundo filme não somente abriu caminho para os demais cineastas estreantes como para ele mesmo, como já fora colocado acima. Neste filme acompanhamos François (Jean-Claude Brialy) que morou em um vilarejo no interior da França durante sua juventude, saíra alguns anos antes para fazer universidade e agora retorna para poder descansar depois de ter tido alguns problemas de saúde. Nele encontra algumas figuras que fizeram parte de sua juventude, incluído Serge (Gérard Blain). Serge teve a oportunidade de ter feito o mesmo percurso de François, mas não o fez quando uma namoradinha sua ficou grávida, o que o impediu de deixar o vilarejo. Na trama fica implícito o marasmo da vida em um lugarejo como o apresentado no filme, em que somente pode-se crescer caso o indivíduo saia deste lugar. E por ter voltado para ele François irá pagar por este retorno.


Este é considerado o primeiro filme da nouvelle vague, embora não apresente nenhuma novidade estética como seriam apresentados mais tarde por Jean-Luc Godard e Alain Resnais em suas obras de estreia - o que define o movimento como um movimento que não possuía uma definição estética, mas que havia surgido devido a diversos artigos que eram constantemente publicados pela imprensa francesa frente a uma nova geração de pensadores de cinema que nascia no país. Esta geração de pensadores aos poucos começava a deixar seus lápis de lado para pegar a câmera e escrever em película. Entre 1957 e 1958 muitos dos diretores que vieram a mais tarde formar a "geração nouvelle vague" estavam em seus primeiros curtas-metragens: Jacques Rivette terminava O truque do pastor, Truffaut filmava seu curta Os pivetes, e Godard filmava Operação concreto.

O filme apresenta sua história embebido pela estética neorrealista, seguindo seus personagens pelas ruas do vilarejo em que decidiram filmar a história, sem o uso de luz adicional e com atores estreantes - deveriam ser rostos que não fossem facilmente reconhecíveis pelo público, e mesmo se tratando de atores, eles deveriam ter o rosto de pessoas normais, que transparecesse que o filme fora filmado com não atores. Esta perspicácia de Chabrol neste primeiro filme da nouvelle vague francesa foi seguida por seu companheiros porque, embora buscassem uma naturalidade que não era encontrado naquilo que Truffaut chamava depreciativamente de "cinema francês de qualidade", suas histórias possuíam um peso dramático extremamente pesado para poder ser trabalhado com não-atores. Estes dramas deveriam ser sentidos pelo espectador e somente por meio do trabalho dramatúrgico eles poderiam surgir na tela com todo seu poder. Neste filme, Serge é alcoólatra, e o poder da atuação de Gérard Blain é o que imprime na película toda a sensibilidade da trama que está a ser apresentada. Por exalar todo este peso é que parte da direção de Chabrol ter cuidado com o que filmar e de que forma filmar. 


Serge quando enxerga François, vê aquilo que ele poderia ter sido, mas não é. Ele devolve esta frustração em agressões a todos aqueles que o cercam. Sua esposa Yvonne (Michèle Méritz) é quem mais sofre. Ela o quer por perto, está grávida novamente e espera não perder este filho (a criança que impedira Serge de sair do vilarejo para estudar morrera no parto). O cuidado do diretor ao filmar tais personagens é o que deve ser observado atenciosamente, porque é a visão do sujeito cineasta neste momento que separa o filme de ser um filme sentimental de um filme sadista (tomando o termo sadista da maneira mais pejorativa possível). O olhar de Chabrol sobre aqueles personagens não procura julgá-los, mas humanizá-los, mostrar que eles agem da forma como agem por determinados motivos, motivos estes que ele busca durante todo o filme. Trata-se de mais um filme que busca humanismo, tal como fará de forma mais bela por Truffaut em Os incompreendidos, e que marca a obra de alguns dos diretores do movimento de rejuvenescimento do cinema francês. Atenção para a fotografia de um dos maiores fotógrafos do cinema nouvelle vague, Henri Decae.

sábado, 17 de maio de 2014

Um Condenado À Morte Escapou de Robert Bresson (un condamné à mort s'est échappé ou Le vent souffle où il veut, 1956)


direção: Robert Bresson;
roteiro: Robert Bresson, André Devgny (memórias);
fotografia: Léonce-Henri Burel;
edição: Raymond Lamy;
estrelando: François Leterrier, Charles Le Chainche, Roland Monod.

