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sexta-feira, 13 de setembro de 2024

Viagem aos seios de Duília, de Carlos Hugo Christensen (1964)










dirigido por Carlos Hugo Christensen

roteiro de Carlos Hugo Christensen, Orígenes Lessa

baseado em conto de Aníbal Machado

fotografia de Aníbal Gonzalez Paz

com

Rodolfo Mayer

Nathália Timberg

Oswaldo Louzada

 Zé Maria trabalhou a vida inteira num trabalho burocrático onde todos ao seu redor conhecem precisamente sua rotina. Então, chega o dia da sua aposentadoria. Depois de décadas de trabalho, ele é forçado a deixar de se preocupar apenas com o serviço e buscar outra coisa para fazer.


Um filme de longos momentos de espera e silêncio da vida de um homem que vive à sombra de seu passado. A escolha estética do filme as vezes pode ser estranha, lembrando a atmosfera do filme noir, mas esse é o recurso para mostrar como Zé Maria se apaga em seu presente ao ter deixado os anos escaparem, tentando agora encontrar vida no passado. As muitas fusões são a insistência das imagens do passado insistndo em romper a barreira da memória. Logo, Zé Maria empreenderá uma aventura rumo ao passado, voltando para sua cidade inhame Natal de Porto Triste, em busca de Duília.

sexta-feira, 22 de outubro de 2021

Olney São Paulo

 Considerações sobre a trajetória artística do cineasta baiano

Aproveito a ocasião dos 85 anos de nascimento para fazer uma homenagem ao cineasta Olney São Paulo. Conheço a personagem deste artigo de memória contada, sobrinho que sou do realizador que não cheguei a conhecer. Seu nome sempre esteve presente em meu lar, especialmente quando o cinema ou a história recente do Brasil entravam em questão. O cinema, porque esta foi uma descoberta caseira para mim, sendo introduzido aos clássicos em VHS, depois em DVD, na ausência de uma sala de cinema que mostrasse tais filmes. Os gostos de Olney não passavam batido nas minhas sessões com meu pai, especialmente quando entravam em cena os filmes de faroeste. Difícil para Olney não se identificar com os cenários áridos dos desertos do oeste estadunidense sendo ele próprio filho da caatinga.

Já o lado história do Brasil remete a episódios dolorosos de serem lembrados por quem viveu, recuperados pela lembrança com um misto de indignação e raiva. Isto porque o sertanejo, que deixou o interior para trás querendo encontrar no Rio de Janeiro lugar mais favorável para suas aspirações, viu-se engolido pelo vórtice da crueldade política vigente na época. Seguindo os passos retirantes de gente como Glauber Rocha – que em Revolução do cinema novo dedica um belo capítulo a Olney, chamando-o de “martyr” do cinema brasileiro – e integrando o flanco dos cineastas baianos na cidade maravilhosa, Olney se viu no meio de um processo político-criminoso tão comum à ditadura instaurada em 1964.

Portanto, não se assuste o leitor se estranhar o nome deste realizador baiano, se não conhecer a sua história ou o filme acerca do qual nos deteremos nos parágrafos vindouros. O silêncio em torno da memória do velho baiano foi orquestrado pela malignidade que vilaniza nordestinos e queima filmes.

 

Olney, cineasta

O mais velho de sete irmãos, nascido em 7 de agosto de 1936 na cidade de Riachão do Jacuípe, Olney se mudou com a família ainda criança para Feira de Santana para dar continuidade aos estudos. À época, Feira de Santana tinha o privilégio de abrigar diversas salas de cinema.  Foi em Feira que se deu o encantamento do jovem pela mais faceira das artes.

Um evento particular e curioso aconteceu quando Olney era ainda adolescente e que marcou toda sua vida. Desembarcou em Feira a equipe de Alex Viany para gravar um episódio de Rosa dos Ventos. O filme tinha produção alemã, contando com realizadores de diferentes países assinando cada um dos episódios. O episódio brasileiro era estrelado. Para além do já famoso crítico Alex Viany, protagonizava o episódio Vanja Orico (saída do sucesso O cangaceiro) e assinava o roteiro Jorge Amado. Curioso com as artes, Olney assistiu às filmagens, conseguindo até os dados de Viany e Jorge Amado para troca de cartas.

Depois desse episódio singular, não teve mais jeito. Montou grupos de teatro amador, abriu revistas, até programa na rádio para falar de cinema. Quando, em 1955, um amigo apareceu com uma máquina de filmar 16mm, lá foi Olney experimentar o ofício de direção. Na ausência de recursos para montar a película, decidiram que o filme seria filmado na ordem dos eventos, parando o filme dentro da máquina. Filmavam uma cena, paravam, voltavam a filmar, sem a possibilidade de erros ou de fazer de novo. A obra foi Um crime na rua, reencontrada recentemente por Henrique Dantas em meio às pesquisas para seus filmes sobre o cinema de Olney, Sinais de cinza e Ser tão cinzento.

Da empreitada amadora passou para o cinema profissional, com estilo firme influenciado pelo cinema novo, em particular pelos filmes de Nelson Pereira dos Santos. De Um crime na rua para Grito da terra foram 9 anos. Baseado no romance Caatinga, de Ciro de Carvalho Leite, Grito da terra é um longa-metragem de ficção que lida com temas como a alfabetização do povo sertanejo e a reforma agrária. Em seu elenco, Helena Ignez, Lucy Carvalho e Lídio Silva.

Foi um pontapé de luxo para uma carreira de 14 filmes, ao todo, dentre longas e curtas, ficção e documentário. Mas no meio de uma história sobre um sertanejo curioso e criativo, desejoso de fazer parte de uma arte cara, burguesa, para falar de seu povo, veio o golpe militar. Junto com o golpe, o AI-5, que levou Olney à prisão e resultou na destruição de um de seus filmes, Manhã cinzenta. Este processo singular na história do cinema brasileiro, em que um cineasta foi acusado pela produção de um filme com as cópias de sua obra destruídas, precisa ser melhor documentado e lembrado para que reconheçamos as fragilidades do cinema em meio a golpes contra a democracia e a ascensão do fascismo institucional.

 

Olney e o processo Manhã cinzenta

Olney São Paulo era funcionário do Banco do Brasil. Logo após o lançamento de Grito da terra, consegue transferência para trabalhar no Rio de Janeiro, assim ficando mais próximo de toda movimentação do cinema à época. Já estabelecido no Rio, começa a produção de seu segundo filme Manhã cinzenta. Baseado no conto de mesmo título que abre sua coletânea A antevéspera e o canto do sol, publicada em 1966, o filme acompanha um grupo de estudantes que tentam manter viva a chama da luta contra uma ditadura sanguinária. Nesta distopia, os estudantes presos são interrogados por um robô que serve de juiz, após serem vítimas de tortura no cárcere.

O filme foi realizado ao longo do ano de 1968, sendo finalizado em 1969. Antes de submeter a película à censura, Olney exportou cópias do filme, que foi exibido em festivais no Chile, na Alemanha, na Itália, e na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes.

Em 1969, um avião com o embaixador dos EUA no Brasil foi desviado para Cuba. Dentre os guerrilheiros presentes no sequestro estava o coordenador de um cineclube carioca que poucas semanas antes havia pedido a Olney uma cópia de Manhã cinzenta. Em seu recente Nas asas da Pan Am, Silvio Tendler relembra o caso (sem mencionar Olney, uma falha no documentário), sendo ele amigo do guerrilheiro e procurado pelos militares durante a investigação. Olney não teve tanta sorte quanto Tendler. Acusaram-no de ter participado do sequestro, uma vez que seu filme teria sido, supostamente, exibido a bordo.

À altura do incidente, Olney encontrava-se no Chile fazendo uma exibição de Manhã cinzenta. Quando voltou descobriu que seu nome estava envolvido com um caso estranho. Apresentou-se às autoridades para prestar depoimento de livre e espontânea vontade, lá dizendo que não teve relação com o sequestro. Após uma primeira audição, foi liberado pelas autoridades, que ainda suspeitavam de sua viagem ao Chile durante a mesma data. Quando retornou para a segunda data marcada, ficou detido e levado para local ignorado. Ficou incomunicável, deixando sua esposa com três filhos dependendo de ajuda de amigos para manter-se ao longo dos dias de desaparecimento.

Antes de sua volta ao Chile, as autoridades da ditadura já haviam visitado os laboratórios onde se encontravam cópias de Manhã cinzenta, assim como as cinematecas, para apreensão do material. Com Olney detido, antes de sua partida para local ignorado, escoltaram-no até sua residência e apreenderam mais material, tratado como bandido perante seus filhos, num episódio que deixou marcas em suas memórias.

Na cadeia, Olney foi barbaramente torturado para que informasse outros nomes que teriam participação no sequestro do avião. Vendo que Olney era “apenas” cineasta, forçaram-no a dizer nomes para que a culpa da delação persistisse. Como relatou José Carlos Avellar, que trabalhou como fotógrafo de Manhã cinzenta, a Henrique Dantas em Sinais de cinza, Olney carregava a culpa de ter dito os nomes de seus companheiros de equipe. “Mas os nomes estão todos no filme”, teria replicado Avellar. De toda forma, faz parte do processo perenizar a barbárie em quem a sofre.

Uma cópia sobrevivente do filme, que ficou depois sob a posse de Olney em exibições clandestinas, foi fruto da esperteza do curador da cinemateca do MAM, prestando um grande serviço à memória cinematográfica nacional. Sabendo do interesse dos militares em caçar o filme em questão, trocou a película de lata, permitindo a Manhã cinzenta ganhar sobrevida.

Olney deixa a prisão depois de 12 dias e é internado num hospital. Debilitado, sofre dos pulmões, uma agrura que viria a ser a causa de seu falecimento em 1978.

Ângela José, biógrafa de Olney, parelha o seu julgamento com o processo de Joseph K., no famoso livro de Kafka. Se Olney foi inicialmente preso por um suposto envolvimento com o sequestro do avião, os autos do processo envolvendo Manhã cinzenta mostram a acusação a um realizador por ter feito um filme profundamente subversivo. Olney é obrigado a defender sua obra e a justificar o fato de não ter passado pela censura antes de ter enviado cópias para o exterior. Aponta que as imagens de prisões em processos foram conseguidas junto à TV Globo, e discursa que o filme tem uma vertente comercial e surreal ao utilizar músicas de rock e se valer de um robô.

A penitência duraria até 1971, quando finalmente o tribunal viria a absolvê-lo. O promotor do caso pediu novo julgamento, o que somente seria negado em 1972, quando o caso foi finalmente arquivado. Durante todo esse período, Olney temeu pelo retorno ao cárcere. Seus anos seguintes foram de ativa produção cinematográfica, dedicando-se ao documentário, mas ainda sofrendo com os gritos de seu período de prisão.

 

Manhã cinzenta

Os créditos de abertura mostram uma manhã de céu fechado, as pessoas levando sua vida como mais um dia. Os galopes da história vêm silenciosos, nos lembra Walter Benjamin. Por cima dessas imagens, pulsa o fervor de uma missa crioula, concedendo ao princípio do filme um tom algo épico, ou surreal. Estamos a adentrar num universo diferente, em outra realidade?

O fim dos créditos é marcado pela abrupta mudança de som da missa para o de um rock distorcido, saindo de um rádio. Encontramo-nos numa sala de aula. Uma jovem de cabelos longos, saia acima dos joelhos, dança perante uma comunhão de estudantes sentados prostrados em suas carteiras. A montagem alterna entre a dança da garota e a apatia dos jovens. Alguns deles parecem ser mobilizados pela atitude da garota, ainda que timidamente: batem mãos sobre livros ao ritmo da música e mexem os pés sob as mesas. Ninguém se levanta, ninguém se junta à garota.

Da sala de aula congelada, somos lançados ao futuro. A garota que dançava perante seus companheiros está num estilizado carro de polícia. São prisioneiros. Estamos num país totalitário que prende opositores políticos. A montagem salta do recito (discurso) ficcional para a emulação de um cinejornal em que se noticia uma manifestação de estudantes marcada para dia próximo, segue-se um discurso inflamado. Tal como acontece com Cidadão Kane, há uma construção rítmica em Manhã cinzenta que muito se beneficia da continuidade do som, criando o gancho entre situações discrepantes, entre diferentes eventos, fazendo a conexão entre imagens de cunho documental e outras trabalhadas pelos atores.

Numa união dos dois polos, documental e ficcional, o casal líder estudantil aparece em meio a uma manifestação real, caminhando em meio ao agrupamento. Em certo momento, o namorado sobe a um elevado e começa a simular um discurso. Alternam-se as imagens em que aparecem o casal do filme, imagens de jovens com paus e pedras quebrando carros, de carros incendiados. Na rapidez dinâmica das imagens, vemos estudantes sendo presos, levados até carros da polícia.

