Texto originalmente publicado em Revista Filosofando - UESB.
CINEMA POLÍTICO-HUMANISTA
Após
a guerra surge a necessidade de tornar o cinema um meio consciente e que torne
o espectador consciente dos processos político-sociais que estava a acontecer
na Europa. Na Itália, o cinema ganha as ruas[1].
As câmeras seguem o desejo e a urgência de captar as transformações de um mundo
ágil. Elas já haviam perdido a construção dos campos de concentração, agora não
podem perder mais nada.
Num
cinema político feito no pós-guerra, a representação seguindo os ditames puros
do cinema de ficção já não são mais aceitos (GARDNIER, s/d). Isto não se dá,
claro, para todas as formas de cinema, mas para um em específico: o cinema
político-humanista que visa apresentar um momento real da história recente. Por
estes motivos este é um cinema que não deve funcionar como um mecanismo de
ilusão. Houve um fato e ele deve ser assim apresentado, sem adornos. É um
grande problema quando o cinema, quando faz a representação de um momento, como
o holocausto, dá-se a tentar mudar o que aconteceu. Porque quando isto é feito,
banaliza-o, transformando o holocausto em um produto, enquanto a real
importância de manter a memória deste momento recente da história aparece de
forma remota para quem está a assistir ao filme. E quando não se é mais vista a
gravidade de uma barbárie do passado, é o momento em que abrem-se as portas da
possibilidade de que ele volte a acontecer.
É
desta visão do cinema como responsável frente à história e formação do homem
que devemos fazer uma crítica. Porque, ao contrário do que coloca Ruy Gardnier
em seu texto sobre cinema político, a questão da representação num cinema
político-humanista é, sim, uma questão de moral. Talvez seja nesse sentido em
que devamos ler a frase cunhada por Godard há cinquenta anos. O travelling é uma questão de moral porque
deve ser usado com a devida consciência pelo diretor que se propõe a fazer o
filme. “O cinema julga o que mostra e é julgado pela forma como mostra. A moral
não é apenas uma questão de conteúdo. É também, ou, sobretudo, uma questão
formal” (BEZERRA, 2010). Em Kapò, o travelling notado por Rivette em sua
crítica é o momento em que a escolha do diretor de fazer de seu filme político
um drama nos moldes tradicionais atinge seu ponto máximo. O travelling torna-se, assim, a síntese do
espetáculo cinematográfico, quando não se deve ser feito espetáculo algum sobre
aquele tema. Nas palavras de Ruy Gardnier sobre Kapò:
É nojento colocar o
campo de concentração como cenário de uma love story trágica, e é especialmente
nojento de uma hora para outra retirar o foco de uma coisa maior (aquilo que
faz o diferencial do filme, o de querer retratar os campos) para uma coisa
menor. (GARDNIER, s/d).
Para
criar uma história de amor não é necessário que ela seja ambientada num campo
de concentração. Uma história de amor é totalmente livre, pode acontecer em
qualquer ambiente – e o uso do campo de concentração torna-se, então, um ato
imoral. Imoral porque transforma aquele cenário de uma tragédia real – a
matança de milhões de pessoas – em um espetáculo.
Imoral porque transforma aquela tragédia em algo menor: é como se o diretor de
um filme como este não fosse capaz de enxergar a dramaticidade vivida por
aquelas pessoas, podendo até parecer que está a menosprezar aquela tragédia,
retirando dela sua seriedade, transformando-a em brincadeira (ou em último caso
transformando-a em produto).
CONCLUSÃO
A forma do filme torna-se, assim, um meio de discussão para uma
moral dos modos de representação no cinema. A ficção não deve ser aceita quando
torna o assunto do qual trata algo menor frente aquilo que está a tratar – isto
se reflete em outro filme recente: A vida
é bela. Não deve ser aceita porque o cinema de ficção
também possui o seu papel dentro da sociedade. O cinema de ficção, ao mostrar o
passado sob suas próprias regras faz deste uma banalidade mais próxima da
ficção do que de uma realidade realmente vivida: torna-se o equivalente a um
esquecimento. Este filtro que o cinema-espetáculo cria separando a ficção da
realidade faz do espectador um ser cada vez menos consciente da seriedade
daquilo que o filme deveria estar a tratar exatamente porque é tratado com
naturalidade, como um artifício dramático.
“Você não viu nada em Hiroshima”, repete o personagem de Eiji Okada em Hiroshima, meu amor. Esta frase é tanto
dita para a personagem de Emanuelle Riva quanto para nós, espectadores. Dizemos
que vimos o terror de Hiroshima, ou dos campos de concentração, mas na verdade
nada vimos. O que vimos foram imagens que contavam com a visão de outra pessoa
e do olho artificial da câmera. O que temos são imagens que formam uma memória
artificial daquele evento. Vimos os filmes dos corpos empilhados nos campos,
vimos os corpos queimados pela explosão da bomba. E ao mesmo tempo nada vimos.
Filmes como A vida é bela e Kapò nos levam para dentro dos campos de
concentração, mas nada vemos. É a representação que desrespeita o passado.
Pior. Que ignora o passado. Transforma um fato histórico em um produto de
comercialização. A representação “justa” de Noite
e neblina se refere a isto. Não podemos voltar no tempo. Aquelas imagens
dos campos que nos são mostradas fazem parte de um passado que é nosso, mas
cuja memória não possuímos: um passado que precisamos reconhecer para não
repeti-lo. De fato, nada vimos em Hiroshima.
REFERÊNCIAS:
BEZERRA,
Julio; A moral da memória: quando o
cinema vai ao Holocausto; Revista Fronteiras, vol. 12 n° 1, jan/abr, 2010;
disponível em: http://www.fronteiras.unisinos.br/pdf/82.pdf,
acessado dia 04 de julho de 2014 às 21:54.
DANEY, Serge; O travelling de Kapò; disponível em: http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:oj8_0RbvkqYJ:www.geocities.ws/ruygardnier/daneyotravellingdekapo.doc+&cd=1&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br
acessado no dia 04 de junho de 2014 às 10:57.
GARDNIER,
Ruy; O cinema faz política (1): Gillo
Pontecorvo; Revista Contracampo; disponível em: http://www.contracampo.com.br/22/kapoepolitica.htm
,
acessado em: 18 de junho de 2014 às 21:41.
MARTIN,
Marcel; A linguagem cinematográfica;
tradução: Paulo Neves; 2. Ed. – São Paulo: Brasiliense, 2011.
OLIVEIRA
JR., Luiz Carlos; Alain Resnais e a
memória do mundo; Revista Contracampo; disponível em: http://www.contracampo.com.br/88/artresnaisjr.htm, acessado em: 02 de julho de 2014.
PONTECORVO, Gillo; Kapò; França - Itália, 1959; duração:
1h58min.
RESNAIS, Alain; Noite e neblina; França, 1955; duração:
30min.
RESNAIS, Alain; Hiroshima, meu amor; França, 1959;
duração: 1h30min.
[1] Esta urgência das câmeras
estarem nas ruas para captar a realidade influência o cinema de diversos locais
do mundo, tais como do Egito, da Índia, e o cinema brasileiro, no momento em
que surge o cinema novo com Nelson Pereira dos Santos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário