sábado, 6 de dezembro de 2014

Travelling enquanto questão moral: um estudo em três partes

[continuação]

Texto originalmente publicado em Revista Filosofando - UESB.

CINEMA POLÍTICO-HUMANISTA

Após a guerra surge a necessidade de tornar o cinema um meio consciente e que torne o espectador consciente dos processos político-sociais que estava a acontecer na Europa. Na Itália, o cinema ganha as ruas[1]. As câmeras seguem o desejo e a urgência de captar as transformações de um mundo ágil. Elas já haviam perdido a construção dos campos de concentração, agora não podem perder mais nada.

Num cinema político feito no pós-guerra, a representação seguindo os ditames puros do cinema de ficção já não são mais aceitos (GARDNIER, s/d). Isto não se dá, claro, para todas as formas de cinema, mas para um em específico: o cinema político-humanista que visa apresentar um momento real da história recente. Por estes motivos este é um cinema que não deve funcionar como um mecanismo de ilusão. Houve um fato e ele deve ser assim apresentado, sem adornos. É um grande problema quando o cinema, quando faz a representação de um momento, como o holocausto, dá-se a tentar mudar o que aconteceu. Porque quando isto é feito, banaliza-o, transformando o holocausto em um produto, enquanto a real importância de manter a memória deste momento recente da história aparece de forma remota para quem está a assistir ao filme. E quando não se é mais vista a gravidade de uma barbárie do passado, é o momento em que abrem-se as portas da possibilidade de que ele volte a acontecer.

É desta visão do cinema como responsável frente à história e formação do homem que devemos fazer uma crítica. Porque, ao contrário do que coloca Ruy Gardnier em seu texto sobre cinema político, a questão da representação num cinema político-humanista é, sim, uma questão de moral. Talvez seja nesse sentido em que devamos ler a frase cunhada por Godard há cinquenta anos. O travelling é uma questão de moral porque deve ser usado com a devida consciência pelo diretor que se propõe a fazer o filme. “O cinema julga o que mostra e é julgado pela forma como mostra. A moral não é apenas uma questão de conteúdo. É também, ou, sobretudo, uma questão formal” (BEZERRA, 2010). Em Kapò, o travelling notado por Rivette em sua crítica é o momento em que a escolha do diretor de fazer de seu filme político um drama nos moldes tradicionais atinge seu ponto máximo. O travelling torna-se, assim, a síntese do espetáculo cinematográfico, quando não se deve ser feito espetáculo algum sobre aquele tema. Nas palavras de Ruy Gardnier sobre Kapò:

É nojento colocar o campo de concentração como cenário de uma love story trágica, e é especialmente nojento de uma hora para outra retirar o foco de uma coisa maior (aquilo que faz o diferencial do filme, o de querer retratar os campos) para uma coisa menor. (GARDNIER, s/d).

Para criar uma história de amor não é necessário que ela seja ambientada num campo de concentração. Uma história de amor é totalmente livre, pode acontecer em qualquer ambiente – e o uso do campo de concentração torna-se, então, um ato imoral. Imoral porque transforma aquele cenário de uma tragédia real – a matança de milhões de pessoas – em um espetáculo. Imoral porque transforma aquela tragédia em algo menor: é como se o diretor de um filme como este não fosse capaz de enxergar a dramaticidade vivida por aquelas pessoas, podendo até parecer que está a menosprezar aquela tragédia, retirando dela sua seriedade, transformando-a em brincadeira (ou em último caso transformando-a em produto).

CONCLUSÃO

A forma do filme torna-se, assim, um meio de discussão para uma moral dos modos de representação no cinema. A ficção não deve ser aceita quando torna o assunto do qual trata algo menor frente aquilo que está a tratar – isto se reflete em outro filme recente: A vida é bela. Não deve ser aceita porque o cinema de ficção também possui o seu papel dentro da sociedade. O cinema de ficção, ao mostrar o passado sob suas próprias regras faz deste uma banalidade mais próxima da ficção do que de uma realidade realmente vivida: torna-se o equivalente a um esquecimento. Este filtro que o cinema-espetáculo cria separando a ficção da realidade faz do espectador um ser cada vez menos consciente da seriedade daquilo que o filme deveria estar a tratar exatamente porque é tratado com naturalidade, como um artifício dramático.

“Você não viu nada em Hiroshima”, repete o personagem de Eiji Okada em Hiroshima, meu amor. Esta frase é tanto dita para a personagem de Emanuelle Riva quanto para nós, espectadores. Dizemos que vimos o terror de Hiroshima, ou dos campos de concentração, mas na verdade nada vimos. O que vimos foram imagens que contavam com a visão de outra pessoa e do olho artificial da câmera. O que temos são imagens que formam uma memória artificial daquele evento. Vimos os filmes dos corpos empilhados nos campos, vimos os corpos queimados pela explosão da bomba. E ao mesmo tempo nada vimos. Filmes como A vida é bela e Kapò nos levam para dentro dos campos de concentração, mas nada vemos. É a representação que desrespeita o passado. Pior. Que ignora o passado. Transforma um fato histórico em um produto de comercialização. A representação “justa” de Noite e neblina se refere a isto. Não podemos voltar no tempo. Aquelas imagens dos campos que nos são mostradas fazem parte de um passado que é nosso, mas cuja memória não possuímos: um passado que precisamos reconhecer para não repeti-lo. De fato, nada vimos em Hiroshima.

REFERÊNCIAS:
BEZERRA, Julio; A moral da memória: quando o cinema vai ao Holocausto; Revista Fronteiras, vol. 12 n° 1, jan/abr, 2010; disponível em: http://www.fronteiras.unisinos.br/pdf/82.pdf, acessado dia 04 de julho de 2014 às 21:54.
DANEY, Serge; O travelling de Kapò; disponível em: http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:oj8_0RbvkqYJ:www.geocities.ws/ruygardnier/daneyotravellingdekapo.doc+&cd=1&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br  acessado no dia 04 de junho de 2014 às 10:57.
GARDNIER, Ruy; O cinema faz política (1): Gillo Pontecorvo; Revista Contracampo; disponível em: http://www.contracampo.com.br/22/kapoepolitica.htm , acessado em: 18 de junho de 2014 às 21:41.
MARTIN, Marcel; A linguagem cinematográfica; tradução: Paulo Neves; 2. Ed. – São Paulo: Brasiliense, 2011.
OLIVEIRA JR., Luiz Carlos; Alain Resnais e a memória do mundo; Revista Contracampo; disponível em: http://www.contracampo.com.br/88/artresnaisjr.htm, acessado em: 02 de julho de 2014.
PONTECORVO, Gillo; Kapò; França - Itália, 1959; duração: 1h58min.
RESNAIS, Alain; Noite e neblina; França, 1955; duração: 30min.
RESNAIS, Alain; Hiroshima, meu amor; França, 1959; duração: 1h30min.



[1] Esta urgência das câmeras estarem nas ruas para captar a realidade influência o cinema de diversos locais do mundo, tais como do Egito, da Índia, e o cinema brasileiro, no momento em que surge o cinema novo com Nelson Pereira dos Santos.

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