A montagem de Manhã cinzenta é acelerada. Como qualquer pesquisador que se detiver por algum tempo lendo a respeito do filme descobrirá, o termo cunhado por Glauber é o mais recorrente para descrevê-la: montagem caleidoscópica. Sua linha do tempo não obedece ao ditame de princípio, meio e fim. Nas idas e vindas vemos imagens ficcionais e imagens documentais se unindo numa história sobre o governo ditatorial de uma terra sem nome. Os estudantes discutem a resistência ao mesmo tempo em que tentam se sacudir da própria apatia. Atuam, mas terminam presos em seu levante contra a autoridade imposta. São julgados por um cérebro eletrônico que possui os discursos do jovem líder estudantil gravados. Não sendo um julgamento justo, o robô compartimenta até mesmo a imagem do que acontecerá, do porvir, com a execução do casal rebelde.

“Progresso” é uma palavra recorrente ao imaginário político brasileiro, vinda a serviço de interesses particulares e não coletivos. A presença do robô na cena do julgamento confere à película ares de ficção-científica. A máquina seria um cérebro avançado, desprovido de preconceitos, mas não é. Vemos ao longo do julgamento a manipulação da máquina para conferir a sentença quista pela acusação. Num de seus melhores momentos, a máquina evoca uma imagem do professor (Lídio Silva) de Grito da terra. O professor alfabetiza os camponeses, aqui aparecendo sob uma fala da garota para seus julgadores. O método de Paulo Freire, sugerido pela garota, é visto como subversivo pelos acusadores. “Sinais chineses, excelência, sinais chineses”, diz um dos fardados ali presente.

Durante o julgamento mostram-se muito fortes os arquétipos criados por Olney para suas personagens, em especial para o casal protagonista. O militar que os prende, e mais tarde participa de seu julgamento, é um aparente defensor da racionalidade, ao mesmo tempo em que diz que “o povo nunca soube pensar”, assim se pondo contra o projeto de alfabetização das massas levantado pela garota. O rapaz líder estudantil é o intelectual, aparece lendo o parágrafo final de A peste, de Camus, em voz alta, e é ele quem discursa nas manifestações. Mas carrega um profundo sentimento de descontentamento, de que sua luta não vingará. Na reunião da sala de aula, ele diz que “todos traíram a si mesmos”. Visto como cérebro das operações, ele sofre a tortura mais severa antes do julgamento, e durante todo seu decorrer permanece prostrado, olhos fechados, sem conseguir permanecer sentado em sua cadeira.

Por outro lado, há a garota que dança. É ela quem conclama para ação. “É preciso fazer alguma coisa”, ela diz para seu parceiro. Durante o julgamento, ela senta provocativamente, colocando uma perna mais alta na cadeira, com cara de desdém contra seus julgadores, respondendo às suas colocações. Ela dança numa tentativa de atiçar os seus companheiros a permanecer de pé. Quando posta contra o paredão para ser fuzilada, novamente ela dança, atordoando seus executores. Morta, o filme volta a vê-la dançar, porque ela será encontrada de pé. Mesmo morta, ela continua de pé.

 

Olney após Manhã cinzenta

Durante o processo judicial de Manhã cinzenta, Olney foi aposentado por invalidez de seu trabalho no Banco do Brasil. O que inicialmente foi recebido como mais um golpe e mais uma vergonha, mais tarde se mostrou como a possibilidade de dedicar seu tempo integral ao cinema. É desse período que nasce a sua fase mais prolífica que inclui a filmagem do longa-metragem O forte, baseado em obra de Adonias Filho, e alguns de seus curtas mais marcantes, dentre eles o belíssimo Sob ditame de rude almajesto: sinais de chuva.

Assim como a garota que dança de Manhã cinzenta, a tentativa da ditadura de impor silêncio a Olney não funcionou. Filmou até mesmo o retorno do político Francisco Pinto, que teve mandato cassado em 1964 quando era prefeito de Feira de Santana. Tinha projetos mais ousados que nunca chegaram a ser gravados, como a revolta dos alfaiates e uma cinebiografia do dissidente Lucas da Feira, uma figura cercada de controvérsias na região de Feira de Santana.

Faleceu no Rio de Janeiro, aos 41 anos, ainda planejando filmes com cada um de seus amigos que iam visitá-lo.

Texto originalmente publicado no site A Terra é Redonda.



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segunda-feira, 19 de abril de 2021

Sol sobre a lama, um filme de Alex Viany e João Palma Neto (1963)


 Sol sobre a lama é uma peça interessante de ser encontrada na cinematografia brasileira. Para além daquilo que encontramos no filmes, existem algumas interpretações que podem ser feitas do próprio cenário político brasileiro - o filme se apresenta como rico documento para um estudo sociológico da formação do pensamento político de esquerda. Isto porque o filme antecede dois golpes, um de impacto nacional e outro de impacto local. O primeiro deles foi a instituição do poder militar dando fim à democracia no ano seguinte à gravação do filme. O segundo deles compreende à personagem principal do filme, a feira de Água de Meninos, em Salvador, incendiada após o golpe de 64 e, portanto, obrigada a mudar de sítio, dando espaço às venturas dos grandes capitalistas da capital baiana que há alguns anos (o filme retrata) tentavam construir no local da feira um porto.

    Com estas informações em mãos é fácil enxergar o romantismo do relato de Sol sobre a lama, que toma como ponto de partida um argumento escrito por João Palma Neto, assinando a produção de um filme bancado com dinheiro do próprio bolso. Palma Neto era um dos comerciantes de Água de Meninos, levando alguns críticos a enxergar no filme a personagem de Valente (Geraldo del Rey) como inspirada nele próprio. Uma das falas que melhor caracterizam esta personagem é o "depois venha me dizer que eu tinha razão", dito a um bicheiro. A narrativa apresenta dois caminhos de ação política para preservação da feira, e o curso dos eventos eventualmente dará a Valente a razão.

    Num destes dois lados temos um açougueiro (!) que propõe a ação violenta. Desde a apresentação da personagem de Vadu sabe-se que seu destino não será bem sucedido. Tosse bastante (costumeiramente um mal sinal dentro de narrativas deterministas) a ponto de ver paralisado em meio de uma ação. Quando dizem para procurar tratamento ele responde dizendo que tomará umas e outras que passa. Vadu é uma personagem eficaz dentro da comunidade de feirantes, sendo capaz de silenciar Valente nas reuniões do sindicato. Valente é a favor do diálogo, quer colocar matérias nos jornais e ir a Brasília conversar com o presidente (!). Para Vadu o tempo de conversa acabou quando colocaram uma draga aterrando o mar e fechando o porto onde atracavam os saveiros.