O cinema de arte sempre nos apresenta algo de extraordinário. São artistas nos apresentando novas formas de ver o mundo ou de enxergar o espetáculo cinematográfico. Os chamados filmes de arte não costumam atrair atenção do grande público nem de encher as salas de cinema quando são lançados. Passam despercebidos pela maioria que não sabe creditar o real valor de tais obras. Mas mesmo assim são grandes obras, sendo elas as responsáveis por podermos utilizar um termo como "espetáculo cinematográfico" como já utilizado neste mesmo parágrafo. São filmes conscientes de ser filmes, mas que possuem uma ambição maior: a de ser cinema. Ou neste caso de ser cinematógrafo.

Robert Bresson é um grande nome do cinema mundial porque fez filmes conscientes de sua condição de filmes, mas que tinham a vontade de ser obras cinematográficas (e que alcançavam seu objetivo). Os grandes nomes não surgem sem motivo. Como diria Jacques Aumont: "todo cineasta francês um pouco interessante deve algo a Bresson". E não só os cineastas franceses possuem este débito, também Michael Haneke já algumas vezes, ao enumerar seus filmes preferidos, coloca uma obra de Bresson. O cineasta francês nem sempre pode se orgulhar desta visão favorável de seu cinema - muitos eram os críticos que não enxergavam com bons olhos os filmes que ele fazia. Mas isto estava prestes a chegar ao fim. François Truffaut foi um dos principais membros daquilo que poderíamos intitular "partido pró-Bresson" e que enxergava e provava em suas análises a arte do cinema de Bresson.


Como constantemente acontece ao cinema de arte, os primeiros filmes de Bresson não foram bem sucedidos. Os distribuidores não acreditam nos filmes de arte, nem o público - que em grande parte enxerga no espetáculo cinematográfico somente um meio de entretenimento (e a arte nem sempre é para ser divertida). A distribuição de seus filmes não são bem feitas o que interfere no sucesso das mesmas. Logo após o lançamento de Diário de um pároco de aldeia, Bresson desenvolve alguns projetos, mas nenhum deles é financiado. Passa, assim, cinco anos sem lançar nenhum filme nos cinemas. Neste meio tempo, o Centro Nacional de Cinematografia (CNC) desenvolve algumas formas de financiamento, além de prêmios para obras de pretensões mais artísticas e empresas em nascimento. É graças a um destes prêmios que Bresson consegue viabilizar a produção de seu próximo filme: Um condenado à morte escapou

O filme é produzido e distribuído graças a um prêmio que recebe da CNC. O prêmio lhe permite um lançamento digno o que lhe possibilita alcançar o sucesso de público. Foi um grande choque para o cinema francês o sucesso do filme de Bresson. O público poderia se interessar por um filme que não visasse somente a agradá-lo, que tivesse algo a dizer, e que rompesse com a estrutura tradicional da forma do filme. O que realmente é necessário é uma distribuição que apresentasse (e não o mantivesse nas trevas como costuma ser feito até hoje) o filme, que possibilitasse a sua exibição em diversas salas. Esta será uma lição importantíssima para a geração nouvelle vague que acompanhava o desdobramento do cenário cinematográfico francês com olhos atentos.


Quanto ao filme: Bresson parte de um ponto que já era trabalhado com sucesso pelo cinema italiano, a exemplo de Umberto D., que era o uso de atores não-profissionais nos filmes (incluindo protagonistas). Os atores costumam criar uma realidade própria, que se assemelha à realidade que vivemos, mas que não é ela. A proposta de Bresson ao utilizar estes não-atores era o de fugir deste mundo de "realidade ficcional" tão comum de ser encontrada no cinema. Ele forçava seus atores a perderem qualquer maneirismo e que agissem com maior simplicidade possível, sem caretas ou alteração exagerada no tom de voz. É assim que Bresson guia seu elenco liderado por François Leterrier, que aqui é Fontaine, o preso que escapou e agora nos conta sua história.

Outra característica da teoria de Bresson que se apresenta neste filme é a separação entre som e imagem. O cineasta, um dos poucos a teorizar o som no cinema, propõe que a trilha de sons e imagens não devem nada uma à outra, sendo que a construção de cada uma deve ser feita à parte. Assim, Um condenado à morte escapou surge como um filme narrado por inteiro pelo protagonista que nos conta a história de sua fuga enquanto as imagens nos mostram o que suas palavras expressam. Mas em determinados momentos a palavra não é o suficiente para dizer o que o personagem está a fazer, e as imagens dominam o filme. Em outros momentos a palavra já apresenta o que as imagens já dizem, dando muito mais informações ao espectador. 


Devido ao processo de desdramatização utilizado por Bresson, suas imagens tornam-se incapazes de mostrar o subjetivo de seus personagens de maneira tão simples como acontece para a maioria dos cineastas - que por vezes abusam do close-up para desnudar as emoções de seus personagens - e por isso a trilha sonora com a narração do protagonista vem tão bem a calhar, dizendo-nos o que sentia ele em determinados momentos durante o processo de planejamento e execução de fuga. 

terça-feira, 22 de abril de 2014

As Diabólicas de Henri-Georges Clouzot (les diaboliques, 1955)


direção: Henri-Georges Clouzot;
roteiro: Pierre Boileau (baseado em se livro), Thomas Narcejac (baseado em seu livro), Henri-Georges Clouzot, Jérôme Géronimi, René Masson, Frédéric Grendel;
fotografia: Armand Thirard;
estrelando: Vera Clouzot, Paul Meurisse, Simone Signoret.

Quando assisti As diabólicas pela primeira vez, fui ao filme despreparado. Henri-Georges Clouzot, diretor de quem já tinha ouvido falar algumas vezes devido a outro filme seu, O salário do medo, (e foi o nome do diretor que me levou a assistir ao filme) me deixou desarmado. Desarmado e encantado. A técnica de Clouzot é refinadíssima. Naquela primeira ocasião preferi não escrever nada acerca do filme, mas desta vez não posso me impedir de fazê-lo. O cineasta, mais um dos que foram renegados pela nova onda de críticos de cinema refinados e que buscavam um cinema refinado, sabe como conquistar sua plateia e deixá-la às suas mãos como poucos. 

Não é simplesmente pelo roteiro que Clouzot se guia. Ele faz questão de nos guiar por meio de suas imagens em uma fotografia em preto e branco interessantíssima de Armand Thirard que nos apresenta uma história de suspense envolvendo uma escola somente de meninos em Paris. Christina Delassalle (Vera Clouzot) é a dona da escola em que grande parte da ação do filme se passa. Seu marido, Michel Delassalle (Paul Meurisse) fez-se diretor da escola e manda em tudo e em todos. Ele tem um caso, que não é segredo para ninguém - nem para sua esposa ou para as crianças que estudam na escola - com Nicole Horner (Simone Signoret) que é professora na mesma escola. Certo dia, Nicole aparece com o rosto machucado, ficando claro para todos de que Michel a havia agredido (o diretor da escola não é nenhum santo e isso será demonstrado algumas vezes ao longo do filme).


Nicole convence Christina a viajar em um feriado junto com ela, deixando Michel para trás. Neste meio elas planejam o assassinato do diretor da escola. Chamam-no, então, para a casa em que estão no interior da França onde cometem o ato. A culpa corrói o interior de Christina que nunca esteve segura de cometer o assassínio. Elas retornam para a escola antes do fim do feriado e jogam o corpo do morto na piscina. Esperam o corpo boiar na água e dar a impressão de que acreditassem que ele estava bêbado e se afogou. Passam alguns dias e o corpo de Michel continua sem aparecer na superfície. Ainda mais atormentada, Christina pede para o zelador da escola para esvaziar a piscina. Quando o faz, descobre-se que o corpo desapareceu. 