    Uma das figuras míticas da cinematografia baiana é Lídio Silva, seja em sua personificação do santo em Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha, ou em sua personificação do professor em Grito da terra, de Olney São Paulo. Aqui, Lídio Silva é um dos saveiristas, uma figura filmada de baixo para cima acentuando o grau de importância e sabedoria (dada pelo mar) de uma personagem a quem a feira deixa fazer justiça com as próprias mãos, erguendo-se tão alto e belo quanto os mastros dos saveiros por ele capitaneados.

    O filme abre com uma mulher aos gritos correndo de um homem com uma faca na mão. O tom de toda esta sequência é estranhamente cômico (como a abertura animada do filme), com a perseguida atuando com trejeitos dignos do Auto da compadecida. Muitos na feira testemunham a perseguição, mas ninguém impede o subsequente assassínio de acontecer. Apesar de aos primeiros minutos, devido à adição desta sequência, parecer que o filme será um relato policial para buscar o assassino misterioso (nunca vemos sua face), esta sequência de abertura apenas serve para justificar a presença da polícia nos arredores da feira e suas batidas ocasionais. Toda esta trama é esquecida no resto do filme.

    Aos cinéfilos de plantão não será difícil traçar paralelos entre esta crônica da feira da Água de Meninos e a obra do primeiro ciclo de Eisenstein. Não somente em decorrência do uso da montagem, tanto de atrações (na corrida dos feirantes para assaltar a draga), quanto da montagem dialética/ideológica (o corte do estupro de Jurami para o menino ladrão se refugiando na Igreja de São Francisco em sua exuberância ourives). Eisenstein também se encontra na descentralização da trama, permitindo o reconhecimento de várias personagens e suas importâncias individuais para a feira, mas sem fazer nenhuma figura protagonista de uma história sobre a feira, que em último e mais alto lugar é uma história sobre a força construtora do povo. Como o bicheiro diz, deus fez o mundo em seis dias, mas a feira fomos nós que fizemos, palmo a palmo.

    Os ensinamentos de Eisenstein guiam a câmera de Alex Viany por dentro da feira, numa montagem rápida e dinâmica onde cada qual diz para que lado vai, se fica com Valente e o diálogo, ou se com Vadu e a ação direta. O assalto da draga pelos feirantes é uma sequência belíssima, quando eles saem detrás dos barracos, tomando paus no chão e subindo nos saveiros. Próximos da draga, a revelação: foram traídos. A polícia já estava na embarcação aguardando a chegada do povo em revolta, e com a aproximação se posicionam apontando seus fuzis contra homens e mulheres armados com pedaços de pau. O traveling da câmera pelos rostos decepcionados e ainda revoltados, não acreditando que depois de chegado tão perto terão de dar meia volta derrotados, é uma grande imagem. Maior ainda é a imagem da praia acolhendo os paus de uma batalha nunca ocorrida - influência do cinema japonês que embebia Viany à época dessa gravação, a imagem da ausência, do que poderia ser sido. O sufocamento da ação violenta na realização de que o adversário possui o poder vem na imagem de um Vadu sentado aos destroços de uma batalha que se perdeu no devir, procurando por ar.

    Mesmo depois deste confronto, o romantismo de Sol sobre a lama aponta para Valente. Suas ideias de buscar diálogo e iluminação do público da capital sobre a situação da feira culminam no encerramento das atividades da draga aterrando a praia. Curioso para um espectador de 2021 enxergar a ingenuidade do relato. Quem impediu o ataque à draga foram as forças do estado. Quando pressionadas pela opinião pública, as forças do estado e do capital privado dão um passo atrás. A vitória de Valente e dos feirantes da Água de Meninos não poderia ser menos curta. Não se apresenta em filme - assim como a culminação do levante grevista em Odessa, em 1905, não culmina no final de Encouraçado Potemkin. Por isso iniciamos esta crítica mostrando a riqueza deste filme para a compreensão da intelectualidade de esquerda do Brasil.


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quinta-feira, 11 de julho de 2019

About the girl that dances - Manhã cinzenta, Gray Morning, Olney São Paulo, 1969



The feet of a girl; a mini skirt; she dances, lifts the feet without letting the toes abandoned the ground; it’s very important to stay in touch with the ground, gives perspective; and, in some cases, helps with a jump start. Everything that’s implicit in her figure, in her smart posture, everything that we don’t know about her yet.

She dances in front of a group of people, but they seem distracted. What distract them from the beauty of that young girl that dances so freely in front of them? Don’t worry, it will soon be shown. But before that, let’s stay in company of the young girl dancing, shall we?

Yes, it is a classroom, but nobody in there seems to be the professor. In place of this authority figure, an authority of a very different nature of the ones they are concerned about, the girl dancing. A radio plays rock and roll, the music that bangs in all the walls of the classroom, in all of the ears; but the ears of those students are functioning just like the walls, and repelling the music.

No, no, they are not like the walls. Some feet are moving under the desks. Some hands are tumbling over the books about psychoanalysis. The music makes some effect upon those young people, not enough for them to join the young girl in action. Mini skirt, open blouse, long hair loose, letting the hair join the music, letting the hair come and go. Outside the classroom, order dictates that everything needs to be contained, including the hair; to be brushed, tied down. Why does she need to be so expansive?

Dance is a subtle thing. But sometimes can be the opposite. She dances opening herself for the action, not joining the standing still folk that surrounds her. The song enters her ears and make provocations into her stomach, down her legs, till the tip of her toes; don’t be prostrate, the songs tells her, get up and move!

Something needs to be done, there is nothing to be done, but we done have to stay quietly waiting. So, Grey Morning, the movie we’ve been talking about this week, the movie we’ve been visiting at this piece, opens with the image of a young girl dancing. Conservative people get so angry with the way young people dance! Doesn’t feel so good inside you to make the world shake and abandoned its preconceived ideas that hold us back?

quarta-feira, 10 de julho de 2019

Olney São Paulo and music - Gray Morning (manhã cinzenta, 1969)



Gray Morning is an audacious movie. The first characteristic that comes to mind is its soundtrack. Many film movements of the time were seeking to stablish proximity with younger generations. At the French cinema, filmmakers found this connection through jazz. At Great Britain, rock and roll. Hollywood was still struggling of how to rejuvenate itself. At Brazil, the avant-garde stablished ground at more distant places, marching through the forgotten depths of an urbanizing country that turned away their faces from the hungry and poor people that build their richness’s. The ‘cinema novo’ movement reached for the never shown faces of the true Brazilian people, the ones that doesn’t show up at magazines and doesn’t have a say at radio shows. To show these people is also to show their culture in every aspect, including its music.