É uma história muito bem conduzida por Clouzot que sabe controlar o tempo e espaço de seu filme para deixá-los a seu favor. E como o tempo e o espaço jogam a favor do diretor neste filme! A construção da temporalidade das cenas, a duração dos planos, o conteúdo dos quadros, são todos muito bem pensados para que o espectador fique submerso na atmosfera de suspense desenvolvida por Clouzot. Em muitos momentos são sutis as construções do filme feito pelo diretor. Logo no início do filme, para introduzir-nos a escola em que a história transcorrerá, Clouzot abaixa a câmera quando um carro atravessa os portões da propriedade para mostrar uma poça de água da chuva (também uma referência à primeira cena de O salário do medo, seu filme anterior) em que flutua um barquinho de papel que é destruído pelo pneu do carro que passa por cima da poça.


A câmera de Clouzot é sensorial, ela sente e necessita mostrar aquilo que sente. Não basta escutarmos os sons, necessita-se mostrar de onde eles vêm. Quando Michel é assassinado, seu corpo é deixado dentro da banheira onde fora afogado. As gotas da água caindo e batendo no plástico utilizado para cobrir o corpo é primeiro mostrado para o espectador, para depois mostrar o efeito colossal que o simples gotejar da torneira faz em Christina, que fica acordada, enquanto Nicole dorme ao seu lado. O simples gotejar de uma torneira ganha toda uma nova força por meio do olhar de Clouzot a esta cena, em que os temores de Christina passam a assombra-la na escuridão da noite, enquanto no banheiro ao seu lado jaz o corpo de seu marido morto.

Estes detalhes não podem passar sem serem mostrados para o espectador. Clouzot nos mostra todos, tentando nos deixar a parte de tudo. Quando Michel chega a casa em que será morto, uma garrafa de whisky é deixada em cima da mesa do quarto de Christina. A interação entre a câmera e os atores é toda construída em torno desta garrafa em que está um líquido que fará Michel dormir para que possa ser posto na banheira e morto por afogamento. Sua esposa está receosa e teme prosseguir com o plano, enquanto seu marido desavisado quer beber o conteúdo da garrafa. Cria-se uma batalha silenciosa entre os dois. Uma batalha entre o que quer contra quem não quer tem início. O diálogo não faz qualquer menção a esta batalha, mas nós a sentimos porque sabemos que o que se encontra no interior da garrafa não é simplesmente whisky. 

É um filme com uma condução belíssima por parte de seu diretor, uma verdadeira obra de suspense.  

terça-feira, 18 de março de 2014

La Pointe-Courte de Agnes Varda (1955)


direção: Agnes Varda;
roteiro: Agnes Varda;
fotografia: Louis Soulanes, Paul Soulignac, Louis Stein;
editor: Alain Resnais;
estrelando: Philippe Noiret, Silvia Monfort.

Logo após o término da segunda guerra, em um momento em que a economia europeia se encontrava em frangalhos, a ideia de produzir filmes de baixo orçamento começou a ganhar corpo, atraindo muitos aspirantes a diretores que não encontravam lugar ao sol dentro da indústria cinematográfica de seus países, nem se beneficiar de uma produção com altos orçamentos. Na França este pensamento foi primeiro tomado por Jean-Pierre Melville que filma seu primeiro longa-metragem, O silêncio do mar, com orçamento baixíssimo - algo em torno de 9 milhões de francos em uma época em que o custo médio de um longa-metragem contornava os 50 milhões. O filme foi mais tarde um sucesso de público, rendendo um belíssimo retorno financeiro.