The first long length feature realized by Olney São Paulo, Grito da Terra, follows this pattern. The songs sung by Fernando Lona are very characteristically rural, like the theme of the movie. Are heartfelt, and somewhat painful, songs about the life of those struggling to comprehend the intrinsic ways of nature, but more than that the disgraceful free movements of human greed. In his second movie a turn of events: not a rural scene, not a rural culture, not a rural tradition. Yet, the movie opens with a mass; a black mass, with tambours, with acoustic guitars, many voices singing in a non-coir fashion. The minute the opening credits end, a radical cut: a rock and roll; a girl dancing; its youth, its rock and roll, it’s the city, we are not at the Sertão anymore. There are pal trees in the back of the girl, outside the window.

The Brazilian intellectual scene of 1968 wasn’t understanding of rock and roll, the sold out music, the music of the American imperealism, of big capitalism. Rock and roll was a symbol of what was coming from outside to defeat Brazilian culture. At the same time, immerges from the center of Brazil intellectual scene the Tropicalia movement. And Olney was very fond of it, as we can see by the recurring insurgence of Caetano Veloso’s music in his movies, including Gray Morning. A movie that mixes a black mass with American rock and roll, with Tropicalia, that is in its own sense this mixture. A mix that was in the ears of that generation; a generation that had to dance rock and roll to keep standing, and had to pray to keep alive.

terça-feira, 9 de julho de 2019

Gray Morning (Manhã Cinzenta, Olney São Paulo, 1969)



Gray morning (Manhã cinzenta) is a Brazilian movie by filmmaker Olney São Paulo. Born in 1936, Olney soon discovered his passion for the cinema, reuniting efforts and filming his first picture, Grito da Terra, before his 30th birthday. After this release, he moved to Rio de Janeiro, expecting to find a more prosperous scene for his filmmaking activities. The debut was Gray Morning, filmed during the riots of 1968.

Given the political nature of the picture, featuring images of student rallys, the 22 minute movie caught the attention of the dictatorial government installed in Brazil since 1964, which had strengthened its forces in order to impose a larger censorship on any oppositional movement.

The movie follows, in a non-chronological order, a group of students trying to stablish a fight against the dictatorial government. They are imprisoned, tortured and judged by a robot that follows each step they had taken. With the disorder of the narration line created by the author, the movie seeks to distance itself from the ready pre-conceived notions surrounding movie making. Cinema is an art, and a robot hasn’t the emotional abilities to make a work of art.

The unfortunate events that surround the movie’s characters went beyond the fictional world of robots to strike the author. Olney São Paulo was imprisoned by the Brazilian dictatorship in 1969, not before he was able to send his movie abroad – Gray Morning was exhibited in many film festivals around the world, such as Cannes, Viña del Mar and Oberhausen, while in his native country an illegal copy was privately projected for very close friends.

The filmmaker was tortured by military forces, under the allegation of conspiring with a guerrilla group that hijacked an air plane to Cuba. The allegations were cleared and the filmmaker liberated, not before the torture caused some serious damage to his health. Spite all that it is clear that the government was unwilling to let the filmmaker go without consequences for his outrageous sense of free-speech. The dictatorship burned all the Gray Morning copies they could find. Only one survived in Brazil, switched from its can with another one, at the Cinematheque of the MAM – the Modern Art Museum of Rio de Janeiro.

terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

Peitos em lilás


(um comentário a Manhã Cinzenta e a liberdade de expressão cinematográfica)


Meu pai costuma contar a história de uma exibição do filme Manhã cinzenta realizada por ele tempos atrás. Finda a projeção, debate aberto. Uma das pessoas na plateia pede a palavra. Aponta para a imagem acima e diz que o filme é pornográfico. É um choque depois de assistir ao filme escutar tal referência. Pornográfico. Para quem proferiu tal dizer, pornografia é simplesmente apresentar uma mulher com peitos de fora. Eis que temos uma história da arte constituída de obras pornográficas.

Mas o caso aqui não é o de escrever sobre pornografia. Deixo este trabalho para Susan Sontag. O nu é visto com cautela e reserva por parte dos grupos mais conservadores da sociedade. Os artistas e suas obras são muito abertos para a representação do nu. Seja de forma direta como se apresenta na imagem acima, seja em suas formas abstratas como na pintura contemporânea. É um encontro com o natural por meio do corpo. A inteligência humana parece separar as pessoas do ambiente que as envolve. Humano e natureza parecem dois seres distintos. Certamente que em filosofia muito já se tratou desta separação. Em arte há a preferência pela união entre gente e natureza. Representação dos sentimentos, demonstração do animalesco humano.

O que há na cena de Manhã cinzenta? A mulher sem nome está em cárcere. Foi presa como subversiva pela ditadura fictícia da trama de ficção-científica do filme. Rasga a blusa com ferocidade enquanto diz que Aurelina tingiu a bandeira nacional de lilás. A cor da morte. O embate entre Abel e Caim. Blusa aberta, rompimento com a inteligência científica que separa humano da natureza. Peito aberto, a vulnerabilidade do animal humano. O seio que alimenta e dá vida à criança é o mesmo que se rompido, morte.

Lembro então outro filme que estive a assistir esta semana. Fahrenheit 451. Filme de François Truffaut. Um daqueles raros casos em que a adaptação cinematográfica em nada fica em débito com a obra original. E que ainda é capaz de trazer novas ideias para a obra original. A certo ponto do filme, o chefe de bombeiros se intromete na ilegal biblioteca que uma senhora guarda no sótão de sua casa. Devem queimar tudo. Porque os bombeiros agora queimam livros, ao invés de apagar incêndios. “Todos os livros devem ser queimados”, diz ele enquanto empunha Minha luta, de Adolf Hitler.

Manhã cinzenta foi proibido pela ditadura brasileira. Filme subversivo que trata da organização estudantil e da prisão de líderes estudantis durante a ditadura fictícia. São eles julgados por um cérebro eletrônico. O poder da ciência que nos separa dos animais que somos. Perante as máquinas surge a vergonha e os peitos devem ser guardados debaixo de panos para que não seja vista nossa inferioridade animal. Nosso perecer. Manhã cinzenta foi então destruído. Todas as cópias que chegaram às mãos do Estado. Chamas lançadas sobre o filme. Uma cópia permaneceu em território nacional, e é esta cópia que permite que hoje conheçamos o filme.