Alguns anos mais tarde, em 1955, Agnes Varda que então trabalhava como fotógrafa profissional, tomou para si a iniciativa de filmar um longa-metragem nos moldes daquele que Melville havia feito. Seu projeto era de filmar em um vilarejo de pescadores chamado Pointe-Courte, e que daria nome ao filme. Para a gravação, Varda prefere não se relacionar com o Centro Nacional de Cinematografia (CNC) para baratear a produção de seu filme feito em cooperativa entre equipe e elenco. O filme custa 7 milhões, mas não dá retorno algum. O CNC o considera um filme amador, mesmo tendo sido filmado em 35mm, o que impede a estreante cineasta de exibir seus filmes nos cinemas. Michel Marie, em seu estudo sobre a nouvelle vague, tem que este foi um ponto importante que mostrou para os futuros diretores a importância do distribuidor para o sucesso de um filme. La Pointe-Courte ficou sem ser exibido no circuito comercial, tendo uma única exibição num cinema de arte, mas que não foi suficiente para dar qualquer retorno financeiro à empreitada.


O filme em si é uma obra impressionante. Varda nos dá algumas das características mais marcantes da nouvelle vague antes mesmo da eclosão do movimento. Temos duas histórias que caminham em paralelo: um casal casado há cinco anos que se encontram no vilarejo onde ele (Philippe Noiret) cresceu e que sua esposa (Silvia Monfort) nunca havia visitado, e a vida dos pescadores que são impedidos de pescar pela guarda costeira.

A parte dos pescadores nos apresenta um grupo de atores não profissionais, escolhidos entre a população local, para interpretar a eles mesmos, seu cotidiano. São as histórias acontecendo nos lugares em que elas acontecem. Este trabalho é o que quiseram fazer os cineastas posteriores ao neorrealismo italiano quando viram este trabalho ser feito pelos pioneiros Roberto Rossellini e Vittorio de Sica. O caráter documental dado pela câmera de Varda a esta parte do filme é inegável, temos a sensação de estar naquelas casas vendo a vida daquelas pessoas. Já na parte em que acompanhamos o casal, que é interpretado por dois atores profissionais, o filme já nos apresenta um trabalho muito mais trabalhado, em que a composição do quadro é cuidadosamente estudada.


Encontra-se uma batalha entre estilos de filmar. Em um momento temos a utilização de não atores e uma filmagem mais espontânea, de outro temos os atores, com sua atuação milimetricamente estudada para que possam ser compostos os quadros tais como a diretora os quer. É uma batalha silenciosa que se apresenta entre a leveza do naturalismo dado à história dos pescadores e o peso dado pela construção teatral tradicional de um filme, em que as imagens clamam por uma representatividade metafórica. Enquanto a esposa julga conhecer seu marido, sem conhecer suas origens, Varda nos mostra que o cinema julga conhecer as pessoas contando-nos suas histórias nos estúdios, enquanto as pessoas estão vivendo estas histórias nas ruas. A esposa acha que conhece tão bem seu marido que poderia ser ele, mas não conhece uma parte importante de sua história, o lugar de onde ele veio e que o moldou. O cinema vai pelo mesmo caminho: ele acha que pode representar - e em algumas concepções até mesmo reproduzir - a vida, mas desconhece as origens das histórias que está a contar, dos personagens sobre os quais estão falando.

Varda em seu debute no cinema nos apresenta uma obra madura e belíssima que vale a pena ser vista com muito cuidado por aqueles que amam o cinema como forma de expressão artística e não como mero divertimento.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

O Salário do Medo de Henri-Georges Clouzot (le salaire de la peur, 1953)


direção: Henri-Georges Clouzot;
escrito por: Georges Arnaud (baseado em seu livro), Henri-Georges Clouzot, Jérôme Géronimi;
direção de fotografia: Armand Thirard;
estrelando: Yves Montand, Charles Vanel, Folco Lulli, Peter van Eyck, Vera Clouzot.

Henri-Georges Clouzot, cineasta de mão cheia, que sabe criar atmosfera de suspense como poucos, fazia parte de uma geração condenada ao esquecimento devido ao surgimento da nouvelle vague, movimento cinematográfico que nasceu com requerimento pronto e assinado para que todos os holofotes fossem direcionados para eles, e consequentemente fazendo-se esquecer de quem não fazia parte daquele grupo ou de quem não os havia influenciado. Clouzot antes mesmo disso já era um condenado. Tendo filmado dois filmes durante o período em que a França se encontrava sob ocupação nazista, ele foi visto por olhos tortos durante muito tempo. A condenação dura até os dias atuais. Seus filmes permanecem obscuros atrás das sombras dos filmes da nouvelle vague. Mas não só de nouvelle vague é feito o cinema francês.