A quem fica o direito de abolir a existência de um filme? Ou de um livro? A moral aponta para os seios descobertos da mulher no cárcere e aponta: imoral. Ou melhor, pornográfico. A moral também aponta para Minha luta e diz: imoral. Em ambos os casos corre pelos braços a comichão de lançar fogo sobre ambas as obras. Que de forma alguma são iguais. De forma alguma partilham de mesma ideologia. Ambas encontram-se sob o mesmo fogo cruzado do germe do fascismo. O fascismo que nasce com Minha luta e que é denunciado por Manhã cinzenta. A primeira faz ode à destruição de livros. A segunda se opõe a ela firmemente.

A certo ponto do filme, o protagonista masculino senta a mesa de seu apartamento e lê uma passagem do livro A peste, de Albert Camus. Lemos:

“A multidão festiva ignorava o que se pode ler nos livros: o bacilo da peste não morre nem desaparece, fica dezenas de anos a dormir nos móveis e nas roupas, espera com paciência nos quartos, nos porões, nas malas, nos papéis, nos lenços – e chega talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acorda os ratos e os manda morrer numa cidade feliz”.

Hoje continuamos a ver o dedo em riste a apontar para as mais diversas obras artísticas e pronunciar: pornografia! O nu é criminoso! O sexo é uma corrupção dos seres! O nu e o pornográfico são lidos das mais diversas formas. É ode a crimes. Assim como acontece com Manhã cinzenta, a pornografia intentada não está realmente . É uma simplificação exagerada conceituar pornografia como a presença de um corpo nu. Mesmo que seja o corpo nu de um adulto. Por trás do dedo em riste está o julgamento moral que busca apontar para a diminuição da qualidade artística da obra. Pornografia é má, Manhã cinzenta é filme pornográfico, logo Manhã cinzenta é um mau filme. Que seja atirado ao fogo!

O bacilo da peste se alimenta do fogo. Ressurge em seu ápice quando as fogueiras são montadas. Invade a imaginação das pessoas causando um transe cego. Invoca-se demência e atira-se meninas adolescentes à fogueira. Invoca-se a demência judia dos artistas e atira-se seus livros à fogueira. Invoca-se a pornografia das más obras de arte dos ditos “intelectuais” e atira-as à fogueira. Na fumaça das fogueiras o bacilo da peste encontra transporte e quando caem as chuvas elas invadem as casas.

E assim, a peste se encontra habitando dentro de nossas casas por bastante tempo. Vive incrustada nos encanamentos e nos tempos de maior calor podemos sentir o odor da pestilência a subir pelos ralos. Inundam-nos os narizes, os olhos. A boca e os dedos. Guiam a voz alta e o dedo malicioso. Para a fogueira todos vocês! É preciso lavar o encanamento das casas, respirar o ar puro das paisagens. Não se deixar cair em transe. É preciso enxergar que com a letra A podemos escrever não somente ARMA, mas também AMOR.


Aqui jaz o endereço para assistir o filme e compreender que a pieguice do ultimo parágrafo é menção a passagem do filme em questão:
ou
o documentário realizado por Henrique Dantas sobre Manhã Cinzenta:

terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Que horas ela volta? de Anna Muylaert (2015)


Serei econômico:

[introdução]
Desde que ganhou prêmios em Sundance, Que horas ela volta? passou a chamar a atenção do cinéfilo brasileiro. Que filme é esse que parece ter reabilitado a imagem de Regina Casé de apresentadora de tevê a grande atriz premiada internacionalmente? A atriz protagonista certamente chama bastante atenção neste filme, mas não mais que o aparente engajamento político do filme. As obras político-sociais na arte brasileira estão longe de ser uma novidade. Por sinal, novidade são as obras que não buscam mais que o simples contar uma história - raro mesmo nos filmes ditos comerciais. Difícil para esse cinema engajado socialmente em soltar a tradição brechtiana-glauberiana de distanciamento do espetáculo. Em certos casos, nem sendo proposital. Mas não é esta a proposta da diretora Anna Muylaert. Inserindo um drama familiar num contexto social, o filme não ganha o peso esperado de uma obra cinematográfica brasileira que aborda tema tão complexo. Em certo sentido pode até lembrar Cidade de deus, que aborda a violência de forma tão ágil ao invés de cair nos clichês da dramatização da pobreza. Mas são duas obras completamente diferentes.


[o social]
O que mais chama atenção da crítica em relação ao filme de Muylaert é a crítica social. Esta abordagem da acensão social de parte da sociedade durante o governo Lula. Uma leitura política imediatista pode ser prejudicial, tanto para o filme quanto para a crítica. Ainda não temos o devido distanciamento dos fatos para poder falar alguma coisa sobre eles. Estamos embebidos pelas emoções do desenrolar de tudo isso. É por isso que a grande sacada de Muylaert é simplesmente contar uma história como se estivesse a narrar fatos. Não concedendo ao seu filme o caráter documental, mas também não concedendo a ele o aspecto de ensaio sociológico. Temos nele uma história de onde podemos retirar seu caráter político-social.

E são nas emoções deste desenrolar de mudanças sociais em que se baseia Que horas ela volta?. A confusão das personagens inseridas num contexto de comodismo e conservadorismo frente à realidade que, exatamente pelo comodismo, lhes parecia inevitável e deveria permanecer como está. Numa construção clássica de narrativa, Muylaert insere o (ou, neste caso, a) estranho que surge para mudar as perspectivas das personagens. Como o homem que em O país dos cegos, conto de H. G. Wells, surge em uma comunidade de cegos para dizer que o mundo vai muito além do vale em que eles vivem, Jéssica aparece para mostrar que os marginais (as pessoas que vivem à margem da sociedade) têm tanta capacidade de crescer na vida quanto os mais bem providos, basta ter oportunidade - e ela teve.

Este novo olhar é o que passa a modificar a rotina daquela casa. A mexer nos espaços - a recém-chegada quer ser arquiteta. A mostrar que "o bom gosto" não é exclusividade das classes dominantes.


[o familiar]
Mas antes de ser um filme de conquistas sociais, Que horas ela volta? é um filme sobre relações familiares, assim como mostra a primeira cena, intercalada com os créditos: Val, a doméstica, observa o filho dos patrões brincando na piscina. Ele sai da água e vai até ela. Pergunta que horas a mãe chegará. Este menino somente aparecerá no filme nesta primeira cena. Depois notaremos que ele é o jovem que, assim como a filha de Val, está tentando uma vaga no vestibular da USP. A relação entre o garoto e Val é mais próxima que a dele com sua mãe. Mas é na pergunta título do filme, realizada pelo garoto, que reside uma das principais questões do filme: a maternidade interrompida, ou o afeto distante.

São três mães que sofrem pelo carinho de seus filhos. A principal delas é Val, que por dez anos ficou sem visitar a filha deixada no sertão aos cuidados do pai. É nestas relações que as personagens de Muylaert se humanizam. Ganham vida. E não demora para que uma figura como Regina Casé - aliada a sua competência própria - deixe de lado a sua imagem de apresentadora de tevê para se tornar Val. Tudo isso graças a esta relação que é presente na vida de todos, seja pela proximidade ou pela distância com as mães. E mais ainda pelos filhos. Se Fabinho pergunta para Val que horas ela volta, Jessica dirá a sua mãe que sempre fazia a mesma pergunta quando criança. O sofrimento dos filhos separados de suas mães existe em qualquer criança que passe por situação semelhante.


[o filme]
Seguindo uma mise-en-scène tradicional, o filme de Muylaert tem como trunfo algo costumeiramente dito como sendo o fraco do cinema nacional: o roteiro. Com bons personagens, buscando a leveza da relação entre as personagens - a chegada de Jessica na casa dos patrões de Val e sua relação com os patrões da mãe poderia ter sido muito mais dramática, o que seria um erro - e até mesmo alcançando tons de comicidade, Que horas ela volta? mostra-se como um filme que deveria ser feito mais por este ultimo ponto (e foi). Possui as duas características essenciais para um bom filme: provocar reflexão e entreter. Consegue isso ao aliar uma problemática social a uma relação familiar. Uma formulação clássica, como podemos notar em filmes como A felicidade não se compra.

Não precisa ser inovador para ser bom. Dizer que o filme busca uma perspectiva nova ao se inserir na cozinha, tomando da perspectiva da doméstica ao invés dos patrões é um equívoco. Mas, novamente, o filme não precisa vender uma novidade para ser bom. Para cair nas graças de público e crítica, ainda que estes últimos fiquem em caça de novidades, e escorreguem mais do que encontrem. Afinal, a arte não se faz somente de vanguarda.

terça-feira, 13 de outubro de 2015

Depois da Chuva de Cláudio Marques e Marília Hughes (2013)


Existem alguns planos muito curiosos em Depois da chuva, que parecem se repetir ao longo do filme. A câmera permanece estática e no interior da imagem quase não há movimento. Os personagens ficam sentados ou de pé, fazendo ou esperando alguma coisa acontecer, o que não necessariamente pede a eles a sua mobilidade. A duração dos planos é razoavelmente longa, permanecem em tela quase que o mesmo tempo que as discussões dos adolescentes na escola. Mas nelas há algo de diferente. Um sentimento que se escoa por entre cada frame projetado na tela. Ao longo da cena soa uma música, um punk, gênero facilmente associado aos anarquistas oitentistas que se tornou hino graças a algumas bandas bem lembradas no filme - os álbuns dos Sex Pistols aparece com certa constância nos diálogos e nas paredes.

O típico a se fazer quando há na trilha sonora de um filme uma canção punk ou heavy metal é acelerar o ritmo do filme. Colocar as imagens numa agilidade semelhante àquela da canção. Isso se faz pelo movimento de câmera, pelo movimento no interior das imagens ou mesmo pela montagem acelerada em que os planos duram segundos ou menos que um segundo em tela. Com algumas exceções (como as cenas dos encontros de Caio com sua namorada), Depois da chuva não segue este padrão de construção fílmica. As imagens são estáticas - em algo que me lembrou especialmente o cinema de fluxo oriental de Tsai Ming-liang, apesar de serem propostas radicalmente diferentes - enquanto a música é posta demandando a agilidade, a velocidade. A música é explosão enquanto a imagem é calma.


Este dualismo é muito sensível ao trabalho realizado pela dupla de diretores em seu debute em longa-metragem. O que demonstra que os cineastas pensaram muito bem em como compor seu filme antes de transformá-lo em realidade. Isto porque estas cenas em que se dá o dualismo desenvolvem uma emoção no espectador que pode não ter seu significado bem compreendido, mas que será sentida. A proposta do filme é de realizar um registro em primeira pessoa de um momento histórico. Mais do que falar do Brasil em seu momento de abertura política, o filme busca o impacto da história sobre o indivíduo. Ao tratar do indivíduo ele encontra os indivíduos que flutuam ao seu redor: os colegas de escola, os professores, a mãe, os amigos anarquistas.

Os personagens em geral parecem atirados numa inércia que os planos fixos captam bem. Porque, apesar de "inércia" evocar a movimentação - necessária à feitura de um filme -, aqui ele surge como um descontrole (continuo me movimentando mesmo depois de ter tentado parar). A câmera é fixa como se esperasse a ação dos personagens (os anarquistas dizem que tem que agir por conta própria, mas por que não agem?), mas eles em poucos momentos fazem alguma coisa. Quando a câmera se põe em cena como provocadora é porque encontra no mundo quem esteja disposto à ação. E a ação somente surge quando seus personagens resolvem tomar as rédeas de suas próprias vidas. A ação surge no relacionamento de Caio com a colega de escola, que vira sua namorada. E na performance de sua banda num festival na escola.


O papel da câmera aqui passa a ser mais que observar os jovens, mas buscar o sentimento que os guia. Quando o anarquista amigo de Caio descobre-se sozinho em meio à sua batalha política, perde as forças para fazer um pronunciamento em sua rádio de frequência roubada, como ele orgulhosamente pontua. Microfone em mão, sozinho do prédio onde fica o equipamento, ele pergunta se há alguém o ouvindo. Enquanto isso a câmera recua como se sentisse a necessidade de libertá-lo. Mais que isso, registra a sua solidão.

Depois da chuva é um daqueles filmes em que os significados não serão dados ao espectador, que terá que procurá-los em cada quadro. Comecei este texto falando das imagens de pouco movimento ao som de canções punk. Ao ser posta estática, a câmera não somente filma o fato, mas espera que algo se desvele de debaixo daquele envoltório que são as coisas que ela capta. Tal como o Cézanne de Ponty pinta o que há no interior das coisas, a câmera da dupla Marília Hughes e Cláudio Marques capta o que há por trás daquele envoltório chamado corpo. Há uma raiva em Caio contra todo o mundo, mas o que pode ele fazer para apaziguá-la? Entrar para o grêmio estudantil ou pular para a morte de um prédio abandonado?