Este que é um dos grandes sucessos do diretor, angariando críticas favoráveis, prêmios, e uma boa quantidade de público nos cinemas e é este sucesso reflete o poder da obra criada por Clouzot. O salário do medo se passa em uma cidade perdida no meio do nada na América do Sul onde uma grande empresa petrolífera estadunidense explora a população pobre e os estrangeiros que lá chegam em busca de oportunidades de trabalho. É um retrato cruel, mas o filme não possui a pretensão de fazer uma crítica social propriamente dita - ela está lá, mas não é o ponto principal a ser abordado.


O grupo de estrangeiros que está preso naquela cidade, cada um de um país diferente - existem os estadunidenses, um holandês, um italiano, franceses... -, não consegue sair dali, e estão sempre a desejar fazê-lo porque nada têm a fazer a não ser sentar no bar e olhar a vida passar. Por isso quando surge uma proposta arriscada feita pela empresa petrolífera de carregar por estradas irregulares centenas de litros de nitroglicerina (ou seja, o perigo de explosão é constante) todos se arriscam. Além do dinheiro, veem uma oportunidade de fugir daquele marasmo. Quatro destes estrangeiros são escolhidos: um italiano, um holandês e dois franceses. 

E assim começa a jornada que será, tanto para os personagens quanto para nós espectadores, extremamente tensa. A construção dos personagens é muito bem feita. Coloco isso tendo em mente o personagem de Jo (Charles Vanel) que começa impondo sua figura de valentão, fazendo outras pessoas o temerem, mas tão logo começada a jornada e os perigos que ela acompanhavam, seu comportamento frente ao que surge já não é mais o de coragem, mas de temor - e Jo demonstra ser, na verdade, um grande covarde. Já Mario (Yves Montand) que não sabe muito bem o que é - a exemplo da cena em que dividido entre passar o dia com seu amigo Jo e sua amante Linda (Vera Clouzot) - se define durante a viajem como sendo um personagem de personalidade forte, mandando em Jo, dizendo-lhe o que ele deve ou não fazer.


Mas vamos para o caráter cinematográfico do filme. O controle do tempo é feito com maestria por Clouzot. A cena em que melhor se nota este controle do tempo por parte do cineasta é a cena em que Bimba (Peter van Eyck) acende um pavio para explodir uma pedra que está no meio da estrada e que bloqueia o caminho dos caminhões. Bimba acende o pavio, fica tempo suficiente ao lado deste para ter certeza de que não irá apagar e começa a correr. Em um primeiro momento a montagem mostra Bimba correndo para se proteger, onde estão os outros e logo em seguida o pavio queimando. Em seguida nos é mostrado o grupo se protegendo atrás das pedras da montanha e Jo ficando dentro de um dos caminhões. A tensão que é criada vai além da cena da explosão, algumas das pedras que foram arremessadas pela explosão ameaçam os caminhões, e ficamos na expectativa de que um deles exploda.

A expectativa pelo que pode vir, por aquele perigo que está sempre à espreita, é uma constante nos filmes de suspense, mas que pobremente elaborados. Daí o motivo de ter afirmado no início deste texto que Clouzot é um dos poucos cineastas que sabem filmar suspense. Este é um gênero em que o filme se faz, em grande parte, por um pensamento do tempo, a noção da temporalidade dos planos, para que vá imprimir no espectador esta sensação de perigo constante de que, ou os personagens estão vivendo, ou acham que estão vivendo. É por meio do controle do tempo do filme que diferencia a percepção do espectador entre o saber que o personagem está em perigo (como os personagens de Clouzot estão) e o sentir o perigo a que eles correm (como Clouzot nos faz sentir). Com a dose errada poderíamos estar no cinema imaginando que este é um filme de comédia, e riríamos com as conversas dos motoristas e de seus caronas - é o tempo que nos define este filme enquanto um filme de suspense.