O filme busca este desvelar do sentimento do jovem que se descobre enquanto ser social. Cria uma trama com tudo aquilo que uma narrativa normalmente pede: um conflito, um romance, uma moral. Mas esta moral de Depois da chuva está muito mais próxima de uma ética política do que a moral de conto de fadas. É uma moral de esquerda desiludida, de uma juventude que já cresceu vendo (e entendendo) as coisas perdendo seu rumo. Depois da chuva se resolve muito melhor no que diz respeito ao desenvolvimento do subjetivo do jovem do que enquanto narrativa para solucionar um conflito originalmente posto. O que poderia surgir como defeito, aparece enquanto provocação. O filme salta para fora da tela para questionar o espectador sobre seu próprio momento político numa análise histórica - e os dados históricos do momento narrado nos são dados pelo filme. Cabe a nós, espectadores, fazermos nosso dever de casa.

Originalmente publicado em Revista Sísifo

domingo, 9 de agosto de 2015

Redenção de Roberto Pires (1959)


O mundo do cinema é feito de extremos. De um lado temos filmes que gastam fortunas para serem feitos e que dominam o mercado exibidor. A maior parte do público sabe de sua existência e prefere assisti-lo por pressão feita pela própria campanha propagandística. É um filme essencial de ser visto nesta temporada, dizem eles. E não poucos são os que embarcam nesta onda e mantém este jogo viciante em que o lucro se sobrepõe à obra. No outro extremo do tabuleiro encontramos filmes feitos sem verbas, que batalham longamente para serem produzidos e, em seguida, para encontrar um pequeno espaço no mercado exibidor. Sofrem com sua concorrência desleal. Mas se você me pergunta a que filme prefiro assistir, respondo prontamente que é este segundo tipo.

Os filmes feitos por grandes corporações podem, sim, ser feitos por pessoas com paixão pelo cinema. Que assistem números extraordinários de filmes e colocam esta sua paixão na tela. Mas isso não acontece na maioria dos filmes, e quando acontece não surge tão melhor quanto com estes filmes mais simples. As falhas de películas que duram quatro ou cinco anos em produção, dotados de orçamento reduzido, filmados em parcerias entre amigos que simplesmente querem ver aquele projeto ser concretizado podem ser facilmente perdoadas, ao contrário do que acontece aos chamados blockbusters. Porque num filme pequeno há, acima de tudo, a paixão pelo cinema. E isso surgirá em cada fotograma, por mais simples que seja a trama.


Redenção é o primeiro longa-metragem filmado no estado da Bahia. Fruto da paixão de um grupo de amigos pelo cinema, o filme chega até nós com muitos problemas. Por muito tempo o filme foi deixado de lado, considerado perdido em determinado momento desta caminhada, até retornar aos olhos do público. Como nem tudo são flores, partes da película utilizada para restaurar a obra ficou estragada, o que significa que cenas ou pedaços de cenas se perderam. Este é um primeiro ponto que nos faz olhar com calma para esta obra. Não mais com o olhar crítico de quem estivesse na época, mas com um olhar terno de quem vê um bebê (o cinema baiano) a dar os primeiros passos.

A crítica mais dura sobre o filme fica para o passado. A cinematografia baiana em muito ganhou com o passar dos anos, e hoje caminha lentamente em direção a um amadurecimento artístico protagonizado por nomes da envergadura de Edgar Navarro e Henrique Dantas. Mas é quase inevitável fazer menção à imaturidade da trama e da criação dos personagens deste Redenção. A escrita do roteiro exala este despreparo dos cineastas que tinham, sobretudo, boas intenções. Tão boas que chegaram a criar uma lente para imitar o sucesso do cinemascope. A imagem larga favorece, sobretudo, a abertura do filme, que desenha para si um mistério. Um táxi percorre uma pista à beira da praia. Vemos os coqueiros alinhados uns aos outros e o automóvel, que quebra. O taxista informa a seu passageiro que não poderão continuar viagem e de que ele terá que ou pegar carona ou pedir guarida numa fazenda de cocos não muito longe dali. O homem então escolhe a segunda opção.


Na fazenda moram dois jovens. Eles pensam em ampliar a fazenda para que possam lucrar mais. Um deles pensa em se casar, e o outro diz que ele deve conversar com sua namorada para conseguir um financiamento com o tio funcionário de banco para a fazenda de cocos ser ampliada. É quando alguém bate à porta, já noite. Ao abrir, imerso em sombras, está o passageiro do táxi que pede para se hospedar ali. Este é um plano muito interessante para introduzir o personagem aos demais membros da trama. No dia seguinte, a dupla sai pela cidade. Vão ao bar, à praia, à casa de um amigo jogar cartas. Lá um deles lê num jornal que um louco assassino fugiu de um manicômio: trama clichê do terror estadunidense dos anos 1980 (mas estamos na Bahia de 1950). Pouca atenção dão ao caso.

Mas o fato é que a suspeita que um deles levanta ao ler a descrição do louco está certa: o homem que hospedaram é mesmo o assassino. Numa das melhores sequências do filme, Roberto Pires monta em sucessão as ações simultâneas de seus personagens. A namorada de um dos jovens vai até a fazenda dar-lhes boas notícias, e o louco ainda não foi embora; os amigos tardaram para sair do jogo de cartas e agora retornam para casa à noite. O carro da menina entra na fazenda, estaciona em frente à casa. Eles ainda continuam longe. Ela entra na casa e é recepcionada pelo louco, que a ataca. Um tiro é ouvido. O que se segue são cenas quase desconexas que nos deixam implícito o que aconteceu naquela noite. Um corpo é retirado de detrás do caminhão e posto numa praia. Retornam para casa com a culpa. Mas logo a polícia baterá em sua porta. O que acontecerá?


Numa sobreposição de mãos apontando para um dos jovens, que supostamente realizou o disparo contra o homem que atacava a menina, ouvimos vozes dizendo: "assassino". Uma síntese do sentimento do jovem atormentado. Este tormento nos soa tão implausível quanto o de Orlac*, mas nem por isso faz da obra menos interessante. No que concerne à criação de uma trama, ela deixa a desejar. No resto, é uma peça no mínimo curiosa. Um filme de que foi picado pelo bichinho do cinema. O que torna tudo muito mais prazeroso de ser visto.


* em As mãos de Orlac