Pode ser contestada esta minha tese pela mesma cena da explosão uma vez que, ao fim da explosão uma pedra ameaça um galão de nitroglicerina que fora utilizada para explodir a pedra e que se encontra em frente de Jo. A pedra rola morro abaixo em direção ao galão ameaçando explodi-lo. Por ter optado mostrar esta pedra que rola morro abaixo, Clouzot teria feito uma cena que se baseia em uma representação espacial para criar o suspense e não temporal. Mas quando ele prefere mostrar esta cena intercalando a pedra caindo e o rosto de Jo encarando-a ele faz uma cena de suspense baseada em um "molde temporal". Ele alonga, assim, o deslizar da pedra, e o espectador fica mais nervoso - desta vez até porque tem um personagem que corre o risco de morrer devido à ela.

Obra belíssima, constantemente vista como sendo inferior à sua obra seguinte As diabólicas, mas que pode ser vista em um mesmo patamar. Clouzot é um grande cineasta e sua obra deve ser visualizada por quem gosta de bom cinema. 

sábado, 1 de fevereiro de 2014

Brinquedo Proibido de René Clément (jeux interdits, 1952)


direção: René Clément;
roteiro: Jean Aurenche, Pierre Bost, François Boyer (baseado em seu livro, e roteirista), René Clément;
edição: Roger Dwyre;
estrelando: Brigitte Fossey, Georges Poujouly.

Durante a década de 1950 o cinema francês vivia um momento de sucesso. Seus filmes eram tão bem sucedidos frente ao público (e também à crítica) que conseguiam competir com grandes produções vindas de Hollywood. E deste momento de grande êxito da produção cinematográfica francesa que surgiram grandes nomes, tais como René Clemente, Henri-Georges Clouzot, Marcel Carné, Robert Bresson, cada um deles com filmes que se destacavam nas salas de cinema a ponto de obter lucro. Mas boa parte destes nomes não era bem vista pela nova escola da crítica de cinema que se formava nos cineclubes que surgiam no país. Este grupo de críticos tomou a frente do mundo cinematográfico francês, delimitando o que era ou não bom, o que deveria ser ou não visto. Essa nova escola também invadiu o mundo da produção cinematográfica, transformando o padrão de qualidade dos filmes e dando ao mundo do cinema uma nova forma de encarar os filmes que eram feitos. Esta nova escola nunca conseguiu atingir os mesmo êxitos que a antiga escola que era chamada depreciativamente por eles de "padrão francês de qualidade". 

Devido a esta mudança da forma com que o cinema francês era encarado, boa parte desta geração diminuiu o número de filmes que fazia, e muitos de seus membros foi gradualmente caindo no esquecimento. Exemplo disto é o diretor do filme a ser comentado aqui, René Clement. Clement era o grande nome do cinema francês pré-nouvelle vague, seus filmes eram nomeados ao Oscar, tinham maior apelo frente ao público (constantemente aparecendo nas listas de maior bilheteria), e também era aquele que recebia mais críticas negativas dos jovens críticos. "Brinquedo Proibido" foi indicado ao Oscar de melhor roteiro adaptado em 1953. É um filme que poderia ser pensado como possuindo um caráter enormemente literário, mas que não o apresenta. 


Uma bela cena é construída, talvez a melhor do filme. Clement se vale somente da montagem para mostrar a bomba explodindo, as pessoas morrendo e as que estão vivas com temor da morte que lhes ronda. Temos a imagem de um avião sobrevoando a estrada, todos se desesperam, começam a correr, o avião solta as bombas, o close-up de uma mulher gritando, a explosão, outra explosão ao lado da ponte, as pessoas se abaixando. Passado este momento, todos retornam para a estrada correndo para passar pela ponte. Com a montagem Clement mostra ao espectador do que aquelas pessoas estão fugindo, do que elas tem medo, e logo em seguida o motivo - elas não fogem de um avião simplesmente porque é um avião, mas porque ele pode matar (e assim ele faz um filme para que aqueles que não tem conhecimento acerca da II guerra mundial também possam compreender - crianças, por exemplo).

Quando retornam para a estrada, a família de Paulette (Brigitte Fossey) se depara com o carro deles sem ligar. Numa fuga, em que o perigo está rondando eles não se podem dar ao luxo de ficarem parados. É novamente por meio da montagem que Clement nos mostra o problema que representa aquele carro quebrado no meio da estrada. Todos os carros que estão atrás dele não podem passar, são mais pessoas servindo de alvo fácil, mais pessoas que não podem fugir do perigo que ronda. É um filme muito bonito e muito bem construído. Ainda nesta primeira sequência os pais de Paulette são mortos por um destes aviões e a menina fica orfã. Mas vive em um mundo a parte, não compreendendo muito bem o que seja a guerra, mesmo tendo estado no meio dela. Ela vai parar numa casa da zona rural protegida dos bombardeios e faz amizade com o garoto que mora numa fazenda, Michel (Georges Poujouly). A partir desta amizade os dois vão passar a pensar na morte em tempos em que ela está sempre a rodar, mas sem a mesma preocupação dos adultos. 

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

O Silêncio do Mar de Jean-Pierre Melville (Le Silence de la Mer, 1949)



direção: Jean-Pierre Melville;
roteiro: Jean-Pierre Melville;
direção de fotografia: Henri Deace;
estrelando: Howard Vernon, Jean-Marie Robain, Nicole Stephane.

Com o advento do neorrealismo italiano, as plateias do mundo todo levaram um choque quando histórias ficcionais passaram a ser contadas nas ruas em que aconteciam as histórias nas quais elas eram inspiradas. Junto com esta nova possibilidade, da falta de necessidade de construir enormes cenários para contar histórias, nascia o cinema independente, o cinema que não necessitava de grandes orçamentos para que filmes pudessem ser feitos, apenas boas histórias. É partindo destes princípios que Jean-Pierre Melville faz Le Silence de La Mer, seu primeiro longa-metragem.

O filme em questão é uma adaptação de um livro (de mesmo nome) escrito quando tropas nazistas ocupavam a França em 1941. Dois soldados nazistas passeiam por uma pequena cidade do interior da França até chegarem a uma casa, a do tio-narrador (Jean-Marie Robain, o nome de seu personagem não é revelado em momento algum). Eles entram na casa, pedem para vê-la, dão uma volta, e partem. Pouco depois retornam com caixas que deixam na casa. Alguns dias mais tarde surge o oficial Werner von Ebrennac (Howard Vernon), que ficará alojado na residência.


Durante este período o tio e a sobrinha que vive com ele (Nicole Stephane) convivem sem maiores problemas com o oficial, mas negam a sua presença. O oficial não passa de um mero fantasma que assombra as noites dos moradores daquela casa do interior de uma França atormentada por terrores semelhantes. Eles ficam próximos ao fogo da lareira como se fosse o fogo que espantasse aquela figura. Uma figura que faz questão de anunciar sua presença, por mais que seja ignorado. Ebrennac surge em diversas noites e profere monólogos sobre os mais diversos temas (em grande parte sobre arte). Embora não transformem as falas do oficial em um diálogo, o tio e a sobrinha escutam todas as palavras que Ebrennac diz.

É o fantasma que assombra, que não pode ser visto, mas que é sentido. Ele não é material, e mesmo assim perturba quem está próximo. E como assombrados por um fantasma que não podem extirpar, o tio e a sobrinha permanecem sentados, obedientes à sua condição de "assombrados", enquanto o oficial permanece de pé, imponente, com o poder da fala (a fala, que mais tarde nos será revelada, é exclusividade dos alemães - que com sua vitória irão destruir a cultura francesa). A fala tão importante neste filme porque, como diria Merleu-Ponty em uma obra publicada uma década depois deste filme, é a partir da fala que conhecemos nossos pensamentos (nossas ideias), é somente quando podemos falar que possuímos o poder. Daí enxergarmos a importância da cena final deste filme, uma cena simples que esconde um discurso extraordinário.

Um belo filme sobre a cultura de um povo, o seu valor, e o que pode ela representar em tempos sombrios.